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quarta-feira, 30 outubro 2019 06:58

Ainda és meu irmão

Nessa altura, Maputo era a minha fortaleza (entre 2000 e 2007). E eu vivia intensamente esse tempo, sem saber que daqui a pouco iria ser levado por outros ventos. Na verdade eu já trazia muitos retalhos,  que até hoje não consegui recozê-los para reestruturar a minha espinha dorsal, que entretanto está a vacilar. Eram as noites que me fascinavam, debaixo do néon, e o iluminar psicadélico dos clubes nocturnos, onde passei muitas fatias da minha vida. Entregando-me por inteiro.

 

Também andei por aí, na gandaia dos livros, misturando-me com os poetas sempre prontos a oferecerm-me palavras que me aquecem até hoje. E eu não me canso de usá-las para me sentir livre. Faço isso amiúde, sobretudo quando a angústia me fustiga. Aliás ainda ontem servi-me de um desses versos para enviar uma sms a uma mulher que nunca mais chega, e eu permaneço nesta longa espera, não me aguarde, basta que penses em mim. É esta poesia que disfarsa as minhas dores.

 

Em Maputo, como já disse, eu deixava-me conquistar pelas noites. Embrenhava-me nelas a procura de refúgio, e uma das grutas a que sempre recorri, é o Cinema Gil Vicente, ali em frente ao Jardim Tunduro, na Avenida Samora Machel. Lembro de um dia em que o Dua apareceu naquele lugar e cantou a música do Wilson Paulo, o filho do blues man João Paulo, e o título desse tema é, Ainda és meu irmão.

 

Dá-me a mão

 

Dá-me um abraço

 

Dá um passo

 

Faz um laço

 

Ainda és meu irmão

 

Poxa! Senti  o corpo todo cedendo, como se logo a seguir  as nuvens fossem abrir-se para dar espaço ao sol. Até porque foi  isso mesmo que aconteceu. A sala toda ficou em silêncio, ouvindo o Dua. E eu fazia parte desse silêncio, sentado à mesa do João Paulo, o JP, mesmo em frente ao palco, sem me preocupar com o tempo.

 

É confortável estar ao lado do João Paulo, que bebe jack daniels honey, para catalizar a voz. Uma voz por demais rouca. Bela. Única. Inexistente em Maputo. Ele acaricia o meu braço e diz assim, este gajo canta muito bem, pa! Referia-se ao Dua. Eu disse assim para o JP, vocês os dois cantam muito, caramba! Bebeu num trago mais um duplo e disse-me assim, vai-te lixar!

 

Esses pedaços da vida ficaram-me na memória, de um tempo em que  os meus  passos eram uma verdadeira anarquia. A bebida era o meu capuz, para fechar a vergonha de urinar na alma das acácias e fingir que não me importo com nada, quando no fundo doía-me as entranhas. Mas hoje estou aqui, gozando com tudo isso. Inventado um novo futuro que me mata de ansiedade.

 

Sou um sobrivente desse cataclismo, por isso passo a vida a rir-me do meu passado, e faço um esforço tremendo para me lembrar apenas das coisas mais bonitas que eu passei, como esta de estar na mesa do João Paulo, no Cinema Gil Vicente, ouvindo Ainda és meu irmão, na voz do Dua. Que é uma verdadeira catarse.

Como era de esperar, o julgamento de Jean Boustani nos EUA já está a trazer revelações perniciosas sobre os contornos da maior roubalheira da coisa pública na história do Moçambique independente. Os “borderaux” ontem relevados, mostrando transferências para o Partido Frelimo, são indicadores da razão da relutância da elite no poder em permitir que Manuel Chang vá extraditado para os EUA.

 

Mas mesmo sem Chang lá em Brooklyn, muita coisa podre tem vindo ao de cima, incluindo nomes de empresas, como os grupos Afrin e JAT, com investimentos de vulto na indústria hoteleira, envolvidas numa teia de lavagem de dinheiro centrada nas “dívidas ocultas”.

