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sexta-feira, 25 fevereiro 2022 08:09

Minha declaração de voto é um não ao big-bradismo na AEMO

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Dedico este texto às minhas confreiras e aos meus confrades, particularmente aos mais novos

  

Este é um texto sobre o estado da arte na AEMO (Associação dos Escritores Moçambicanos). Sendo um texto deliberadamente provocativo e de tomada de posição, constitui a minha declaração de voto e apoio à lista de candidatura a Secretário Geral da AEMO, encabeçada por Carlos Paradona.

 

Escrevo apreensivo mas, como sempre, ciente de que estou a incitar um debate que muitos de nós preferem evitar. Ao invés, enveredam pela arruaça e “conspiração”, usando o que chamo de big-bradismo, como veremos.

 

A título elucidativo Fui repescar e decalcar George Orwell, um autor que circulou entre nós nesses anos oitenta, tempos em que revolvíamos as nossas cabeças em torno da revista “Charrua”, donde surgiram muitos dos nomes que hoje pontificam na nossa literatura. Acho, por isso,  que o “Animal Farm” e o “1984”, retratam bem o percurso da nossa AEMO.

 

Para além da revista “Charrua”, apareceram outras, com as mesmas características de “movimento literário encabeçado por jovens”, como por exemplo, a revista “Oásis”, em torno da qual nasceram outros nomes e outros debates. A irreverência e a vontade de fazer literatura foram sempre o baluarte desses jovens candidatos a escritores, que todos fomos, e muitos dentre nós ainda o são.

 

Do meu ponto de vista, desse processo ressaltam dois pontos. 

 

Primeiro, que a literatura cresceu e bem. Segundo, que questões extra literárias começaram a vir à baila, de forma transversal e inter-geracional. Aqui é onde entra o big-bradismo a que me refiro: começamos a pensar a AEMO como trampolim para outras coisas que não a literatura, um equívoco que se tornou congénito. Penso nos prémios, nas jogadas subjacentes, nos cargos em outras esferas, particularmente na política. Más línguas dizem, por exemplo, que é prática comum a manipulação na atribuição dos prémios literários, tudo urdido no círculo dos Big brothers. De grupo quase homogêneo, pelo menos em termos de princípios, nos fomos diferenciando com o passar dos anos. Nada de transcendental, pois, não era sem razão que o poeta Rui Nogar, o primeiro Secretário geral da AEMO, nos chamava a atenção para respeitarmos as nossas diferentes idiossincrasias.

 

Os Big Brothers

 

George Orwell escreveu o icónico romance que leva um título interessante: “1984”. Publicou-o em 1949, na ressaca do fim dessa famigerada “segunda guerra mundial”, episódio a que Elísio Macamo prefere chamar de guerra europeia. Acho bem. Então, por que cargas d' águas, só porque fomos carne para canhão, a guerra tem que ser apelidada de mundial, e nós incluídos nas suas causas e mazelas?

 

Afigura-se-me mais sensato que sejam os europeus e os americanos (EUA) a assumirem a autoria dessa guerra, que teimam em socializar e distribuir pelos quatro cantos do mundo, em partes iguais, o que é falacioso.

 

Se bem que haja muitos confrades e camaradas meus que persistem nessa démarche, continuo a pensar que isso é contraproducente e abominável.

 

No “1984”, vejo o seu autor como um captador das nuances da chamada guerra fria, e da subjugação do outro, ora em consolidação. De facto, é uma bela metáfora sobre a dominação e subalternização do outro.

 

Por exemplo, foi o ano em que nasceu a República Democrática Alemã. O mesmo que dizer, que foi o início da construção do muro de Berlim, a própria cortina de ferro que dividiu a Alemanha em dois e, por via disso, o que se viu: o mundo também se dividiu em dois, norte, sul, esquerda, direita, inimigos, aliados naturais, etc, embora Nkrumah, um dos meus africanos preferidos, fizesse questão de sublinhar que não olhava nem à esquerda nem à direita, e que seguia em frente, fosse o que fosse. Todavia, foi sol de pouca dura, pois ele próprio, e todos nós, fomos vítimas dessa famigerada bipolarização.

 

Mas, o que é isso de bipolarização?

 

Acho que para o que nos interessa basta entender que por causa dessa divisão se foi consolidando a chamada guerra fria que, diga-se, nunca chegou a arrefecer. Aliás, não estarei a dizer nada de novo se afirmar que ainda hoje vivenciamos as sequelas dessas guerras cujos calores nos atordoam. Cabo Delgado e, meio martelado, a AEMO, são disso exemplo.

