Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

BCI
quarta-feira, 11 maio 2022 07:34

Da utopia do diálogo à misantropia dos desproveitos

Escrito por

Existe uma história de um animal pequeno, chamado porco-espinho. Conta a lenda que num dia de frio, alguns destes porcos-espinhos juntaram-se para se aquecerem com o calor dos seus corpos. Mas, logo, viram que se espetavam e se afastaram. Ficaram com frio. Na tentativa de reaproximação, descobriram a distância adequada.

 

Assim, também, acontece na nossa sociedade. O vazio, a descrença, a pobreza, a mingua e as amarguras existenciais, aproximam as famílias e o cidadão comum. Porém, muitos de seus defeitos desagradáveis os repelem. Por outras palavras, toleramos a proximidade dos outros só quando é necessária à nossa própria sobrevivência e bem-estar, porém, de outro modo, evitamo-nos.

 

É comum a abordagem dos nexos e conexões que se estabelecem entre os diferentes grupos religiosos, pois é nesses nexos e conexões que se encontram as linhas estruturantes para o diálogo intra-religioso, elemento fundamental para uma convivência pacífica entre eles. Para Moçambique, em particular, intriga e fascina rever o processo de construção do Estado moçambicano e a interacção com os diferentes grupos religiosos. Com a implantação do Estado colonial, viu-se que, por exemplo, a igreja católica era parte integrante do processo de espacialização, territorialização do aparelho burocrático-administrativo, nos espaços assumidos como Moçambique. É certo que a igreja católica teve essa relação íntima com o Estado colonial, porém, outras confissões religiosas, os protestantes e os de confissão islâmica, em particular, foram parte integrante da construção do Estado.

 

As relações entre o Estado colonial e as duas confissões retrocitadas nunca foram pacificas, ou seja, foram de desconfiança, de conflito e de confrontações. Este tipo de relações conflituosas ou de desconfiança manteve-se durante a primeira República.  Foi, portanto, uma relação com rupturas, mas, desde os finais dos anos 1980, mormente, depois da constituição de 1990, muito esforço e empenho para entendimentos foram feitos, com o fito de aproximar as confissões religiosas, na sua diversidade, ao Estado.

 

Em boa hora, foi celebrada, a jornada Mundial da Religião, que teve o beneplácito das Nações Unidas, apelidada como dia internacional da fraternidade humana. Esta celebração serviu, para o nosso país rever os diálogos que englobam as diferentes confissões religiosas, repensar suas raízes e percursos. Foi, sobretudo, uma reflexão sobre a multiplicidade de religiões e o seu papel no processo de pacificação de um país que tarda a encontrar os caminhos da paz, da tranquilidade, da justiça social e da reconciliação.

 

Considerando a diversidade religiosa em Moçambique, subdividida entre cristianismo, islamismo e animismos, e outras formas de religiosidade, constatou-se que os distintos grupos são constituídos por pessoas de fé e, até, inegável alcance espiritual. Os discursos podem, salvaguardadas as devidas proporções, seguir  na contramão dessa religiosidade e espiritualidade sã e estruturante para o bem do nosso país. No fundo, os diferentes discursos das confissões religiosas ainda ajudam a amolecer os corações, encaminham seus rebanhos para o bem supremo, veiculam união, fraternidade e amor entre os homens.

 

Acedi, gentilmente, o desafio de debater a fraternidade humana e o diálogo religioso, no contexto moçambicano, à semelhança dos vários seminários e conferências que ocorrem, um pouco pelo país, promovidos pela academia ou pelas organizações da sociedade civil. Convocar o diálogo religioso, ou a utopia de um diálogo religioso, que englobasse mais do que a fé, mas, que tivesse subjacente a reconciliação nacional, a paz efectiva, a concórdia e harmonia social. Quer dizer, revisitar a ideia da ausência de hierarquias entre as profissões ou confissões religiosas, a inexistência, portanto, de religiões superiores ou inferiores, de convicções mais ou menos comuns e incomuns, que perpassam a vontade de aglutinar os seus fiéis.

 

Comecei, precisamente, por uma revisão conceptual sobre a misantropia, quer dizer, como se posicionariam as nossas congregações e confissões religiosas diante de tantas desilusões, planos económicos e sociais falidos ou falhados e, até, pelo crescente vilipêndio pelas liberdades civis e pela vida.  Indaguei se o diálogo religioso serviria de trampolim para libertar os crentes e fiéis das desconfianças, do sarcasmo do pessimismo e das aporias de um Moçambique que tarda a se reencontrar com o destino que deveria ser o seu, um Moçambique onde reina a concórdia, a justiça social e o progresso económico inclusivo.

