Em tempos infanto-juvenil o Brasil – o país do futebol, da mulata e do samba - representava, no meu imaginário, uma terra que também era minha. O colorido da sua miscigenação era o íman e o “verde e amarelo” da bandeira a marca identitária. Na verdade e à distância do olhar do tempo: o Brasil era o país para um provável pedido de Asilo Político - “instituição jurídica que visa a protecção a qualquer cidadão estrangeiro que se encontre perseguido em seu território por delitos políticos, convicções religiosas ou situações raciais”.
À época - anos 80 - era normal que as querelas do bairro desembocassem em palavreado hostil sobre o tom da pele de cada um. A mim e a outros com o tom de pele semelhante era dirigido o inevitável: Mulato não tem bandeira/não tem pátria. E a resposta era automática: a nossa bandeira/pátria é “verde e amarelo”.
Anos depois - no início do actual século - tive a oportunidade de viajar ao Brasil. Afortunadamente por nenhuma das razões que justificasse um pedido de asilo. Mas e por outras razões afins/contrárias, nomeadamente: as de combate à ordem mundial (então e ainda prevalecente) que criam e alimentam as condições para que os pedidos de asilo continuem na ordem do dia.
No dia da partida - depois da praxe das despedidas caseiras e cercanias - fui ao aeroporto no limite do tempo. Desço do táxi e um bagageiro - notando a minha aflição - pergunta: “Mulatinho, posso carregar a pasta?”. Ainda não lhe tinha respondido, lá tratou de fazê-la chegar ao ponto do “check-in”. Na despedida e com o peso da amável gorjeta o bagageiro sorriu e dedicou uma “boa viagem mulatinho”, terminando com a típica (e enciumada) recomendação (que é sempre dada à quem vai ao Brasil): não se distraía só com o futebol e o samba. É preciso completar a tríade.
No Brasil , concretamente na cidade de Porto-alegre, fui convidado a uma “peladinha” de basquetebol. Em pleno jogo eu fui ouvindo, entre outros, “corta ai, Neguinho” e “cuidado com o Negão”. Depois de um certo tempo – e até então não entendera nenhuma jogada - é que me apercebo que o “Neguinho” era eu e o “Negão” , um cara adversário e bem corpulento que para as minhas lentes do índico era mais para branco do que para mulato ou negro. De “Negão” apenas delatado por algumas características físicas no rosto que lhe expediam (os brasileiros) para a África.
No avião e de regresso à Perola do Índico veio-me à memória as brigas que sempre - na ausência de argumentos - culminavam no tom da pele. Assim foi até ao dia em que Mia Couto, escritor moçambicano, deu outro sentido ao debate, escrevinhando: “Minha raça sou eu mesmo. A pessoa é uma humanidade individual. Cada homem é uma raça…” .
No ofício de puxar-saco as coisas não seguem a lógica natural ou societal. No mundo do beija-mão, quando você é competente demais, você pode ser promovido para uma posição de relevo como forma de reconhecimento do seu trabalho. Mas, ao mesmo tempo, você corre o risco de permanecer no mesmo lugar eternamente. É que um gajo que lambe competentemente não se encontra em qualquer esquina. Porque é um ganha-pão que não se aprende na escola. É nato. Lambe-botas não se faz, nasce-se.
Um bom advogado, um bom sapateiro, um bom engenheiro, um bom pedreiro, um bom historiador, um bom alfaiate, um bom sociólogo, etecetera, faz-se com formação e experiência. Mas um bom lambedor, não. Esse não se planta. Emerge inesperadamente. Revela-se sozinho. E é raro. Parece que não, mas é. Muitos acham que é facil (e até desejam ser), mas bons nunca serão, se não nasceram com essa predisposição. Então, muitas são as vezes que o lambido não quer se desfazer do seu lambedor porque o lambido sabe que não é fácil encontrar um cara-de-pau despudorado e desavergonhadamente disposto a trabalhar.
Por isso, puxar saco demasiadamente bem pode ser mau para quem pensa em construir uma carreira na área. É muito provável que o tiro saia pela culatra. É uma profissão de carreira curta porque lambedor de não se herda. Normalmente, os lambidos não usam os lamdedores dos seus antecessores. Quando entra um novo chefe, a probabilidade do puxa-saco dançar a música do autoclismo é quase de cem por cento.
