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terça-feira, 25 agosto 2020 06:16

Moçambique - três gerações: Legados e Pecados

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País ainda jovem mas cheio de história para contar entre algozes feitos de um passado heroico, a elevada expectativa do pós independência e a afirmação do multi-partidarismo.

 

Com a proclamação da independência de Moçambique a 25 de Junho de 1975, pelo então Presidente Samora Moisés Machel, uma nova página abriu-se para o país. Uma nova página que marcara o fim de anos de uma história de colonização e ocupação efectiva que até hoje apresenta marcas directas nos colonizados e indirectas nas gerações que se seguiram.

 

Uma geração tomou as rédeas da revolução, encabeçou as fileiras da guerra contra o colonialismo, abandonou suas famílias e juntou-se aos movimentos libertadores, aos treinos militares dentro e fora do país e fez das tripas-coração nos campos de batalha e conquistou a ferros a independência. Esta geração de jovens movidos pelo amor a pátria, pela disciplina da época, pela vontade de ser livre do jugo colonial, e pelo alto sentido de direito a auto-determinação. É uma geração que herdou os mais nobres ideais pan-africanos que eu chamo de independentista e libertadora.

 

O paradigma dominante nas décadas 50 e 60 do século XX, era sem dúvida o paradigma da libertação e das independências. A geração independentista que na sua larga maioria incorporou as fileiras do partido que comanda os destinos políticos do país; foi uma geração que de forma abnegada amou e serviu o país em tempos austeros; uma geração que camuflava suas ambições políticas e que nunca deixara que estas minassem o objectivo primário da luta de libertação. Porém, mais tarde veio a reclamar os louros da juventude emprestada ao serviço do país e da nação moçambicana. Realizou os sonhos de muitos heróis que tombaram na luta pela independência de Moçambique, e trouxe um fulgor e uma expectativa em relação ao que poderia ser o futuro.

 

O seu maior legado foi a abnegação e a entrega. O seu maior pecado veio a revelar-se nos erros advindos da falta de preparo para lidar com a realidade complexa do novo país nascido da luta de libertação e fragmentando em termos de unidade nacional. Um país diga-se sedento de se autogovernar e ávido pela autodeterminação. O fim da longa noite escura que foi a árdua luta pela independência significou muito para esta geração e não só, para o país no geral.

 

A geração independentista viveu um dos períodos mais desafiantes da nossa ainda incipiente história. A independência trouxera a substituição da máquina colonial portuguesa pela máquina estatal moçambicana, e diga-se ao abono da verdade, a geração fê-lo com num típico learning by doing. Mas como nenhum percurso é imaculado, cedo começaram as pequenas guerras de negação do outro e de toda a forma de pensar diferente; a luta pelo poder, a ambição e a sede por regalias e de uma maior influência no xadrez político e minaram o processo recém iniciado.

 

Seguiu-se a segunda geração que nasce, cresce floresce num ambiente de miscelânea entre a expectativa do pós independência depois da azafama épica vivida no estádio da Machava com a proclamação da a independência total e completa de Moçambique e os reais desafios da edificação primeiro da nação e depois do país. A segunda geração é filha ideológica da geração independentista e viveu a chamada atmosfera samoriana, bebeu os ideais proclamados pelo grande Marechal, seguiu os movimentos do associativismo e directivas do partido, a disciplina, o respeito da época, que tinha aparentemente tudo para singrar. Uma geração que experimentou em muito pouco tempo, a sagacidade da independência e a eclosão da guerra dos 16 anos – ouviu o ressoar das armas que mataram inocentes e destruíram as poucas infraestruturas existentes; Viveu nas longas filas das cooperativas familiares e conheceu as privações que a época transicional impunha e abraçou como ninguém o desejo de querer vencer. Esta geração lutou pelos ideias que recebera e foi escrava da narrativa independentista que se estendeu ao ódio visceral pelos que tentassem travar a revolução socialista. Chamarei esta geração de geração programada.

 

E por falar em revolução socialista, os anos que se seguiram a independência do país foram de uma actividade intensa de proclamação dos ideais socialistas e comunistas e de uma afirmação e difusão incisiva destes, ainda que no fundo não se percebia a essência do comunismo que apregoavam  – Foi por assim dizer um período áureo da disciplina do Estado e porque não do partido. Não é de se estranhar que os filhos desta geração carreguem até hoje fortes traços ideológicos do seu berço de incubação. Geração jovem e enérgica, orientada para a acção e com ideias claras sobre a revolução e sobre os caminhos que o país deveria seguir, viu sua referência mór (Samora Machel) perder a vida no fatídico acidente de Mbuzini. Um duro golpe para as aspirações do país no geral e para todos os moçambicanos. Do dia para a noite esta geração se viu órfã do seu mentor e as dúvidas sobre as suas reais capacidades começam a emergir entre as fileiras.

