Pedro Jumento e mais de mil cidadãos nasceram, cresceram e vivem em Tchadzuca, no posto administrativo de Machipanda, no distrito de Manica, província com o mesmo nome. Na infância, Pedro Jumento circulava por Makudho e Maridza em Penhalonga, onde pescava e fazia mergulhos competitivos na nascente do rio Revue. Embora tenha saído por algum período para estudar e formar-se na capital da província, Chimoio, Jumento sempre regressava para visitar a família, rever os amigos e namorar com a pitinha de longa data.
Na terra de Pedro Jumento, o subsolo possui quantidades infindáveis de ouro e outros minérios, daí que, para além de praticar a agricultura de subsistência, muitas famílias também se dedicavam ao garimpo. Esta actividade decorre há vários anos em Makudho, Maridza e Tchadzuca e ajudou milhares de famílias a ter casas e bens de qualidade, mas sempre era feita em locais não poluentes. Entretanto, tudo viria a mudar, com a ascensão da nova realeza na Pérola do Índico. A vida de Pedro Jumento e de outros habitantes daquela região mudou drasticamente.
A região começou a receber visitantes da terra de Xi Jinping, com a capa de investidores e devidamente apadrinhados pelos donos das licenças de exploração mineira actualmente em Manica e outros locais deste belo e empobrecido país. Repentinamente, sem qualquer consulta pública e nem indemnizações, as pessoas viram suas machambas localizadas nas proximidades do rio Revue ocupadas e usurpadas. Máquinas a roncar e carros de alta cilindrada a circularem. A água que servia para alimentar as famílias, o gado, regar os campos de cultivos, tomar banho e lavar roupas e outros objectos foi privatizada e poluída.
Os amigos de Jumento que tentam encontrar um local para fazer o garimpo são impedidos, violentados ou mesmo detidos em nome dos interesses do filho do Boss. As expectativas de vida melhor para as comunidades acima mencionadas, através dos recursos ali existentes, praticamente foram goradas e transferidas para o filho do Boss, que usa os ganhos do business para altas vibes e viagens pelas terras de gente famosa internacionalmente.
Nesta saga de exploração dos recursos, os soldados económicos de Xi Jinping lavam as pedras na nascente do rio Revue, poluindo a água e criando sérias dificuldades para as comunidades ali residentes. A vida naquela região está cada dia infernal. As preciosidades dos minérios valiosos ali existentes como ouro, turmalinas e outros não beneficiam os jovens como Pedro Jumento e os restantes habitantes que esperavam que, no âmbito da responsabilidade social das empresas que exploram, pudessem ter casas melhores, escolas, centros de saúde, água potável e outros serviços básicos para o povo.
Entretanto, parece que não é isso que o filho do Boss e seus amigos das bandas de Xangai querem e pensam – a ideia é raspar e sujar tudo que a mãe natureza ofereceu às comunidades de Machipanda e se na terra de Pedro Jumento a coisa está assim, o que se pode falar das florestas de Tambara, Machaze, Vanduzi, Gondola e Dombe!?
Como estagiário a primeira pessoa que conheci naquele jornal foi um branco, meio gasto, que sempre que entrasse na redacção deixava, em forma de cheiro, uma enorme cauda com bocejos de álcool e pêlos leves de tabaco. Entrava sempre aos berros na redacção com a língua sobre o peito e punha-se a ladrar: "isto é capa e vende muito".
O editor Trindade, com a cabeça metida na cova do ecrã do computador, de quando em quando ressuscitava para vociferar: "ó estagiário, compra-me um cigarro ali na esquina". E eu corria porque queria ser importante na capa que o editor preparava. Um dia o editor Trindade encontrou, na sua mesa, uma pequena garrafa de vidro com raízes e uma pele de macaco enrolado no gargalo.
