Há 40 dias que Maputo-Cidade e Nampula, mais algumas urbes municipais do país, “consomem o mesmo pão nosso de cada dia que o diabo amassou” nos últimos sete anos em vilas e vilarejos recônditos, antes desconhecidos da geografia das notícias, no extremo norte de Cabo Delgado: a barbárie. Da guerra.
Sim, da guerra urbana qual prolongamento em novas nuances da guerra rural em Cabo Delgado, desde que Elvino Dias, advogado e mandatário do candidato presidencial Venâncio Mondlane, e Paulo Guambe, mandatário nacional do partido PODEMOS foram bárbara e cobardemente assassinados na Avenida Joaquim Chissano, em Maputo, na madrugada do passado 19 de Outubro, dia em que Samora Machel morria há 36 anos após despenhamento do Tupolev Tu-34 presidencial, nas colinas de Mbuzini.
Um BTR em velocidade furiosa
Na última quarta-feira, no coração da Avenida Eduardo Mondlane na capital do país, um BTR do exército em velocidade furiosa atropelou e abalroou a jovem Maria Madalena em plena luz do dia, sob olhares estupefactos e câmeras de telemóveis de cidadãos comuns que se diligenciaram em capturar vídeos do barbárico momento, quais repórteres das vidas em directo na ''sociedade viral'' que mantém em cativeiro um país no ciclo “vertiginoticioso” de 24 sobre 24 horas de partilhas de notícias, comentários e “fake news” nos WhatsApp e Facebook.
Em enredo semelhante ao da ex-anónima e hoje esquecida Adássia Macuácua, sobrevivente da matança de Elvino Dias e Paulo Guambe, Maria Madalena foi atravessada por uma máquina de guerra das Forças de Defesa e Segurança de Moçambique, escapou milagrosamente com vida da tentativa de assassinato e de boatos e rumores de sua morte, “viralizados” nas redes sociais ao cair da tarde e nascer da noite de quarta-feira.
Adássia Macuácua voltou à sua pacata vida, vítima da amnésia colectiva e da anestesia geral que paralisa o curso normal das actividades nas principais cidades do país nos últimos 40 dias, desde que o candidato presidencial Venâncio Mondlane convocou manifestações populares contra a fraude eleitoral, em protesto contra o assassinato bárbaro de seus correligionários Elvino Dias e Paulo Guambe (crivados de 25 balas) e em repúdio ao que chama de “assassinato do povo Moçambicano” pelo regime da Frelimo que governa Moçambique há 49 anos, desde a proclamação da independência nacional.
O calvário de Maria Madalena
Maria Madalena Matusse, de 29 anos de idade, natural de Kalanga (Manhiça), residente no bairro de Maxaquene, é a nova sobrevivente da barbárie, que desta vez tem pelo menos face institucional visível: um BTR da Polícia Militar.
Julião Silvestre Chihugule, esposo de Maria Madalena, contou à “Carta” que naquele dia ela saiu de casa, como habitualmente, para o trabalho, de diarista numa empresa localizada na esquina entre as Avenidas 24 de Julho e Filipe Samuel Magaia, no Bairro Central. O local onde acabou vítima daquela máquina de guerra, entroncamento entre as Avenidas Eduardo Mondlane e Guerra Popular, dista a cerca de um quilómetro do seu posto de trabalho. Apanhada no percurso de regresso do trabalho, viu-se manifestante e, refugiada por detrás de uma barricada improvisada por populares, acabou atropelada pelo furioso blindado, ainda era manhã de quarta-feira.
Depois de uma noite longa de agitação em torno de sua esposa, sob cuidados intensivos na Urgência do Hospital Central de Maputo, na manhã de quinta-feira, o marido relatou o calvário de Maria Madalena. "Ela sofreu muito na cabeça, devido à forma como caiu. Quando passou o efeito da anestesia, ela começou a queixar-se de muita dor de cabeça. Neste momento, ela tem dificuldades para comer, por isso a nossa preocupação é oferecer alimentos leves, como sopas, papas e sumos", contou.
"Até agora, não consigo explicar exactamente o que aconteceu com ela. Eu mesmo fiquei surpreso quando recebi uma chamada informando o que havia acontecido, e, momentos depois, comecei a ver os vídeos do atropelamento circulando nas redes sociais, o que aumentou o choque. Ainda não consegui ouvir dela como tudo ocorreu, porque até agora ela não conseguiu compreender totalmente o que aconteceu e não fala de forma coerente, o que indica que está com algum problema de memória", frisou.
Chihugule afirmou que a sua esposa está fora de perigo desde a noite de quarta-feira. Os médicos conseguiram estabilizar a sua situação, mas ele acredita que foi muita sorte que o BTR tenha passado por ela sem causar danos mais graves. "Maria Madalena é uma jovem alegre e acredito que tudo vai ficar bem. Espero que ela se recupere o mais rápido possível”, manifestou um esposo optimista, assegurando que “ela não estava nas manifestações, acredito que tenha ido parar naquele lugar tentando uma forma de chegar em casa, após o trabalho.”