 

Na semana passada, uma especialista americana revelou o “tracking” de transferências, envolvendo bancos americanos, para alguns empresas, arguidos e conspiradores, ressaltando pagamentos às famigeradas do calote (MAM, EMATUM e Proindicus) e à Palomar (de Andrew Pearse), à Privinvest e à Walid Construções (em nome António Carlos Rosário).  

 

Este grupo Walid Construções, cujos sócios são o argelino Mohamed Fekih e a portuguesa Judite Coutinho Antunes dos Santos (que já teve uma função de coordenadora da Escola Portuguesa de Moçambique) recebeu dezenas de milhões de USD e estava à frente dos empreendimentos hoteleiros de Rosário. Com tanta evidência, nunca se compreendeu a razão por que Fekih e Judite dos Santos não foram constituídos arguidos no processo moçambicano. Consta que o primeiro já fugiu de Moçambique. Mas quem efectivamente, para além de Rosário, recebeu parte da massa via Walid? Com que Rosário partilhou o dinheiro?

 

Os dados revelados pela especialista americana, na semana passada, decorrem de um rastreio judicial e, portanto, são mais relevantes que qualquer planilha de subornos intencional encontrada nos registos de funcionários da Privinvest. Esta semana, essa planilha de subornos veio novamente ao de cima, agora com “nomes de guerra” dos potenciais beneficiários. A planilha contempla nomes que já foram alvo de investigação pela PGR mas sobre quem não se encontrou evidências de que tenham recebido, efectivamente, o que é lá sugerido. Mas também indica valores atribuídos a um e outro arguido, que não condizem com o que, efectivamente, foi rastreado, como no caso de Renato Matusse (que recebeu mais do que a planilha de subornos sugere).

 

Isto mostra que, cada vez mais, o que vai contar para a opinião pública (e como prova judicial) são os rastreios trazendo “borderauxs” como prova. Um simples “post it”, com indicação de intenção de pagamento ainda não pode ser considerada como evidência última. Por isso, é de esperar que o julgamento americano traga muito mais evidências judiciais antes do nosso começar, levantando-se, agora, também, a curiosidade e expectativa em relação à reacção da PGR em face das evidências segundo as quais a Frelimo recebeu 10 milhões de USD. Há quem foi detido por muito pouco.

quarta-feira, 30 outubro 2019 06:09

A patética falta de tomates do sheik Abdul Carimo

Quando o Presidente da Cê-Ene-É, sheik Abdul Carimo, diz que não pode dizer que as eleições foram livres, justas e transparentes porque reconhece que houve irregularidades, o que quer dizer exactamente? Juro que não entendi. Quando ele diz que vai deixar esse refrão para o Cê-Cê, é para a opinião pública pensar o quê? Por que é que não faz isso por escrito e declara nulos os resultados de uma vez por todas, então? O que o impede? Qual é o medo? 

 

É que quem organiza e zela pela qualidade de todo o processo eleitoral é a Cê-Ene-É. Quem deve evitar e mitigar as irregularidades é a Cê-Ene-É. Ou seja, é a Cê-Ene-É quem fiscaliza as eleições. É a Cê-Ene-É quem deve fazer cumprir a ética. Aliás, é por causa disso que assumiu como sua meta e missão a liberdade, a justiça e a transparência. Quer dizer, se as eleições não forem livres, justas e transparentes, o trabalho da Cê-Ene-É foi um fiasco. O discurso de ontem foi um atestado de incompetência limpinho limpinho. Merece uma demissão colegial massiva. 

 

"Por eleições livres, justas e transparentes" não é um simples slogan como "vodacom, vamos?" ou "eu sou daki" ou "frango nacional é melhor". Não! Mais do que um slogan é uma meta institucional. É missão. É visão. É valor. É compromisso. É filosofia. É tudo o que a Cê-Ene-É tem para vender. Se não existir isso, então, a Cê-Ene-É pode (o termo é "deve") fechar as portas. Já não tem produto para vender. Não tem mais nada para oferecer. Acabou. Faliu. 