Fitou a garrafa com a cintura, afastou-a com o calcanhar da mão e a garrafa ficou em cacos no chão. Toda redacção atirou os olhos ao editor e ele apenas "alguém anda com inveja das minhas capas". A partir daquele dia a vida do meu editor virou uma mesa com duas pernas; já tinha perdido o equilíbrio.
O editor Trindade começou a ser capa da sua própria vida, chamava-me para que lhe ajudasse a galgar as escadas, a borda do seu cinzeiro transbordava de tiras de algodão cheias de sangue e as suas narinas a cada respirar expiravam botões de sangue. E as capas não podiam parar, por isso um tal de Chirindza foi colocado para conceber as capas, mas o jornal sem o editor Trindade não era o mesmo. E foi sob a chefia de Chirindza que as capas do jornal foram enterradas. O jornal faliu e eu, estagiário de meia tigela, baixei as orelhas, enterrei a cauda das mãos entre as pernas para a qualquer momento ser afastado como uma cadela.
Uma vez o editor Trindade surgiu, já gasto, na redacção para criticar uma capa de Chirindza: com um molho de erros ortográficos. Quando saiu deixou, em forma de cheiro, uma enorme cauda com bocejos de comprimidos. Tinha na testa o número da sua campa em forma de veias. Parou nas escadas, chamou-me e disse: "já viste como os nossos colegas são?".
E depois disso não vi mais o editor Trindade. Vi o seu cadáver de costas, de olhos fechados, descendo pelas cordas numa cova no cemitério de Texlom. Ele tinha sapatos novos, mas desceu à cova pelas cordas. E os coveiros suados faziam barulho com pás no meio de orações de um padre branco; saímos todos do cemitério, uma voz seguiu-me, tombou a mão sobre o meu ombro e sussurrou "isto é uma capa e vende muito".
O nº 1 do artigo 58 do Decreto n.º 5/2018, de 26 de Fevereiro – Aprova o Regulamento do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado - determina o seguinte: “Ao funcionário de nomeação definitiva pode ser concedida licença registada até 6 meses prorrogáveis até 1 ano, invocando motivo justificado e ponderoso.”
Na sequência e relativamente às implicações da concessão da licença determina a alínea c) do n.º 5 do artigo supra mencionado o seguinte: “Que durante o seu gozo, o funcionário não pode exercer qualquer actividade na função pública, nem exercer ou invocar direitos fundados na situação anterior.”
Por sua vez, o n.º 1 do artigo 59 do Regulamento do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado estabelece que: “A licença ilimitada é concedida por tempo indeterminado a pedido do funcionário de nomeação definitiva.” De entre outras implicações desta norma predispõe a alínea b) do n.º 1 do artigo em referência que: “Durante o gozo da licença, o funcionário não pode apresentar-se a concurso, ser promovido ou exercer qualquer actividade na função pública, nem exercer ou invocar direitos fundamentados na situação anterior.”
A Licença registada e ilimitada está prevista nos n.ºs 10 e 13, respectivamente do artigo 75 da Lei n.º 10/2017, de 1 de Agosto, que aprova o Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado (EGFAE).
Ora, por via de um despacho administrativo datado de 30 de Setembro de 2021, o Secretário Permanente do Ministério da Saúde, sob o parecer do Ministério da Administração Estatal e Função Pública decidiu pela interdição de contratação pelos parceiros de cooperação, de recursos humanos do Estado que se encontrem em gozo de licença registada ou ilimitada para exercerem funções no Ministério da Saúde (MISAU). Curiosa e estranhamente, a decisão do MISAU teve por base o disposto na alínea c) do n.º 5 do artigo 58 e na alínea b) do n.º 1 do artigo 59, ambos do Regulamento do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado e pretende, forçosamente, reter os quadros ou os recursos humanos do MISAU por via administrativa como se de uma ditadura se tratasse.
Quando um funcionário ou agente do Estado é contratado pelos parceiros de cooperação para exercer funções nas instituições do Estado, no caso em apreço, no MISAU, tal não significa que esse funcionário ou agente do Estado está, por essa via, a ser recontratado na função pública ou que esteja a estabelecer um novo vínculo de trabalho com o Estado, de tal sorte que a sua vinculação é de natureza privada com o parceiro de cooperação que o contratou.
