Perguntou-me se eu não tinha medo de morrer, e eu disse-lhe que ninguém está preparado para morrer. Estamos sentados lado a lado na mesma cadeira de dois lugares, e o nosso destino é Maputo, onde se registaram os primeiros sinais - no nosso País - daquilo que já está a degenerar numa hecatombe mundial. Ninguém sabe como tudo isto vai terminar. E nós os dois, dentro deste enorme autocarro que nos leva, não temos a mínima ideia do que poderá acontecer connosco ao chegarmos a capital de Moçambique, onde a grande maioria do povo daqui, parece mais preocupada com o que vai comer, do que propriamente com esse vírus flagelador.
São seis horas da manhã e já estamos a atravessar a ponte de Inharrime, depois de termos saído de Inhambane às cinco. Olho, pela janela, para o encanto da paisagem que se prolonga até às dunas que exuberam ao longe, e imagino o Índico do outro lado, abrindo-se para os navios e os cruzeiros que podem estar a levar para outras terras, ou trazer para o nosso chão, esse bicho temível. Sou tentado a pensar assim, ao mesmo tempo que liberto a minha inaginação, na busca das canções que já não nos consolam nesta longa espera pelo fim.
Ao perguntar-me se eu não tinha medo de morrer, depois do “bom-dia”, pensei que esta mulher minha companheira de viagem, quisesse daquela forma desfiar conversa para encurtar a distância, o que seria salutar para interior da alma e para o corpo também. Enganei-me. Logo a seguir ela tirou da carteira um livro, trocou os óculos, e começou a ler. Na verdade o gesto era um sinal, uma espécie de barreira que me impedia de alcança-la com as palavras. E eu compreendi isso.
Enfiei as mãos por entre as minhas pernas, apertando-as, ao mesmo tempo que ia escutando a música quase imperceptível do motor do carro. Não oiço ninguém conversar cá dentro, exceptuando algumas intervenções feitas ao telefone, mesmo assim sem perturbarem o nosso silêncio colectivo. Mantenho os olhos abertos em busca de novos elementos na paisagem que vai escorrendo ao longo do percurso que conheço muito bem, mas tudo o que me chega é como a repetição de uma canção que já me cansa. Excecptuando agora, que damos entrada à Quissico. As Lagoas de Quissico não cansam. Posso contempla-las até à exaustão, mas amanhã quero vê-las outra vez. É como “Baila Maria”, música de Chico António e Mingas, quanto mais a escuto, mais nova parece, e mais a desejo, como a minha mulher depois do orgasmo, quero mais.
Parámos em Chongwene para beber um café e relaxar os músculos, e o homem da tripulação avisou, são quinze minutos, senhores passageiros. Quis levantar-me para sair, mas para isso tinha que acordar a minha companheira que dormia com o livro aberto nas mãos, para ela deixar-me passar. E eu pensei, não se acorda sem necessidade urgente, alguém que está a dormir. Mas eu quero beber café, e isso não é urgente. E agora! Mantive-me sentado e ela nunca mais despertava.
Olho para o relógio. São dez horas. Não tenho fome, não sinto cansaço, mas o café podia melhorar ainda mais a minha perfomance. Absolutamente! Porém esta mulher não me” deixa” sair. E eu não quero despertá-la. Não quero ser o causador de um solavanco, ainda por cima de uma mulher que dorme com um livro aberto nas mãos.
Pois é, o autocarro retoma a marcha, e eis-nos, em pouco mais de quarenta minutos, a atravessar a planície de Xai-Xai. Foi aqui onde ela recobrou a razão e voltou a falar.
- Já estamos em Xai-Xai!
- Sim, mais três horas estaremos em Maputo, onde nos espera o improvável.
- Não se preocupe, irmão. O que está a acontecer é apenas o toque da trompeta, a espada ainda vai descer.