 

"Por eleições livres, justas e transparentes" não é marca do Cê-Cê. Não é o Cê-Cê que carrega, em primeira instância, esta responsabilidade. Esta é responsabilidade primária e primordial do organizador das eleições. Se fizermos um exercício básico de subtração como: 

 

Resultado eleitoral - Livres - Justas - Transparentes = Zero eleição. 

 

Isto é, do "resultado eleitoral" , se se subtrair "a liberdade", "a justiça" e "a transparência", não vai sobrar nada de eleição. É como se não tivesse ocorrido eleição nenhuma. É igual a "zero eleição". É matemática básica elementar. 

 

Eleições livres, justas e transparentes é o produto final que se espera que o órgão de gestão eleitoral entregue ao povo. Não são os votos válidos, não são os votos nulos, nem as abstenções que contam. Não! O que, de facto, conta é o "livres, justas e trasparentes". Sem isso a Cê-Ene-É é um elefante branco. É uma associação criminosa para delinquir de forma continuada. Uma quadrilha. Uma gangue. Neste caso, o sheik Abdul Carimo estaria a declarar nulas as eleições, mas já com as malas feitas. Ele e a sua equipa. Não pode dizer que as eleições não foram livres, justas e transparentes enquanto entrega o dossier ao Cê-Cê, com aquele sorriso oco de ladrão do bairro quando entra na igreja. É burla por defraudação. Também abuso de confiança. 

 

É um autêntico contrassenso dizer que o escrutínio que a Cê-Ene-É organizou foi repleto de irregularidades e, por isso, não pode ser considerado nem livre, nem justo e nem transparente, mas o Cê-Cê pode validar e proclamar os resultados. Não soa bem. É cobardia. É muita pornografia. Se o próprio "dono" do processo reconhece que o seu trabalho não atingiu as metas planificadas, é para o "outro" fazer o quê? É o mesmo que comprar peixe podre e entregar o cozinheiro e ainda ficar a espera que o cozinheiro faça milagres e o peixe não provoque diarreia. 

 

"Conditio sine qua non" para a legitimação de eleições é o reconhecimento da existência de liberdade, de justiça e de transparência por parte dos principais actores, particularmente do  órgão gestor. Em situações normais de temperatura e pressão, o Cê-Cê devia mandar aquele molho de papel para a sanita. O que o sheik disse foi: "eis aqui um monte de lixo, vocês que digam ao povo que é adubo". 

 

Mas será fome?! Conheci o sheik Abdul Carimo por aí malta 2004 quando eu era estudante-bolseiro da Ú-É-Eme. Eu gostava de ouvir as suas palestras (bayan) das sextas-feiras na mesquita Muhamad (S.A.W.), em Maputo. Sempre o achei um homem inteligente e com tomates gigantescos e múltiplos debaixo daquela sotaina árabe. Calmo e sereno. Nunca me pareceu um "maulana" esfomeado como aquele jovem que não sabe fazer subtração básica de "17 - 8 = ?". Que decepção!

 

Agora só resta saber o que é que o sheik Abdul Carimo está a espera para se demitir, já que ele próprio reconhece publicamente não tem competência para organizar eleições livres, justas e transparentes, que é tudo o que se espera dele. A um homem não se lhe devia permitir escassear tomates daquela maneira. O sheik está a exagerar. Assim também não dá. Vamos brincar - sim, mas com limites. Tá bom!? 

 

- Co'licença!

segunda-feira, 28 outubro 2019 06:41

Empecilhos de uma jornada

Toscanejou para esquerda levado pelo embalo do machimbombo de passageiros interprovincial, depois para direita, continuou por algum tempo ao ritmo do embalo até encontrar algo macio e deixou-se estar.

 

O seu hospedeiro movimentou-se ligeiramente, mas o seu inquilino continuava encostado no seu ombro, sacudiu-o abruptamente e este despertou ensonado e babado.

 

O autocarro já havia percorrido 110 km depois da partida às 04h00 da manhã da sua estação na cidade da Beira.