 

Iniciei as minhas reflexões retomando conceitos clássicos sobre a fraternidade humana, rebuscando diferentes autores e o próprio “frater”. Concordamos que essa fraternidade era um pouco mais que irmandade, pois, abarcava aspectos relacionados com os direitos humanos, o respeito pela dignidade da pessoa humana e, sobretudo, a igualdade de direitos e deveres. Ou seja, a consagração da própria ideia de ser Homem, tanto no plano filosófico como no antropológico. 

 

Revisitamos outrossim as encíclicas do Papa Francisco, que exalta a “Fratelli Tutti”, uma ideia que ele buscou em São Francisco de Assis. A propósito, o Papa Francisco afirma que a humanidade  “cresceu em muitos aspectos, porém continuava analfabeta no acompanhar, cuidar e sustentar os mais frágeis e vulneráveis nas sociedades desenvolvidas”. Então, essa fraternidade não se reflecte num convívio social são, muito menos no amor, na convivência ou no reencontro são e fraterno. O Papa Francisco, ao voltar ao século XII para buscar as raízes da ideia que encerra a “Fratelli Tutti”, indaga-se sobre o sentido de humanidade nas sociedades pós-modernas, onde o individualismo excessivo, a indiferença e as desigualdades sociais tornaram-se a característica fundamental dos tempos hodiernos.

 

O livro a “Origem” do romancista e escrito americano, Dan Brown, ajuda-nos a percorrer os caminhos das religiões abraâmicas, ou seja, religiões monoteístas. Concebidas por Abraão, e com tradições e identidades e princípios muito aproximadas. Elas, à semelhança das religiões asiáticas, sobretudo, a Indiana, Darma, se espalham por todo o mundo e dominaram as diferentes crenças humanas que se estabeleceram.

 

O Cristianismo, o Judaísmo e o Islamismo converteram-se nas religiões com o maior número de seguidores e espalharam-se globalmente. Neste século são contabilizados mais de 3.8 biliões de seguidores das três principais religiões monoteístas. Cerca de 54% da população mundial. Portanto, se 16% da população não professa uma  religião, significa que os restantes 30% professam outras religiões.

 

Extrapolando estes indicadores no contexto Moçambicano, em particular, podemos dizer que as tendências globais podem ter algumas parecenças. Moçambique é, também, monoteísta, sem descurar o animismo que mora em todos nós.

 

Numa conversa que fluiu, e na qual fomos unânimes em muitos aspectos, discordamos noutros, fomos fundo nalgumas questões fundamentais, sobretudo, na utopia, no sentido que o cultor do deste termo, Thomas More, quis dar, de um diálogo mais consentâneo, mais inclusivo e pacífico.

 

Um primeiro questionamento, cingia a obrigatoriedade de entender a comunhão do diálogo religioso, e ao surgimento de uma teologia contemporânea africana centrada, tal como nos foi proposta por Mbog Bassong no seu livro “La réligion africaine: de la cosmologie quantique à la symbologie de Dieu (2014). Como seria que os africanos poderiam criar uma fraternidade religiosa, sem deixar de ser africanos; como é que essa fraternidade, poderia ser evocada, sem deixarmos de ser moçambicanos. Estas duas interrogações integram-se nas primeiras interrogações, da primeira e segunda gerações dos que desenvolveram a teologia africana, a teologia que assumia que se o cristianismo é único, ele é vivido de forma diferente, em função das praticas culturais de cada contexto. Há aqui questões de ordem meramente teológico-religiosas, mas igualmente de ordem epistemológicas profundas.

 

Em segundo lugar, tocamos nas nossas crenças animistas e avaliamos como elas conflituam com o processo de evangelização que foi apanágio dos diferentes missionários e pregadores, geralmente vindos do ocidente, que criaram as diferentes seitas religiosas no nosso país. Vivemos com o animismo impregnado em nossas consciências, em nossas práticas culturais e sociais. Podemos, por isso, dizer que o animismo é parte integrante da nossa percepção sobre o mundo, no geral, e do mundo religioso, em particular. É habitus, no sentido que lhe dá  Pierre Bourdieu. Os momentos mais difíceis nos levam de volta às origens, porque é nelas que se encontram as estruturas e as potenciais respostas às nossas principais indagações existenciais e religiosas.

 

Aliás, os escritos de Desmond Tutu testemunham uma variedade de teólogos africanos que estudaram essa transição de interculturalidade entre as religiões monoteístas e as religiões animistas africanas. Existem precursores bem conhecidos como Joseph-Albert Malula, Meirand Hegba, Vicent Mulago, Engelbert Mveng, Jean-Marc Ela, John Mbiti e Fabien Eboussi Boulaga.