Aliás, o funcionário ou agente do Estado que se beneficiar do regime da licença registada e ilimitada previsto nos artigos supra indicados do Regulamento do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado fica numa situação de perda de várias obrigações e direitos essenciais, incluindo a remuneração. Essa licença registada e ilimitada constitui, também, uma autorização legal para celebrar contratos de trabalho com as entidades privadas, no quadro da legislação laboral aplicável nas relações laborais do Direito Privado. Trata-se, pois, do âmbito da liberdade contratual e de escolha do funcionário ou agente do Estado que não deve ser limitado por despacho sem cobertura legal, conforme é o caso em apreço, quando o mesmo está sob licença registada e/ou ilimitada.
Importa aqui esclarecer que a alínea c) do n.º 5 do artigo 58 e na alínea b) do n.º 1 do artigo 59, ambos do Regulamento do EGFAE proíbem que o funcionário e agente do Estado estabeleçam novos vínculos na função pública, o que não é extensível à actividade privada, ao contrário do que pretende dar a entender o supra referido despacho do Secretário Permanente do MISAU. Este órgão está, indubitavelmente, a fazer um exercício hermenêutico falacioso daquelas normas do Regulamento do EGFAE, inesperadamente com a chancela do Ministério da Administração Estatal e Função Pública.
A mensagem que se pretende transmitir no despacho do Secretário Permanente do MISAU aqui em análise é clara, no sentido de que visa reter os quadros do MISAU a todo o custo por via de uma ordem traduzida em acto administrativo que não só é contra legem como, acima de tudo, viola a Constituição da República de Moçambique (CRM), no que à liberdade de escolha e direito ao trabalho diz respeito. Não é, pois, com esse tipo de prática, quais sinais ditatoriais que roçam o Estado de Direito Democrático e a justiça social que caracteriza Moçambique, que se vai conseguir a retenção dos recursos humanos no MISAU em concreto e na função pública, em geral, caso a pretensão vertida no despacho em análise seja objecto de efeito multiplicador para outros sectores públicos.
A retenção dos recursos humanos na função pública deve ser feita através de adopção e materialização de políticas e estratégias públicas de incentivos que sejam transparentes, justos e atractivos, sem discriminação e num contexto real de inclusão ou de efectiva participação pública dos visados na sua definição.
Mais do que isso, é que não compete ao MISAU ou à Administração Pública decidir quem os parceiros de cooperação devem contratar e onde devem trabalhar os seus contratados, desde que esses parceiros não violem a lei.
O despacho do Secretário Permanente do MISAU ofende a CRM, o EGFAE e o respectivo Regulamento, bem como os princípios internacionais sobre a actuação da Administração Pública de que Moçambique é parte, mormente, a Carta Africana sobre os Valores e Princípios da Função e Administração Pública ratificada pelo Estado Moçambicano através a Resolução n.º 67/2012, de 28 de Dezembro.
O despacho do Secretário Permanente do MISAU descredibiliza a Administração Pública no que à gestão dos recursos humanos da função pública diz respeito, pela forma como viola a lei. Trata-se, assim, de um acto administrativo que enferma do vício de nulidade, senão de inexistência, sem qualquer efeito jurídico, pelo que não deve prevalecer.
O legislador definiu clara e expressamente em que medida pode, dentro do quadro constitucional em vigor, haver restrições dos direitos, liberdades e garantias fundamentais.
É preciso garantir melhores condições de trabalho aos funcionários e agentes do Estado se a função pública não quer perder os seus quadros para as entidades privadas.