 

A meio com uma morte trágica e uma guerra civil altamente devastadora, a geração programada enfrentou um dos momentos mais desafiantes da sua história, com sabotagens, traições e cisões no seio do mesmo grupo. Assumiu alguns dos desafios impostos pela época e emprestou seu fulgor para reconstruir o país ao mesmo tempo que buscava mais instrução, mais capacidade técnica e humana. Em termos de nível de preparo, com a fase da restruturação económica as fronteiras geográficas, ideológicas e políticas do mundo abriram-se e mais oportunidades emergiram tornando-a mais capaz e mais interventiva.

 

Geração que melhor personificou a ideia de nacionalismo e que criou a primeira burguesia emergente do país – uma burguesia que só conseguiu mostrar a avidez e ganancia pelo poder e dentes afiados para lutar pelo “tacho” depois do evento de Mbuzini; Produziu continuadores e brindou o país com lutadores, artistas, desportistas, músicos e muito mais. Cometeu erros como a primeira, tomou decisões que até hoje são questionadas, mas toda a revolução implica decisões, umas acertadas e outras equivocadas e descontextualizadas. Um dos seus grandes pecados foi não ter preparado os filhos para os desafios reais do país; talvez pelo excesso de zelo, talvez por mera soberba. Ao tentar evitar que seus filhos passassem por privações, acabaram lhes oferecendo mais do que podiam e deviam e hipotecaram muita coisa, parindo uma geração com uma mão cheia de nada.

 

A terceira geração é de relativamente difícil enquadramento e trato cronológico – representa síntese das duas anteriores. Escalando o país pelos seus pontos cardinais vamos descobrindo uma mesma geração dividida entre  geração urbana e a rural, do cimento e do caniço, uma esteve mais exposta às benfeitorias e que sente o sabor do “tacho” e outra que passa ao lado do mesmo. A essa geração que alguém uma vez chamou de uma geração à rasca, nunca foi dada nenhuma responsabilidade objectiva.

 

O geograficamente identificado como grupo do cimento, da cidade foi obviamente o mais agraciado em termos de oportunidades e recursos que o outro grupo da zona de areia. O primeiro, para além de estar à rasca, é hipoteca dele mesmo –  um grupo à deriva e órfão dos valores históricos, políticos e sociais do país. Para muitos destes jovens, a narrativa independentista não faz ecoar nada em si e os discursos da guerra dos 16 anos não são vinculativos a sua causa.

 

Encontramos na mesma geração dois grupos que dispôs de oportunidades diferentes, e consequentemente existe um abismo comportamental e aspiracional entre eles: Uns são os filhos da burguesia nacional incipiente com ar capitalista. Para além de lhe ter sido vendido e até oferecido o sonho do american  life style, e todos valores da globalização ela adquiriu (in) conscientemente a ideia de que os pais devem prover tudo e a todo momento; uma geração que culpa aos outros pelo seu insucesso e pela falta de oportunidades e que vê o tempo passar ao lado dela mesma – Este grupo está a rasca sim e pior de tudo é que não sabe que está a rasca e que é resultado de uma agenda oculta.

 

Outros são filhos de camponeses e operários ciosos em triunfar e se tornar orgulho na zona de origem. Mas que as oportunidades lhes chegam a conta-gotas e porque tudo lhes foi difícil, contentam-se com muito pouco. Sonham em estudar na capital e ter um emprego no estado e poder mandar ajuda aos familiares espalhados pelo nosso vasto país.

 

E a culpa não é desta geração de jovens. Esta é vítima de um processo que paulatinamente tornou a máquina estatal deficitária e deficiente, o sistema quebrou-se, a ética, a moral e os costumes foram severamente abalados. Institucionalizaram-se praticas más e promoveu-se o laxismo estatal e por consequência o Estado desviou-se da sua missão primária que é prover o bem estar comum. A educação pública não é mais o que foi e por consequência ao invés de formar, informa e deforma.

 

A nossa pirâmide etária é maioritariamente jovem, e paradoxalmente vemos nela uma geração de jovens com preparo duvidoso e com enormes dúvidas em relação às suas capacidades. Uma geração que tem como referência tudo vem de fora e pouco de dentro. Somos jovens pobres e pertencemos a um país também pobre (ou pelo menos é nisto que nos fazem crer). Somos os jovens que acredita cegamente que para singrar na vida precisamos perseguir títulos, status, bens e posições, menos ideias.

 

Mas devemos lutar para sermos uma juventude com força motriz, uma geração livre intelectualmente que cria, transforma e participa no enredo do desenvolvimento integrado sem discriminação das cores partidárias, religiosas, raciais e ideológicas.

 

Esta é a síntese de três gerações de um país jovem e de jovens. Alguns mais estudados que os outros, mais ilustrados, mais experimentados e com melhor preparo, mas conformados, incapazes, e com medo de atingir a maioridade a que o país lhes convida a abraçar. Jovens que ancoraram seus sonhos em algum lugar. Seu maior pecado é não ir a luta e o seu legado fica entregue a sorte.

 

Por: Hélio Guiliche (Filósofo)

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