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quarta-feira, 30 junho 2021 07:14

Dorotéia

Vi a miúda agachando-se com leveza e apanhou um caco que sobrou de uma garrafa partida na rua de pavet que sai da Fonte Azul à Escola Primária 1º de Maio. Havia outros pequenos pedaços de vidro  espalhados no chão,  e a menina recolheu tudo, com as mãos nuas. Tirou da pasta um caderno de onde rasgou uma folha e juntou nela os fragmentos, depois caminhou em direcção ao depósito de lixo que serve o mercado ali perto,  e atirou delicadamente o embrulho.

 

Deve ter por aí nove/dez anos, é por isso que aquele gesto comoveu-me. Fiquei mais sentido ainda porque a menina, pelas características, provavelmente vem de uma família pobre, deduzi isso pelos chinelos de borracha que usava, velhos, segurados por arames em ambos os pés. Outro detalhe que notei nela é a camisa de uniforme, remendada, e a saia azul desbotada, com a baínha mal feita.

 

Faz frio por estes dias  e a menina não está agasalhada, segura a pasta apertada ao peito para aquecer os pulmões, e naquela posição parece um um jogador de rugby que corre. Ao encontro da luz.  A pele dela não brilha, então pode estar a passar privações em alimentação e sobre isso eu não tenho a menor dúvida. Mas mais do que todas essas contrariedades, podemos estar perante o samaritano que atrasou a sua ida à Igreja para salvar um homem bêbado ferido pelos bandidos. E esta menina atrasa à escola para retirar cacos da rua.

 

Invadiu-me a vontade de persegui-la, mas ela corria, alegre, com os livros sobre o peito, e vi-a depois encaixada no cacho dos colegas que também corriam ao chamamento do sino. Era assim que começava a minha manhã, desvancendo-me os pensamentos de que não vale a pena lutar porque o sinal está fechado para nós. Afinal vale a pena! Tudo a vale a pena quando a alma não é pequena, como a desta menina que caminha por cima de todos os cactos, com os pés nus, sem ser ferida.

 

Passado um tempo volto a vê-la no mesmo lugar, a voltar da escola, meu coração perdeu o compasso. Em vez de chama-la ao ponto onde eu estava, fui ter com ela, mesmo assim com medo de que as minhas palavras fossem inconsequentes.

 

 - Olá, menina!

 

- Olá.

 

- Tudo bem?

 

- Estou bem, obrigada.

 

- Como é que te chamas?

 

- Dorotéia.

 

Perguntei-a se se lembrava do dia em que ali mesmo retirou cacos de vidro espalhados no chão, e ela disse que não. Não se lembrava. E é isso mesmo, quem faz o bem com toda a alma, não faz para se recordar, nem para ser visto!

 

- És uma menina abençoada.

 

- Porquê?

 

Se eu a dissesse que Dorotéia significa “Dádiva Divina”, eventualmente a miúda podia não entender. Mas eu entendi que Dorotéia é uma menina profunda. Tem um rio abundante por dentro, e uma enorme albufeira nos olhos-

terça-feira, 29 junho 2021 08:24

Os caminhos da encruzilhada e da esperança

segunda-feira, 28 junho 2021 09:06

Conflitos, Mulher e os riscos da radicalização

Para concorrer a cargos de governação pública, em particular dos sujeitos ao escrutínio do povo, existem candidatos por iniciativa própria e os que concorrem sob proposta de terceiros (grupos e pessoas). No país escasseiam os primeiros e abundam os segundos. Contudo, e especificamente para os últimos, existem sinais prévios, a priori inocentes, que observados à lupa, provam que de facto “...ali vai um (silencioso) interessado por um cargo público”.

 

Os primeiros sinais ocorrem na família, a nuclear e a extensiva. Do nada (para quem vê) ele passa a ter mais tempo para a família nuclear e com ela aparece mais vezes em público (recintos culturais, desportivos e comerciais), transbordando beleza, coesão, felicidade e dado a grandes e efusivos cumprimentos e abraços, a largos e contagiantes sorrisos, incluindo com quem nunca se avistara. A nível da família extensiva (e amigos), assinalar o abrupto interesse do visado em fazer parte de diversos “Xitiques”, cerimónias e outras actividades, incluindo as de lazer, nas quais inflaciona a simpatia e as contribuições de ordem financeira e logística.

 

A aparição constante na imprensa é também um sinal e com apostas em actividades de prestígio e visibilidade, sendo normal que a imprensa passe a cobrir o lançamento de seus cirúrgicos livros e comunicações em conferências bem como na publicação de textos, entre literários e científicos, e na sua requisição, na qualidade de um reputado analista, para participação em debates, entrevistas e comentários ocasionais. Nestas aparições o seu CV é majestosamente exposto, focalizando estrategicamente matérias que se enquadram ao pretendido.

 

As redes sociais são igualmente uma outra montra. Para o efeito é até contratado um gestor ou uma equipe que se ocupa da trajetória do interessado cujas imagens e vídeos de arquivo com figuras importantes, nacionais e internacionais, e da participação em grandes eventos, no país e no estrangeiro, bem como de diversas acções e intervenções públicas, constituem o prato forte da divulgação. Uma outra característica, e de grande alcance mediático, é a súbita sensibilidade do interessado por causas sociais, passando a ser um renomado solidário no apoio aos mais desfavorecidos e de pessoas com necessidades especiais.