 

Uma terceira questão estava relacionada com a questão da misantropia, nas relações humanas, e como este espírito de fraternidade religiosa, que nos deveria unir, por vezes, nos separa. Diante de tantos problemas, pobreza, guerras e terrorismo, esse espaço de religião converteu-se num refúgio. Então, a normalidade da vida e da produção vai retirar os fiéis de suas igrejas?

 

Em quarto lugar, verificamos que uma postura misantropa e pouco solidária, já adoptada, tem feito dos moçambicanos concidadãos pouco solidários com as angústias e vicissitudes vividas dos outros. Dividimo-nos por questões de ideologia ou, ainda, por uma questão de supremacia de determinados partidos sobre os outros, ou ainda de aspirações pseudo-religiosas sobre os outros. É a própria ideia de Moçambique que tem sido desafiada quando estas clivagens se tornam normais e comuns na nossa sociedade, pois somos, como país, um projecto cujo sucesso depende do que formos capazes de fazer, e que a ideia de ser moçambique signifique aceitar e aquiescer o outro como sua própria continuidade. Somos solidários tão somente em casos de desastres naturais.

 

E esta postura que desperdiça oportunidades, convívio fraternal  e um assumir de não fazermos parte do mesmo grupo. Mantemos um diálogo estéril e de desproveitos. Por vezes, consideramos que os contactos, para além dos mesmo grupos, são contaminação ou violação, o que é contrario aos fundamentos fundacionais da ideia de Unidade Nacional, elemento que nos é muito caro como moçambicanos.

 

Não poucas vezes, olhamos para irmãos e concidadãos, de diferentes ideologias e ideais, e achamos a aproximação inaceitável e perigosa. Acontece no plano politico, social, étnico e, agora, no religioso. Atitudes que são exacerbadas por discursos inflamados e produtores de rupturas e conflitos entre as pessoas. Aqueles jovens que passam pela doutrinação, sobretudo no norte do país, respaldam-se num discurso religioso fanático, teologicamente irracional, socialmente inconcebível, antropologicamente diruptivo e violento. Essas escolas religiosas, cuja liderança, assente em pessoas nacionais e estrangeiras mais radicais, têm fabricado fanáticos religiosos perigosos para a nossa unidade, para o nosso contrato social, para a fraternidade que tentamos, tão bem construir e consolidar.

 

As confissões religiosas necessitam de prestar mais atenção a estes processos que criam problemas até de sua própria legitimidade, de sua imagem social. Existem relatos assustadores de promoção de ódio e vingança, com base no sentimento de pertença religiosa. A questão da religião é hoje, como nunca foi, um problema central no processo de construção e formação do Estado moçambicano, de construção e consolidação da Unidade Nacional, do aprofundamento no nosso contrato social.

 

Existe muito interesse, em muitos de nós, em procurar o espírito da tradição para que possamos encontrar o espírito da reconciliação. Isto tem sido parte das subjectivações, quer das nossas classes mais esclarecidas, como do cidadão comum. Será que o diálogo inter-religioso e intra-religioso da paz, irmandade e  reconciliação, ajudaria na difusão dos  valores essenciais dessa narrativa de fraternidade humana?

 

Encerrei a conversa, com os líderes de todas as confissões religiosas ali presentes, regressando aos tempos de infância e adolescência. Passei uma parte da adolescência na cidade de Nampula, convivendo com jovens cristãos e islâmicos. O meu discernimento juvenil jamais encontrou diferenças entre um lado e o outro da fé e espiritualidade.

 

Numa das missas, na S. Catedral, ainda com o Bispo Dom Manuel Vieira Pinto, dei conta de um jovem cujo nome era Omar Momad, que foi chamado para uma das leituras sagradas. Só, anos mais tarde, dei conta do significado desse gesto.

 

Este foi dos exemplos que mais e melhor me remeteu à questão da solidariedade humana e do convívio religioso que perpassa todos os valores e preceitos. Mas foi, também, um ponto de partida e de ruptura, para entender como nos podemos  reconciliar e aniquilar preconceitos, como moçambicanos, e manter os exemplos de convivência religiosa que nos tipificam. Abraçar essa fraternidade como um dos principais factores nas nossas relações.

 

O nosso país tem muito mais conflito e muito mais dissonância entre políticos, do que propriamente entre religiosos. Precisamos de uma nova utopia, de uma moçambitopia, e de um diálogo que nos una, não apenas como moçambicanos, mas como irmãos e pessoas de fé e espiritualidade. A fé africana de Desmond Tutu, que despe de preconceitos e desconfianças. (X)

Sir Motors

Ler 4283 vezes