O desassossego do esposo de Maria Madalena
Durante a presença da repórter da “Carta”, Marta Afonso, no Hospital Central de Maputo, Maria Madalena recebeu por três vezes visitas de militares. "Logo cedo, eles estiveram aqui para trazer o café da manhã para a minha esposa, sem antes procurar saber sobre o seu estado de saúde. Trouxeram uma comida seca, mas infelizmente ela não pode comer. Algumas horas depois, um outro grupo de militares apareceu e quis fazer algumas fotos da minha esposa, alegando que era para algum trabalho, mas eu não permiti. E por volta das 12h00, outro grupo de quatro militares veio entregar o almoço, desta vez uma refeição mais leve, já que ela tem dificuldades para mastigar”, revelou Chihugule.
O marido de Maria Madalena reconheceu que até aqui “eles estão a prestar uma boa assistência, só não sei até onde isso vai.” Manifestou, no entanto, alguma apreensão com alguns movimentos de solidariedade para com sua esposa. “Um facto curioso é que recebi uma ligação estranha de pessoas que alegaram ser do Departamento de Justiça e Direitos Humanos. Não sei o que querem tratar, mas não estou muito tranquilo com o facto de minha esposa estar atraindo muita atenção, inclusive de pessoas que têm pedido apoio em seu nome e até partilhado um número desconhecido para a canalização deste apoio”, protestou.
"Minha preocupação é que ela não veja aquele vídeo agora, porque acredito que isso pode causar um trauma psicológico. Mesmo agora já é possível perceber que ela não está bem, especialmente na parte da cabeça, e nem quero imaginar o choque quando ela ver o vídeo”, confessou Chihugule.
O director do Serviço de Urgência do Hospital Central de Maputo, Dino Lopes, garantiu à nossa equipa de reportagem que Maria Madalena está fora de perigo, mas permanecerá internada por alguns dias antes de receber alta. "A jovem entrou em estado grave devido à diminuição do nível de consciência e teve lesões na cabeça, segundo os exames de Tomografia Computadorizada (TAC). Mas não foi necessário realizar nenhuma intervenção cirúrgica. Provavelmente, dentro de uma semana, ela poderá receber alta", informou o médico.
Nampula: um faroeste em Waresta
É, sim, de barbárie da guerra urbana que vive o país, qual prolongamento com novas nuances do conflito no extremo norte rural de Cabo Delgado, com máquinas de guerra a povoarem as artérias das cidades, a confrontação entre agentes da polícia e militares que atiram a matar e manifestantes destemidos que montam barricadas, queimam pneus nas vias públicas, vandalizam, queimam e destroem propriedades privadas (sedes do partido Frelimo, viaturas de particulares, infra-estruturas de empresas) e bens públicos (esquadras de polícia).
Na cidade de Nampula, depois do massacre de Namicopo há duas semanas, a morte cruel reclamou mais três vidas. Três jovens manifestantes tombaram por balas desferidas por agentes da Polícia da República de Moçambique (PRM), na zona da Faina (mercado Waresta), numa quarta-feira disfarçada de um faroeste na capital do Norte.
Ao excruciante som de tiros em série e tóxicas cortinas de fumaça das cápsulas de gás lacrimogéneo atiradas por elementos da Unidade de Intervenção Rápida (UIR), sobre os manifestantes que queimavam pneus e barricavam as principais vias de acesso à cidade a partir de quase todos os bairros periféricos.
Mangungumete do gás e petróleo da Sasol
Satungira entrou para a geografia das notícias por causa de um conflito militar pós-eleitoral, quando o finado líder da Renamo Afonso Dhlakama decidiu retomar a sua luta pela democracia a partir das matas. Pundanhar emergiu para a geopolítica das manchetes internacionais, com o conflito no extremo norte de Cabo Delgado. Nesta quinta-feira, Mangungumete re-emergiu da sua pacatez para as notícias, quando nesta vila do distrito de Inhassoro, na província de Inhambane, um agente da UIR foi morto e um Posto Policial local foi destruído por manifestantes, que ainda se apoderaram de pelo menos quatro armas de fogo, do tipo AK-47.
Segundo relatos colhidos pelo jornalista da “Carta” Abílio Maolela, a confrontação deu-se quando a Polícia tentou desmantelar uma barricada sobre a Estrada Nacional Nº1, num cruzamento de acesso à unidade de exploração de gás natural da petroquímica sul-africana Sasol. A unidade da UIR atirou gás lacrimogéneo e disparou balas verdadeiras contra os manifestantes, matando pelo menos duas pessoas e enfurecendo a população, que decidiu atacar o Posto Policial.
A fúria popular foi tal que a Polícia abandonou o local e os manifestantes vandalizaram o Posto Policial, apoderando-se de pelo menos quatro armas de fogo (AK-47), algumas posteriormente queimadas. Fontes locais da “Carta” relatam o assassínio de um agente da Polícia, à pedrada, pelos manifestantes. Cenário de guerra característico de zonas há sete anos sob conflito em Cabo Delgado, fotografias e vídeos amadores ilustram manifestantes a atirarem pedras contra um corpo, de um agente da polícia, enquanto outros exibiam armas de fogo.
Mangungumete é uma das localidades mais propensas à violência, devido ao descontentamento dos jovens por falta de oportunidades de emprego na petroquímica sul-africana, Sasol. A localidade tem registado, ciclicamente, situações de bloqueio da estrada, um dos últimos casos registado em Agosto de 2021, segundo o registo nos ficheiros de memória do jornalista Maolela. (Carta da Semana)