Continuo a cultivar a solidão, e já cheguei a um ponto em que as viagens – mesmo para lugares de paraíso – deixaram de me fascinar. O paraíso é aqui onde moro sem pensar no futuro, o futuro é este que vivo todos os dias. Mas desta vez abriu-se um parêntises na minha rotina, de maneira tão profunda que não pude recusar o convite de visitar o Parque Nacional de Zinave, ainda por cima na companhia de uma mulher que usa todas as oportunidades para cantar, repetindo músicas antigas dos seus ídolos, que habitarão para sempre as suas memórias.
Chegou à minha casa sem avisar, trazendo consigo a alegria de sempre, na alma antiga que se mantém nova e fresca como as águas da cascata e disse assim, amor, vamos juntos à Zinave! Vestia calças jeans e sapatilhas da Nike, e para combinar estes dois elementos, envergava uma jaqueta de bombazine com forro, por cima de uma camiseta azul celestial, estava linda por inteiro numa estrutura corporal sintetizada pela candura do rosto, então, perante este vulcão de beleza, não podia dizer que não.
Eu estava na varanda – sentado a contemplar a mesma paisagem dos tempos, que entretanto aviva-se a cada minuto – quando ela entrou de rompante cantando “Sineta”, de Chico António, e o abraço que se seguiu levou-nos ao êxtase porque naquele momento inesperado, tornamo-nos fieis representantes do nosso passado anarquista, onde não tinhamos capacidade de esperar, tudo era urgente para nós. Mas na verdade estávamos apenas a obedecer aos ditames do amor. Que é controverso.
Puxei-a – depois de sentir o leve cheiro do seu perfume, emanado durante o forte aperto dos nossos corpos - para o quarto onde fui aviar a minha mochila, sem me esquecer da grossa camisola e da jaqueta de couro. Despi as calças de fato de treino – na presença dela – para enfiar as jeans e as botas de mineiro – e ela ficou em silêncio olhando para o meu corpo meio magro, e para os meus gestos atrapalhados. Sorriu e convidou-me, com o olhar, a um beijo cuja doçura lembrou-me a intensidade dos nossos tempos de juventude, e a nossa total entrega à vida e à música que cantávamos em todas as circunstâncias.
Já prontos, metemo-nos no carro para dar uma volta de sessenta quilómetros até Maxixe, de onde depois seguiriamos rumo a Mapinhane e dali continuariamos com a viagem, ansiosos em contemplar o reino animal que nos esperava em Zinave. Mas antes de partirmos, ela pegou no flash de música e disse assim, meu amor, quero que oiças esta merda! Pôs no ponto o tema Lady, de Fela Kuti, afinal “aquilo” era a nossa entrada no Cosmos, onde não podemos estar sem o Ballantines, e o Ballantines estava dentro do carro com um balde de gelo.
Maxixe não tem nada para nos dar em novidade, nem Murrrombene, nem Massinga, nem a própria Mapinhane, por isso não parámos em nenhum desses lugares, o que nós queriamos era chegar a Zinave e entregarmo-nos ao prazer da descoberta. Porém, o que nós os dois não sabiamos, é que o caminho pode tercer das suas, contra os nossos sonhos e as nossas vontades. Daqui para aqui pode acontecer o inesperado para desfazer todas as expectativas.
Dez quilómetros depois de Mapinhane, já na picada rumo a Zinave, fomos sacudidos por um elefante que, saíndo repentinamente do mato, não nos deu tempo para nada, numa altura em que escutávamos What a wonderful world, de Louis Armstrong. O nosso carro deu várias cambalhotas impulsionadas pelo paquiderme, provavelmente irritado pela nossa presença, e numa dessas cambalhotas fomos “cuspidos”. Mas o enorme bicho continuou a investir repetidamente as suas patas insuperáveis por sobre a viatura, tendo-a esmagado completamente, deixando-a sem proveito, depois foi-se embora sem sequer olhar para nós, que continuávamos vivos, sem sabermos como!