Por: João Nhampossa
Human Rights Lawyer
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos
A sua enorme barriga com cardume de lombrigas como a de um canguru em gestação e a habilidade de dormir de boca aberta na sala, levaram a turma toda a chamá-lo Senhor Deputado. Seu nome era Viriato Bernardo Maposse. Era um espectáculo vê-lo dormindo de boca aberta e as moscas aterrando zumbidos sobre a pista do seu mau hálito. De tempos a tempos despertava para humedecer os lábios com uma pincelada da língua e voltava a dormir. Saudades tuas, Viriato Bernardo Maposse.
Era um rapaz doentio e por isso, tal como os deputados, tinha muitas regalias: não apanhava papéis na sala, tinha imunidade total às réguas da tabuada e tinha subsídio de notas nas provas e redacções.
O Senhor Deputado por vezes ficava meses sem pôr o pé à escola e para justificar as suas ausências surgia um senhor velho, descalço, com um molho de receitas preso por um elástico e falava com a nossa professora. Era o pai do Senhor Deputado, dava para ver pelas escamas de fome que tinha nos lábios secos. O Senhor Deputado era evacuado de hospital em hospital, passava dias em clínicas de curandeiros e voltava sempre o mesmo; com resto de saúde espalhando-se pela sala quando respirava. E sempre fendia de comprimidos e raízes.
E toda a turma gozava com ele. O Zeferino era sempre o primeiro; ria-se das pequenas nádegas do Senhor Deputado que eram amputadas por seringas nos hospitais e apimentava a piada: “as rodas do Mercedes do Senhor Deputado estão sem ar”. E o Senhor Deputado ameaçava-nos com um soco que não conseguia arremessar, um soco cheio de ossos nas mãos. Às vezes o Senhor Deputado chorava, mas tinha sempre uma resposta: “tem regalias e ainda chora como se sofresse".
O Senhor Deputado reprovou quatro vezes por faltas e quando se preparava para reprovar pela quinta vez baixou as poucas pestanas dos olhos que tinha, abriu a boca e morreu no Hospital Geral José Macamo. Foi a primeira vez que o Senhor Deputado fez-nos falta. Com a morte do Senhor Deputado a turma toda ficou de luto, era como se fosse o país inteiro. Chefes de turmas de outras classes apresentaram-me a mim condolências porque era chefe da turma do Senhor Deputado.
“O Senhor Deputado afinal não tinha seguro médico?", perguntou-me o chefe da turma 7, da quinta classe. Não me recordo o que lhe respondi, mas recordo-me de ver, três meses depois, a pauta que anunciava o cadáver do Senhor Deputado como reprovado pela quinta vez. Uma escola injustiça, tão injustiça que até reprovava deputados mortos.
Não sei o que acontece a alguns espíritos, sobretudo aqueles dotados de cultura e inteligência, sensibilidade e mundo, quando fazem proclamações exacerbadas e despudoradas sobre a vetusta Lourenço Marques. Quando se arrogam a esse desplante.
A desenfreada apologia de Lourenço Marques é uma afronta que deve merecer a mais vigorosa censura. Há um dever de memória que é preciso exercer quando se fala do passado que foi, para a maioria dos moçambicanos, negros ou não brancos, demasiado penoso, na antiga cidade de Lourenço Marques, mas não só.
Esta impetuosa mania de celebrar Lourenço Marques não decorre de uma amnésia. É acintosa, é ostensiva, é provocatória. Este triunfal vitupério do nosso passado é inadmissível. Principalmente quando exercido por aqueles que se querem igualmente moçambicanos.
Ouvir dos que foram coagidos, pelos ventos da História, a abandonar Moçambique, o seu desprimor por Maputo, a sua mofina, não me parece extraordinário e é até expectável. Conheço muitos que se recusam a chamar de Maputo a capital moçambicana e insistem em designá-la de Lourenço Marques. Mas aqueles que insistem, entre nós, com seus panegíricos à Lourenço Marques, aí, simplesmente, acho abominável. E não me coíbo de o dizer.