Outra crueldade do ofício de bajular é a perda total de confiança das suas próprias capacidades. Ou seja, mesmo que você suba de cargo por critério de competência técnica, você não acredita nisso. Você não vê e não reconhece essas qualidades. Você vai dando graças à graxa. E com razão: o lambido nunca exalta as verdadeiras qualidades técnico-profissionais do seu lambedor. Mas também porque não é do interesse do lambido tirar proveito da inteligência genuína do seu lambedor. A ele lhe interessa apenas a língua.
Então, vamos entender o que alguns dos nossos compatriotas estão a passar. É um "miksi" de expectativas: ser nomeado por ter lambido demais, mas também não ser nomeado pelas mesmas razões. Um ofício ingrato. Daí esse nervosismo todo que foi desaguar na juventude do pai de Samito. Até parece uma greve.
- Co'licença!
Assim estamos felizes com este pacote de descentralização? É esta descentralização que tanto desejávamos? Governador "dele" que tanto fizemos barulho para elegermos é esse mesmo? Está bom assim?
Facto curioso é que os próprios deputados da RENAMO que tanto "barulho" fizeram pela descentralização não conhecem o pacote. Queriam um Governador de Província eleito, mas não dominam as suas atribuições e os seus termos de referência. Para eles, basta ser eleito. Daí que temos o tal Governador que é um autêntico "panhonho". Uma figura política sem poder nenhum. Um fardo ao erário público. Um peso desnecessário.
Custa acreditar, mas é esse "nada" que a RENAMO conseguiu negociar: um Governador sem pasta. Um Governador de uma província que não interfere nos assuntos de terra, recursos minerais, energia, segurança, etecetera, do seu próprio território. Um Governador da Província que é, em abono da verdade, um convidado do Secretário de Estado da Província - uma figura "estranha" indicada pelo Presidente da República. No espírito deste pacote, o Secretário de Estado pode mandar chamboquear o Governador, querendo. O Comandante Provincial da Polícia é subordinado à essa figura "estranha". Se você não pode gerir as fruteiras, nem mandar nos trabalhadores da tua própria quinta, e ainda com risco de um dia desses o guarda te dar umas boas porradas - se tiver um pouco de azar, então alguma coisa não está bem.
É isso que conseguimos negociar. Na verdade, esse Governador é como aquele espantalho que se coloca na machamba para afugentar animais. Aquilo só assusta passarinho. Macaco - que de parvo não tem nada - descobre logo no primeiro dia que aquilo é boneco. Macaco sabe que o dono da machamba não depende de ventania para se movimentar.
Essa figura de Governador é uma grande piada. A nossa sorte é termos o Governador e o Secretário de Estado todos da FRELIMO. Se tivéssemos um Governador da RENAMO na Zambézia, por exemplo, eu já teria comprado e montado uma pipoqueira na sala. O filme seria muito longo e dramático.
Assim estamos contentes? Estamos democraticamente realizados? Estamos a curtir a nossa democracia?
- Co'licença!
Já haviamos combinado que a entrevista decorreria na esplanada do Hotel Tofo-Mar, e eu cheguei uma hora antes. Às nove. Estava bem disposto, inspirado para explorar ao máximo um homem invulgar. Um personagem. No fundo será uma ousadia, pois como se diz, se quiseres enfrentar um monstro, tens que ser um monstro, e eu não sou. É por isso que fui buscar vários reforços para encará-lo, de frente. E uma das vigas que vou usar para cingir o meu lombo, é o poder da imaginação.
A maré esta a vazar, e as ondas vão perdendo fulgor. Daqui onde estou a paisagem é linda, e tudo isto dá-me uma sensação indescritível de liberdade. Vejo, de longe, em pleno Oceano Índico, um barco passando em direcção ao sul, e um dos trabalhadores do hotel apressou-se a dizer que está alí um cruzeiro. Na verdade este é um ponto privilegiado de contemplação. É um lugar que mesmo assim está na iminência de ceder ao mar, que vai “comendo”, aos poucos e poucos, a terra que já não se pode gabar da sua firmeza.