 

Se estamos lembrados, após a assinatura do acordo geral de paz, em Roma, 1992, algures na província do Maputo, reagindo ao feito, um soldado governamental, que falava para a TVM, deu um KO ao assunto da guerra e paz. Qual equilibrista, do topo de feixes de lenha transportados num camião soviético, esse soldado disse que não queria mais guerra. E que, doravante, preferia ir para um sítio gelado, longe do ardor da guerra.

 

Cá está a referência à calmia que o frio representa, por oposição ao calor escaldante da guerra, enunciado por um soldado filósofo, que eu julgo também ter sido, passe a presunção. Na verdade, para ele, tal como para mim, ou para o meu confrade Paradona, que fomos militares, o frio é melhor que o calor gerado pela guerra. Penso que a narrativa do soldado cabe-nos que nem luva, particularmente na Aemo. Ninguém quer a guerra, essa coisa quente que nos vai matando.

 

Aqui excluo, claro, aqueles que dela fazem proveito, quase sempre por coisas pouco probas, dado que, “Nkhondo nkhuidyera”, literalmente, “a guerra é para se comer”, como se diz em ci-sena, língua do meu avô Kampira, pai da minha mãe.

 

Mas voltemos a Orwell. 

 

No seu “1984”,  ele construiu um personagem paradigmático, o Big Brother. Sujeito colectivo, funciona como metonímia que se refere a um estado totalitário, cuja característica definidora era a vigia aos cidadãos, 24 sobre 24 horas. Para que isso acontecesse, o artifício foi a utilização da técnica para resolver a cena da “bufaria”. Tratava-se de recorrer a uma telescreen (mais ou menos tele-tela, em português), um aparelho que se não desligava e que, portanto, estava de vigília permanente, processando dados para os transmitir ao Big Brother, essa tenebrosa instância tutelar dos cidadãos, que seria a escrutinadora da cidadania dos vigiados da terra. Aqui peço que façamos alusão a Frantz Fanon no seu, “os condenados da terra”. Mas, eis a questão, condenados por alma de quem? A que propósito? Somos mesmo condenados?

 

Está-se mesmo a ver, somos confrontados com questões de controlo social, “bufaria” e outros que tais, o que propicia a existência de hegemonização de uns sobre outros, ainda que de forma velada. Ou pelo menos, ao nível do discurso que enunciam. Na televisão, nos jornais ou nos WhatsApp inflamam a malta com narrativas demolidoras, tentativas de construção de (in) verdades. Construções maldosas com vista a perpetuar a sua perspectiva “big-bradal”.

 

A acção desses que supostamente dominam, é revelada por ínvios actos, diga-se, intoleráveis de todo. O que clama por uma acção de contra-hegemonização (Boaventura de Sousa Santos) por parte dos “ small brothers”, “os mais iguais do que outros” (Orwell), o grupo ao qual pertenço, e por isso, a ele me associo na luta contra a hegemonização. Direi que o meu grupo é o dos “condenados da terra” (Fanon), os que se batem pela lista do Paradona, que se define contra hegemónica, quer dizer, contra o big-Bradismo.

 

Pensei no Big Brother para fazer uma analogia entre o enredo do romance e as eleições na AEMO. Por isso, qualquer semelhança com o estado da arte na AEMO é mesmo semelhança.

 

Bom, supondo que é óbvio que o Big Brother tudo fará para perpetuar o seu lugar de leviatã,  posiciono-me do lado oposto. Dito de outro modo, luto contra os Big Brothers. Faço-o no afã de constituir, eu e o meu grupo de pertença, o segmento dos que sempre vão fazer os checks and balances. Uma espécie de controlo ao contrário, para dominar a dominação (Kant). Assumo que desse modo me contraponho à filosofia do big-bradismo. É isso que assumo e defendo porque configura a minha declaração de voto: sou contra o big-bradismo. Sou contra a manipulação. O mesmo que dizer que quem amiga, aviso é. E sugiro que isto seja literalmente confundido com o “quem se acamarada pela circunstância, camarada não é”. Mais ou menos uma coisa do tipo, “quem é dos seus, não é de Genebra”. Assim concebo o provérbio que faço questão de desconstruir, a la mode de Derrida: Não sou de Genebra, sou de Moçambique. E no caso, escritor, camarada, confrade que faz por ser, tolerante, compreensivo, amigo, bom sujeito, agradável e afável. Contra a arruaça. Contra a dominação. Contra a sobranceira. Contra o pedantismo. Contra o ódio. Contra a inveja. Contra a inventona, quer dizer, com Paradona e sua lista.

 

*Poeta, Sociólogo, Jornalista e Actor

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