Não me recuso a aceitar a realidade, nem a ouvir as críticas. Eu também as faço. Mas há uma diferença entre Lourenço Marques, cidade colonial, e Maputo, capital de um país independente. Divergem em tudo: na economia, na política, na sociedade ou na cultura. Não são a mesma coisa, nem representam uma continuidade. Há uma importante disrupção com o 25 de Junho de 1975. Esses bons espíritos laurentinos que por aqui lavram não o entendem?
Eu posso até subscrever o retrato de uma dura realidade da cidade, que é a nossa, hoje, da nossa incapacidade, do nosso desgoverno, da nossa incompetência, da nossa displicência, do nosso descaso. Percorro todos os dias a cidade e sofro com isso.
Igualmente não me chocam os retratos que os forasteiros fazem de Maputo, com o olhar que é deles, que difere necessariamente do meu, mas embirro quando certos portugueses, ao assomarem a Maputo, venham logo proclamar estar em Lourenço Marques. Implico ainda mais com aqueles moçambicanos que continuam a proclamar que o melhor que Maputo tem é Lourenço Marques. Fazem-no disfarçadamente alguns. Outros tantos de forma desbragada.
Então alteiam loas à sua vida, mansa e tranquila, na velha Lourenço Marques, omitindo algo decisivamente importante: que era Lourenço Marques a não ser uma cidade colonial e discriminatória? Lourenço Marques era politicamente excludente. Quem nela vivia? Como era a sua paisagem humana? Nós todos cabíamos lá? Perguntem-me onde nós vivíamos. Como vivíamos. Quem éramos. Como éramos. Onde estamos nesses encômios?
Esta é a Cidade de Maputo. Não é mais Lourenço Marques. Alguns destes nostálgicos de Lourenço Marques são próximos de mim. Mas tenho que ser severo, ríspido e enérgico com eles. Essencialmente com eles.
Maputo, 10 de Novembro de 2021
Não é menos verdade que exacerbadas emissões globais de gases de efeito estufa, movidas pela frenética pressão aos ecossistemas, no âmbito da materialização das políticas neoliberais de acumulação do capital, estão progressivamente a colocar o planeta numa marcha rumo a um aquecimento sem precedentes e com implicações severas, sob ponto de vista de desenvolvimento, sobretudo aos países com economias periféricas como é o caso de África. Não é menos verdade que estudos apresentados no Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC), a principal autoridade mundial para avaliar a ciência das mudanças climáticas, projectam que as regiões de África, dentro de 15 graus do equador, poderão experimentar um aumento nas noites quentes, bem como ondas de calor mais longas e frequentes.
Não é menos verdade que a desertificação de áreas férteis, as inundações das cidades costeiras, o derretimento de massas glaciais (degelo) e o aumento dos níveis do mar, a proliferação de furacões ou ciclone tropicais devastadores, estão entre as principais consequências do efeito estufa. Todavia, é também verdade que, no horizonte temporal entre 1850 a 2016, Estados Unidos, China, Rússia, Alemanha, Índia, Reino Unido, Japão, França, Ucrânia e Canadá, figuram na lista dos países tidos por principais responsáveis pelas mudanças do clima, segundo a Climate Watch. Isso pressupõe que Alemanha, presentemente considerado um dos países com maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do mundo, escalou esse estágio através da emissão nociva de gases de estufa outrora. Implica também que Estados Unidos, considerada a maior economia mundial, chegou a esta posição agredindo desenfreadamente os ecossistemas, emitindo gases nocivos à atmosfera através das suas indústrias. Significa ainda que o Reino Unido liderou o sector industrial mundial durante anos emitindo grandes quantidades de gases de estufa nos seus processos de produção da indústria automóvel, têxtil, entre outras. Não há precedentes, em qualquer estudo com teor científico, nesse horizonte de tempo, que aponte algum país africano na lista dos maiores emissores mundiais de carbono.