 

Usurpado pelo cansaço imposto pela humidade, a maioria dos passageiros dormiam para minimizar o calvário da viajem. Outros nem por isso cavaqueavam sobre este ou aquele assunto relativo à situação político-económica do país.

 

“Os estrangeiros estão a tomar conta dos negócios em Moçambique” relatou um dos conversadores. “Mas também moçambicano é preguiçoso, não quer fazer nada” - dizia outro.

 

“Vejam como está esburacada a estrada nacional número um, devia ser a melhor estrada de moçambique, sinceramente nossos governantes são incompetentes” – discursava outro.

 

De repente as vozes calaram-se como que uma ordem suprema os comandasse para tal, ouvia-se somente o roncar do motor e o ressonar conjugado deste e aquele passageiro.

 

O destino da viajem era a cidade de Maputo, no sul de Moçambique, num percurso de mais de 1200 Km. O autocarro albergava perto de 47 passageiros que era a sua lotação. Havia passageiros de diversas origens, Manica, Tete e Beira, estavam todos absortos nos seus pensamentos.

 

Moitas verdejantes margeavam a estreita estrada, e quando de longe o motorista descobria um camião que vinha no sentido oposto encostava mais a esquerda para permitir que se cruzassem sem dificuldade e sempre que tal sucedia, um abanão sacudia o autocarro.

 

Depois, o machimbombo alcançou o topo de um pequeno decline, onde podia-se deslumbrar a ponte sobre o rio Save com as suas águas cristalinas movendo-se mansamente por um lado, enquanto grande parte do rio estava completamente enxuto. A travessia procedeu-se com o machimbombo circulando a velocidade permitida.

 

Notava-se no semblante da maioria dos que transitava para o sul do país pela primeira vez um temor, creio que convocaram os espíritos dos seus antepassados para que redobrassem a vigilância.

 

“Vamos para terra de dono” – pareciam cogitar em uníssono.

 

O machimbombo alcançou o posto de controlo e imobilizou-se, uma série de agentes das autoridades com muito rigor exigiam a documentação, deixaram-nos com a sensação que estávamos num posto fronteiriço de um país estrangeiro.

 

Autorizados partimos, perdemos mais de vinte minutos na conferência, o motorista foi acelerando gradualmente o veículo para recuperar o tempo perdido.

 

A competência do piloto foi testada quando no povoado de Maluvane teve que efectuar contornos acrobáticos para escapar os muitos buracos no asfalto com apetência de engolir o machimbombo. Esse movimento acrobático reduziu a velocidade, perdemos muito, mas muito tempo; instantes depois uma bátega sacudiu o tejadilho do autocarro, a temperatura desceu, os passageiros agasalharam-se. O duplo empecilho atrasa-nos sobremaneira, perdemos quase duas horas e meia nessas gincanas acrobáticas que só terminaram no povoado de Pambara.

 

Depois uma mescla de murmúrios e um cheiro nauseabundo despertou a atenção dos passageiros, a vozearia ia-se incrementando à medida que o cheiro se exacerbava. As lamúrias que moravam no autocarro chamaram a atenção do motorista que também fora fulminado pelo disparo do peido, este viu-se na incumbência de imobilizar o veículo com um abrupto frear.

 

“Quem fez isso?” – questionou o motorista fora de si.

 

A zona de desconforto que albergava o titular da flatulência foi investigada, acusações infundadas iam surgindo até que um passageiro de faro apurado detectou o responsável, uma anciã, ela admitiu a infração cabisbaixa.

 

“A senhora podia pedir” – resmungou mais uma vez o motorista.

 

Desodorizantes multi-marcas disparam suas fragrâncias para derrubar o cheiro do peido, esses aditivos químicos em formulas desconhecidas pelos seus donos catalisavam ainda mais o desagradável cheiro. 

 

Desembarcamos em debandada com as narinas tapadas, uma pausa involuntária que permitiu esticar as pernas, urinar até fumar um cigarro, este apeadeiro desgostou o motorista que tinha que chegar a ponte sobre o rio Limpopo em Xai-Xai antes das 21 horas porque senão ser-nos-á interdito a passagem.