Tenho à minha mesa uma pequena garrafa de água, da marca Vumba. Vou bebendo gole a gole enquanto espero por uma pessoa que nunca vi em carne, a não ser em livros. Estou ansioso. Há um terramoto que se anuncia dentro de mim, e esse sentimento pode abalar a minha alma e destruir-me por inteiro. Desde que estou aqui, há quarenta minutos, o meu telefone ainda não tocou, não sei se isso é bom. O silêncio, agora mais do que nunca, ruge a minha volta, parecendo que eu próprio sou o actor principal de um filme de terror.
São dez horas. O garçon aproxima-se e pergunta-me se vai mais uma água, uma vez que a garrafinha já não tinha conteúdo. Eu disse-lhe que sim, vocalizando suavemente uma palavra comprometedora, ou seja, o “sim” é de uma grande responsabilidade. E o que vou fazer na esplanada do hotel Tofo-Mar não é nenhuma brincadeira. Quer dizer, convoquei um homem inteiro que vai deixar os seus afazeres, para ser interrogado por mim.
Não páro de olhar para a entrada que dá acesso a tranquila esplanada onde estou sentado, esperando por um enigma. Pode ser que não faça, por incapacidade, as perguntas apropriadas. Eventualmente ele também irá me colocar questões, e não terei sabedoria para ir ao encontro das suas expectativas. Há um maremoto que me devasta mais o coração do que exactamente o cérebro. A minha pressão arterial deve estar perto dos duzentos, ou um pouco para além disso, e nestas condições o médico não vai levar-me, concerteza, à sala da cirurgia.
São onze e vinte. Vejo um homem muito entrado na idade (um ancião), dirigindo-se resolutamente a minha mesa, apoiado num cajado que suporta o lombo cansado. Parece dançar com as ancas descompensadas, ao estilo das hienas, animais com a dentadura mais feroz da selva. Ele sorri para mim, e não tive quaisquer dúvidas de que era ele. Levantei-me, sorrindo também, e fui ao seu encontro.
Abraçamo-nos efusivamente, e eu senti o corpo do homem tremendo como a terra flagelada pelos sismos. Também tremi. E nós os dois passamos a dançar a música dos nossos corações. Era uma espécie de transmutação, porque este momento trouxe-me a serenidade que precisava para entrevistar este mamute. Mas a entrevista não se materializou. Ele pediu – depois de nos sentarmos - um duplo de “scotch” e disse-me assim, amigo, desculpa, vamos conversar amanhã, hoje deixa-me contemplar esta maravilha do Índico. Fica comigo, por favor, conta-me a tua vida.
No banquete por ocasião da investidura do Presidente da República (PR), o investido, Filipe Jacinto Nyusi, proferiu alguns pronunciamentos que despertaram a curiosidade dos que acompanham a vida política nacional, mormente quanto a composição do novo governo. Pairou a ideia de que na composição do novo governo o PR não se contentaria com o “balneário partidário”, abrindo alas para o “ balneário da sociedade “ que é, quiçá, mais vasto e nas palavras do PR: de altíssima qualidade.
Abaixo e de forma breve, partilho um apanhado do que foram as expectativas, conclusões e lições aprendidas a partir de excertos do “ Discurso de Sua Excelência Filipe Jacinto Nyusi, Presidente da República de Moçambique, no Banquete oferecido por ocasião da Sua Investidura como Presidente da República” vis-à-vis a composição do novo governo.
“O Estado não se esgota no governo, como muitos pensam. Há várias posições relevantes no tão diverso quadro institucional de Moçambique. Esse quadro diversificado pede o concurso do talento e da experiência de um amplo leque de quadros, cuja vontade seja servir Moçambique./O meu governo irá capitalizar esses talentos nacionais… ”: com o anúncio do novo governo ficou patente, fora o entendimento contrário, que o grosso ou a totalidade dos membros do governo é formado por membros do partido do PR. O resto que aguarde a possível chamada para as outras posições relevantes fora as do governo.