Vale a pena lembrar que, em 2008, África do Sul e Nigéria foram considerados responsáveis por emitirem quase 90% das emissões de gases poluentes no continente africano, segundo o estudo desenvolvido pela ONG alemã Heinrich Boell Stiftung. 45% para a Nigéria, igual quantidade à África do Sul e 10% aos restantes países do continente. Consideremos hipoteticamente uma possibilidade de margem de erro, assumindo que os dois países emitem 50% e os restantes 53 países de África emitem também 50%. Isso pressupõe que Moçambique, com um parque industrial incipiente, emite “uma gota no oceano” em termos de poluentes de estufa. Contudo, apesar desses níveis de emissões da África do Sul e Nigéria, não há espaço para compará-los aos dos países industrializados já anunciados.
Se atendermos o facto de as Mudanças Climáticas, protagonizadas principalmente pela industrialização ocidental, terem propiciado doenças trazidas pelo aumento da temperatura, ilhas de calor e baixa qualidade do ar, tendo afectado povos africanos, sobretudo os rurais, que passaram a exercer maior pressão sobre os ecossistemas como é o caso das queimadas descontroladas à busca de alternativas de subsistência, parece-nos haver falta de honestidade na hora de tomar decisão sobre o futuro do Planeta. Parece-nos haver uma autêntica falta de “fair play” ecológico – na medida em que os fenómenos atmosféricos que hoje assolam África seriam muito menos violentos se os países ocidentais, hoje industrializados, não tivessem indiscriminadamente agredido o meio ambiente ao longo da história.
É verdade que, pelo reconhecimento da degeneração da qualidade dos ecossistemas globais e da ameaça das mudanças climáticas, muitos países vêm se reunindo desde a primeira Conferência ecológica em Estocolmo (Suécia – 1972), passando pelo Eco 92 no Rio de Janeiro (Brasil – 1992), o Cop1 em Berlim (Alemanha – 1995), até ao presente Cop26 em Glasgow (Escócia – 2021), com o objectivo de assumir o compromisso de limitar as mudanças climáticas, através da adopção de medidas que visam reduzir as emissões e construir resiliência. Mas é também verdade que no ano em que o Acordo de Paris foi adotado reconheceu-se que os compromissos sobre a mesa não seriam suficientes, ainda que os países materializassem suas promessas, as temperaturas globais subiriam 3°C neste século.
Sobre esse compromisso, sobre a Transição Energética e todas outras acções a serem levadas a cabo pelos países, visando conter a subida das temperaturas globais, lembremo-nos que, no Acordo de Paris, pediu-se maior apoio financeiro dos países desenvolvidos para auxiliar os esforços de acção climática dos países em desenvolvimento e economicamente periféricos. Este resgate de memória vem a-propósito para lembrar o facto de ter ficado claro que os países, principalmente ocidentais, que escalaram o crescimento e desenvolvimento económico por via da degeneração da qualidade ecológica devem ressarcir os que durante anos mantiveram a mais exemplar postura ambiental como é o caso de Moçambique. Se considerarmos que a implantação de um sistema industrial centrado em energias renováveis é extremamente caro, seria muito justo que o Banco Mundial, a União Europeia e o Reino Unido, que decidiram travar o financiamento aos projectos de exploração de combustíveis fosseis, abrissem excepção ao financiamento dos projectos de Gás, como manifestação da sua preocupação para com o crescimento e desenvolvimento económico de Moçambique – atendendo que nenhum dos país ricos alcançou o Índice de Desenvolvimento Humano por via do milagre, senão pela fustigação ecológica. Para além de o Gás ser cientificamente considerado hidrocarboneto menos nocivo que o Petróleo e Carvão, é presentemente o potencial factor de autofinanciamento à Transição Energética do país. Portanto, quando o ocidente furta-se das suas responsabilidades e compromissos, e opta por ignorar os aspectos aqui arrolados, parece-nos estar a assumir uma atitude de falta de “fair play” ecológico e a oferecer-nos um discurso ornamentado de aporias sobre a Transição Energética em Moçambique.
Circle Langa
Comunicólogo e Pedagogo
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