 

Reembarcamos com o ar purificado, notava-se nos vizinhos da anciã expedidora de gases uma indisposição.

 

A vigilância nasal foi redobrada por todos os passageiros, a velocidade do machimbombo progredia, no asfalto agora atapetado.

 

“arro, arro” – responde uma passageira ao telefone, falando em cinyungwe¹

 

Logo depois um passageiro solicita que o motorista pare, chegou ao seu destino, são perto das 15h00, a chuva cai de mansinho.

 

“Chegamos à Maputo?” -  questiona-me um velhote.

 

“Não” - digo com um sorriso, descobrindo que ele ignora a distância real que ainda falta.

 

“Só chegaremos ao anoitecer” -  remato para eliminar a ansiedade do senhor.

 

Um regozijo colectivo sucede em Massinga aquando do desembarque da anciã libertadora de gases, suspiramos todos aliviados, e como bónus o motorista permite que recorremos a um quiosque para adquirirmos manjares. 

 

“Só têm dez minutos” – dita o motorista.

 

Partimos com os comensais abocanhando seus nacos de frango, outros bebericando seus refrigerantes.

 

Nota-se agora um certo entusiasmo entre os passageiros, para tal concorre muitos factores, um dos quais é saber da proximidade dos nossos destinos, outro com certeza é ter deixado para trás a senhora com problemas intestinais.

 

O machimbombo alcança a cidade da Maxixe com o crepúsculo roubando a luz do dia, descreve uma curva num pequeno arriamento com ligeira inclinação para direita, a altura do autocarro permiti-nos deslumbrar a baia e a cidade de Inhambane.

 

Com os farolins espreitando o asfalto auxiliando o experimentado motorista, o machimbombo ia ganhando terreno.

 

“Xai-Xai” – diz um passageiro.

 

Olho para o relógio, são 19h30, congratulo secretamente o motorista.

 

A proximidade do destino conferia uma certa animação aos passageiros, uma mudez voltou a habitar o autocarro, depois roncos assaltam a audição dos viajantes que ainda não dormiam.

 

As 22h22 chegamos finalmente a cidade de Maputo, a azáfama que caracteriza a urbe já havia sido engolida pela noite.

 

¹cinyungwe é um idioma bantu falado por mais que 400 mil pessoas em Moçambique, principalmente na margem sul do rio Zambeze, na província de Tete, desde a fronteira com a Zâmbia até Doa no distrito de Mutarara. (extraído https://pt.wikipedia.org/wiki/Nhúngue)

segunda-feira, 28 outubro 2019 06:20

A culpa é do sistema eleitoral

Eu acho que, em condições normais, cada actor do processo eleitoral tem as suas tarefas e, por isso, as suas responsabilidades. As tarefas são tão distintas que não se misturam e nem se confundem.

 

Aos órgãos de gestão eleitoral - no nosso caso, a Cê-Ene-É e o STAE - por exemplo, cabe-lhes a tarefa de gerir todo o processo. São eles que organizam e monitoram as eleições. São eles que devem garantir a qualidade e a ética no processo. Dito mais barato, é dever deles evitarem fraudes.

 

Os candidatos e os partidos políticos são simples concorrentes. A sua responsabilidade no processo é de legalizar a sua candidatura, como manda a lei, promover o seu manifesto eleitoral e mobilizar simpatizantes. Ou seja, vender o seu peixe para conquistar votos.

 

A tarefa dos eleitores é legalizarem o seu direito de votar junto dos órgãos de gestão eleitoral, ouvirem os manifestos eleitorais dos partidos políticos, ajudarem - de livre e espontânea vontade - os seus partidos a promoverem os seus manifestos eleitorais e, no dia da votação, escolherem o candidato e/ou o partido que quiserem.

 

A Polícia tem o dever de garantir a ordem e tranquilidade ao processo. Quando a segurança está em causa, a Polícia é accionada pelos órgãos de gestão eleitoral locais no sentido de normalizar a situação.