“…A inclusão é muito mais do que a acomodação de um grupo restrito de compatriotas, seja qual for a sua origem. Incluir é ouvir os que pensam diferente. Incluir é dar oportunidades iguais a todos, é exercer justiça social, é promover o emprego.”: fora os cargos, para o PR o moçambicano é convidado “…a participar com o seu saber, experiência e espírito crítico no processo de identificação de soluções para os desafios que os moçambicanos irão enfrentar no próximo quinquénio” (discurso da tomada de posse)
Em suma, nada esta perdido e as expectativas transitaram para o preenchimento das vagas do governo em falta e ainda dos cargos por preencher de muitas outras posições relevantes do quadro (refeitório?) institucional moçambicano. Quem sabe se no que falta preencher e em tempo de compensação o PR marque um golo na própria baliza.
Lembro-me como se fosse ontem: quando Celso Correia foi nomeado ministro, o mundo quase que ia desabando. Dizia-se, na altura, que Correia era um menino de recados e mimado de Armando Guebuza que, por isso, ia ao ministério para sabotar o Presidente Nyusi. Correia era marionete e puto de boladas sujas do Guebuza.
Celso Correia não era nada ministeriável, logo para um sector importante e sensível como o da terra, ambiente e desenvolvimento rural. Não tinha experiência. Era um miúdo atrevido e ambicioso que não tinha noção das coisas.
Já o Rajendra de Sousa entrou no ministério cheio de sabedoria e de coisas para dar. Enquanto vice-ministro, fez sombra ao próprio ministro. Tanto que não foi surpresa para ninguém que Rajendra passasse a ministro. Era o mais sensato. Era o que se esperava.
Do primeiro ao último dia, havia sempre uma expectativa em relação ao Rajendra de Sousa. As pessoas sempre acreditavam que Rajendra guardava uma carta da sabedoria na manga e que poderia tirá-la a qualquer momento. Mas nada!
Hoje, Celso Correia é o tal ministro. O ministro irreverente, atrevido, ousado e criativo. Aquele ministro que não pode ser descartado. O ministro que é capa na FRELIMO. O ministro apoiado pela opinião pública. Hoje, Celso Correia e João Machatine são os tais ministros.
Enquanto isso, o Rajendra sumiu. Um grande académico e intelectual com voz de Jazzista na menopausa entrou gritando e saiu mudo. Perdeu ideias. Nunca vou-me esquecer daquele dia que o Rajendra apareceu na tê-vê apelando ao consumo massivo de "nhewe"/"tseke" porque, segundo ele, amolecia as fezes. Ali logo me apercebi que a bússola do cota estava avariada. Nunca consegui entender a relação entre a maciez do nosso côcô e a industrialização e comercialização do país.
CONCLUSÃO
Por causa dessa e outras realidades, custa-me avaliar o governo, de acordo com as experiências ou diplomas das pessoas nomeadas. Tenho medo de comprar gato por lebre. Para fazer uma validação saudável do governo é preciso conhecer o objectivo do Estado. Ou seja, onde queremos ir. É preciso conhecer a Missão, a Visão e os Valores do Estado, como um todo, e dos Ministérios, como áreas de apoio.
Por exemplo, qual é o objectivo da educação? Aqui parece que cada ministro cria a sua própria estratégia. É tudo pessoalizado. Ora 2ª classe tem exame, ora não tem; ora há 2ª época, ora não há; ora há exame extraordinário, ora não há; ora o ensino básico vai até 7ª classe, ora vai até 9ª; ora os exames são corrigidos em Maputo, ora cada um corrige sozinho; ora a passagem é automática, ora é semi-automática; ora é electrónica, ora é quase-mecânica; ora o livro deste ano é desta editora, ora é daquela editora; ora isto, ora aquilo. Afinal, qual é a visão do Estado para a Educação a longo prazo?
Parece que estamos a construir um edifício que ninguém conhece o projecto. O pedreiro, o carpinteiro, o canalizador, o electricista e o serralheiro não sabem como será o edifício, apenas sabem que é para residência. Por isso, o critério de avaliação do trabalho de cada profissional é a sua esperteza e a sorte.
Então, é aqui onde moram os meus limites.
- Co'licença