 

Quando os candidatos ou partidos políticos notarem uma violação ou ilícito eleitoral grave, levam o caso aos tribunais locais existentes. Os tribunais julgam o caso - sem pressão interna ou externa - segundo a lei.

 

O Conselho Constitucional tem a última palavra sobre o processo. Dependendo da informação factual que tem, o Cê-Cê pode validar ou não os resultados apurados pelos órgãos de gestão eleitoral.

 

E os observadores eleitorais, qual é o seu papel? Resposta: observar, e ponto final. Observação eleitoral é observação mesmo, no verdadeiro sentido da palavra. O trabalho de um observador eleitoral (a sociedade civil) é como o de uma câmera de vigilância que se coloca no portão de uma residência. Cabe a câmera observar e gravar tudo o que acontece dentro do ângulo e direcção em que ela foi montada. Querendo, o proprietário pode ver o vídeo do que aconteceu no seu portão nas últimas 24 horas. E a câmera vai mostrar quem entrou e quem saiu, com "quem" ou "o quê" entrou e saiu e a que horas. O vídeo vai mostrar um ladrão a envadir o portão e a tirar televisores de dentro, mas não vai pegar o ladrão porque não é sua responsabilidade. Se o proprietário quiser pegar ladrões, compra um bulldog ou contrata malta Dgi-Fô-Esse.

 

Então, não é responsabilidade do observador eleitoral pegar e algemar pessoas que cometem crimes ou ilícitos eleitorais. Cabe-lhe relatar o que viu ou ouviu com factos. Querendo ou dependendo da gravidade e veracidade dos factos, os órgãos de gestão eleitoral ou o Conselho Constitucional pode usar essa informação para sustentar as suas decisões.

 

O jornalista reporta os acontecimentos que estão a acontecer durante o processo mediante as evidências que tem. O jornalista fala dos factos ao público. Se vir alguém a cometer um ilícito eleitoral, ele pode filmar ou fotografar ou sei-lá para em seguida reportar ao seu público como tudo aconteceu. Também não cabe ao jornalista algemar ladrões de voto. Quem faz isso é a Polícia.

 

Se for a reparar com alguma atenção, vai notar que em Moçambique tudo e todos se misturam. Em nome da DESCONFIANÇA - sublinhe-se "desconfiança" - está tudo um caos. Todos querem gerir o processo, todos querem fazer campanha, todos querem julgar, todos querem algemar, todos querem observar e todos querem reportar. Ou seja, todos estão em todo o lado. Todos querem fazer tudo.

 

A FRELIMO, a RENAMO, o Eme-Dê-Eme, a Pê-Ere-Eme, a sociedade civil, os jornalistas, os juízes, os padres, os pastores, os sheiks, os bispos, etecetera, etecetera, estão todos na Cê-Ene-É a gerirem os processos eleitorais. Em nome da DESCONFIANÇA, todas as equipas enviaram alguém à FIFA para ver as coisas de perto e evitar batotas. Em nome da DESCONFIANÇA, as duas equipas em campo têm seus homens na equipa de arbitragem em campo e na equipa do vídeo árbitro.

 

Hoje em dia já não se entende quando se diz Comissão Nacional de Eleições. Já não se sabe a quem se refere. É que a Cê-Ene-É são todos. Dizer que a Cê-Ene-É orquestrou a fraude é dar um tiro no próprio pé. Culpar a Cê-Ene-É é culpar-se a si mesmo.

 

A culpa é do sistema eleitoral que é obsoleto. Este sistema eleitoral não serve para nada. Um sistema eleitoral onde todos os concorrentes gerem não é sustentável. Um sistema eleitoral assim torna-se cada dia mais suspeito. Um sistema eleitoral assim é uma autêntica farsa. Ela própria é uma fraude. Ninguém pode alegar falta de transparência nas decisões da Cê-Ene-É ou do Cê-Cê porque todos estão lá.

 

A cada pleito temos uma nova lei eleitoral que só serve para enfiar mais membros ou na Cê-Ene-É ou no Cê-Cê e etecetera. Ninguém tem a coragem de debater o sistema eleitoral em si. O nosso sistema eleitoral é uma vaca leiteira. É uma estrutura montada para acalentar estômagos partidários. Uma geringonça criada pela FRELIMO e alimentada pela RENAMO para acomodar as suas panças e fazerem das eleições um teatro mal ensaiado. 

 

Não me espantarei, se na próxima lei eleitoral a RENAMO proponha a colocação dos seus membros na Rádio Moçambique, na Televisão de Moçambique e no jornal Notícias.

 

Mesmo que os resultados sejam invalidados pelo Cê-Cê e a eleição seja repetida, não vai mudar nada. O problema não é o Abdul Carimo, não é Nyusi, não é Ossufo, não é a Polícia, não são os Eme-Eme-Vês, não são os observadores nem jornalistas. O problema é o sistema eleitoral no seu todo. Não é funcional. É um sistema de tacho.

 

Para a credibilização do processo eleitoral é imperioso que o sistema seja profissionalizado. É claro que a FRELIMO não está "bizi" com isso, mas também a RENAMO não quer discutir o assunto. Neste quinquénio a RENAMO se preocupou em discutir apenas a descentralização, ou seja, a eleição de governadores, e nos próximos 5 anos estará entretida com a eleição de administradores distritais. Com este sistema eleitoral obsoleto isso não vai mudar nada. A FRELIMO continuará com as suas retumbâncias eleitorais. É ela que tem mais padrinhos na cozinha.

 

Espero ter sido entendido.

 

- Co'licença!

sexta-feira, 25 outubro 2019 07:13

Eleições enquanto (in)certeza

Desde cedo, as eleições constituíram a premissa base de debate e estudos em ciência política. O “acto do voto” foi tido como fundamental para o exercício do poder através da submissão e da dominação. Entre outras variáveis, a incerteza constitui elemento fundamental para o estabelecimento de um “jogo eleitoral” em que os concorrentes possam competir em iguais circunstâncias, mesmo que tal não seja de todo desejável ou alcançável quando se pretende buscar o poder. Como aponta Przeworski (1984: 84), as posições assumidas pelos distintos actores políticos não podem determinar “os resultados do processo político”, de tal sorte que “numa democracia ninguém pode ter a certeza de que seus interesses serão vencedores em última instância”. Em uma democracia, portanto, “todos devem submeter seus interesses à competição e à incerteza”.

 

Conscientes da nossa própria limitação, somos susceptíveis de omitir outras dimensões de análise. Assim, a partir deste comentário pretendemos sugerir alguma explicação em torno do recente processo eleitoral, exercício a ser feito em dois ângulos que devem ser lidos como complementares:

 

  1. Sobre os actores do processo

Numa eleição podem existir vários actores, sendo que os primeiros e fundamentais são os que directamente participam na qualidade de eleitos e eleitores. Nestes podemos adicionar os órgãos de administração e gestão eleitoral (OAGE: STAE & CNE), os quais são fundamentais para a organização de todo o processo, que em termos de ciclo não se circunscreve ao momento e dia da eleição em si. Do que sobre as eleições de 15 de Outubro se pode extrair, verificou-se o que chamamos de “confiança nua” entre os três actores acima mencionados: OAGE, eleitores e eleitos, estes últimos identificados como candidatos e partidos políticos. Notou-se e continua a registar-se tamanha insegurança sobre o que cada actor deve fazer para garantir a incerteza eleitoral (o debate em torno dos 300 metros foi disso um exemplo). Enquanto os eleitores depositam pouca esperança em quem votam, os eleitos pouca ou nenhuma confiança encontram em quem deve organizar o processo. Os partidos não conseguem cumprir a função de limitar as escolhas do eleitorado, deixando-os assim numa situação de total e completa discotecagem no mercado eleitoral.

 

Embora não se conheçam os dados da participação eleitoral na sua globalidade, podemos avançar com a hipótese segundo a qual o crescente descrédito que existe entre os eleitores e eleitos deve-se ao vazio de propostas que se verifica nos políticos na sua globalidade, sendo que os moçambicanos não são excepção. De forma cada vez crescente, emergem “novas” formas de participação política que já não encontram acomodação na “política usual” que é exercida dentro dos partidos políticos tal e qual conhecemos e por meio do voto.

 

No que toca aos OAGE excluímos desta análise as propostas que se colocam sobre a reforma que se deve exercer, pois pensamos que não será possível encontrar modelo adequado se antes não soubermos o que realmente se busca numa eleição: a incerteza sobre o(s) vencedor(es). Pensamos que nenhum modelo será eficaz se não conseguir garantir que os vencedores não sejam conhecidos antes da realização do próprio escrutínio. Entendemos ainda que os OAGE não são um corpo estranho ao processo em si, eles emergem e se constituem a partir do próprio sistema, sendo que a sua análise deve ser vista como um todo holístico. In fine, não nos parece que o debate central se coloque ao nível do actual modelo dos OAGE.

 

  1. Sobre a resistência à mudança

Para explicar a nossa segunda hipótese nos vamos apoiar aos estudos feitos no campo da administração pública quando abordamos as possíveis razões da resistência à mudança dentro de uma organização. Assim, podemos sublinhar que o processo de mudança envolve a combinação de vários factores, sejam internos ou externos, decorrendo de forma individual ou colectiva nas organizações, o que vai desde alterações na tecnologia, implantação de programas de qualidade, mudanças na gestão, fusão, alterações nas leis por meio do governo, alterações de máquinas, o que exige adaptações, mudanças de atitude e de comportamentos por parte dos funcionários tanto da base como do topo. As fontes de resistência individuais à mudança residem nas características humanas básicas, como percepção, personalidades e necessidades.

 

A resistência à mudança começa sob certas condições: falta de clareza (os indivíduos reagem quando recebem uma informação incompleta sobre modificações que as afectarão); percepções diferentes sobre o motivo da mudança (a tendência é ver apenas aquilo que se espera ver); pressão de forças contraditórias (surge na comunicação entre os líderes e os gerentes quando o funcionário é pressionado a incorporar novos padrões em pouco tempo e estes novos padrões não estão suficientemente claros); hábito, segurança, factores económicos (medo de redução dos rendimentos); medo do desconhecido e processamento selectivo de informação (os indivíduos passam a processar selectivamente as informações para manter suas percepções intactas, elas ouvem só o que querem ouvir).

 

Colocadas as premissas acima, podemos tomar os partidos e candidatos concorrentes como organizações onde os eleitores são seus funcionários. Nessa mesma organização, antes das eleições gerais de 2019 o gestor chamava-se Frelimo (e seu candidato presidencial), sendo que a cada cinco anos se deve renovar o mandato, e dessa vez chegou-nos como proposta os partidos Renamo, MDM e AMSUI (e seus candidatos). Sobre as propostas pensamos ser necessário colocar as seguintes questões, as quais não temos respostas: estariam os funcionários (eleitores) dispostos a exercer a mudança? que garantias eram colocadas para que os funcionários (eleitores) pudessem exercer tal mudança? com que intensidade e clareza os funcionários (eleitores) receberam informação capaz de os levar a exercer alguma mudança? seria, portanto, a mudança desejável ou oportuna?

 

Concluímos que a presente eleição foi uma oportunidade que permitiu levantar mais questões do que respostas que em momento oportuno merecerão estudos aprofundados. Por hora levanta-se a necessidade de repensarmos a estratégia de como exercemos a actividade política em Moçambique, a mesma que não deve se circunscrever apenas ao momento eleitoral per si. Com o advento da multiplicação de espaços e práticas de participação política (para além do voto), exige-se maior dinamismo aos actores da cena política, sendo que a propaganda eleitoral é chamada como fundamental para além dos quarenta e três dias de campanha eleitoral oficialmente estabelecidos no país, sob pena de esperar colher um determinado feedback a partir de uma demanda incorrecta.