 

Estes e outros sinais não deixam dúvidas de que algo esteja a acontecer, embora nunca transpareçam o que move de facto o ilustre interessado. Entre portas, este tipo de comportamento é característico de alguns quadros nacionais, até entre os mais qualificados, que penosamente, e até certo ponto a roçar a mendicidade, expectam por convites para grandes cargos (ministeriais) de governação política e económica (empresas públicas), sobretudo em vésperas da formação e vigência de um determinado governo ou ainda da aproximação de etapas cruciais de processos eleitorais, incluindo a da realização de eleições (presidenciais, legislativas, provinciais e municipais).

 

Posto isto, e uma vez que o país caminha para processos partidários e oficiais no quadro das diversas eleições que se seguem, é recomendado que se fique atento para os “Sinais de que ali vai um (silencioso) interessado por um cargo público”. E para o caso das eleições presidenciais, a atenção deve ser redobrada para os sinais que sopram do centro (quiçá dos bons sinais) a menos que as águas do vasto Zambeze, que se preveem turbulentas, levem a lógica da alternância para outros estuários.

 

PS1: As candidaturas por iniciativa pessoal, que de tanto escassearem no país, passam a impressão de que sejam informalmente proibidas ou, no mínimo, que não sejam bem-vindas (é só recordar o enredo com Samora Jr. no seu partido). Destas, e a nível do partidão, apenas retenho como iniciativas de sucesso a de Armando Emílio Guebuza, para a Ponta Vermelha, e a do saudoso Carlos Tembe, para o Município da Matola (estranho que os palácios municipais não tenham nome/marca), destacando que ambos mobilizaram os militantes do partido e franjas da sociedade para os respectivos projectos ou visão do que pensavam fazer nos seus mandatos. Assim devia ser o normal.

 

PS2: Das candidaturas por iniciativa de terceiros, o grosso ou a globalidade dos candidatos justificam que não tiveram como esquivar a confiança depositada, existindo (i) os que dizem terem sido apanhados de surpresa, e (ii) os que deliberadamente prepararam a surpresa, porém ambos capturados pelos grupos e pessoas que tomam e controlam as iniciativas. Isto é o normal e, deste contexto e tipo de candidatos, dificilmente brota alguma originalidade, fora o habitual e grotesco refrão de que concorrem em cumprimento de mais uma missão.

quinta-feira, 24 junho 2021 12:24

O tiro para a independência económica

Em texto anterior partilhara uma história extraída de um livro do sociólogo Elísio Macamo, na qual uma anciã rural da província de Gaza, que desesperada e frustrada pelo rumo do país depois da independência, questiona: “Para quando o fim da independência?” Por acaso, há dias e em conversa ocasional sobre o assunto com um contemporâneo da anciã, mas urbano, este disse que a saída não é o fim da independência, mas a conquista de uma outra independência: a independência económica. Segundo ele, a independência de 1975, e desde então, é apenas política. 
 
Do pouco da conversa deu para perceber que o argumento central do cota é o de que não se pode fazer política/governar e ser, em simultâneo, um empresário ou um agente económico. “Foi isto que tramou o país”. Sentença exarada. Para ele, o país saiu ainda mais lesado porque, e nas duas áreas, o desconhecimento fora a premissa de partida. E como alternativa, quiçá uma premissa de chegada, ele aponta que para a conquista da independência económica é necessário que haja um movimento para a libertação económica cujo objecto é a separação do exercício simultâneo da governação política com o exercício da actividade económica. Quem dá o primeiro tiro? “Cabe ainda a  Nachingweia, enquanto geração/processo, essa responsabilidade”. Assim respondeu o cota da urbe.
 
E assim, para terminar, vou aproveitar o feriado dos festejos do dia da independência, que se assinala amanhã, 25 de Junho, e fazer uma viagem a Gaza. A ideia é procurar convencer a anciã rural a ter um pouco mais de paciência e acreditar que possivelmente as coisas possam melhorar e que para tal basta um pouco de colaboração de “Nachingweia”. E mesmo a terminar: espero que encontre a anciã rural ainda em vida (biológica), caso não, certamente que a encontre eleitoralmente viva.

Escrevi recentemente um artigo intitulado “A promoção da mediocridade – relações de poder e dependência na nossa sociedade”, onde abordara o escândalo das formandas de Matalane que foram abusadas sexualmente pelos instrutores, tendo algumas delas ficado grávidas. Um episódio que causou uma onda de indignação e consternação a vários níveis da sociedade e que envergonhara uma das instituições estatais de maior relevo e utilidade pública, que deve transpirar credibilidade e verticalidade.

 

Eis que mais um vergonhoso episodio abala e mancha toda uma instituição que se pretende ser de reeducação e preparação para a reinserção social de pessoas privadas da liberdade – falo do estabelecimento prisional de Ndlavela. Fruto de uma pesquisa aturada realizada pelo Centro de Integridade Pública (CIP), o vergonhoso escândalo do esquema de prostituição envolvendo presidiárias foi tornado público chocando toda uma sociedade. Na verdade estamos perante manifestações diferentes para uma mesma enfermidade – caracterizada a decadente moralidade que grassa a nossa sociedade, o sexismo exacerbado, as relações de super poder, e o sentido de impunidade.

 

Um negócio de exploração de mulheres para fins de prostituição, que choca com todos princípios atinentes a ética social e institucional e esfaqueia as entranhas da dignidade da pessoa humana em todas suas dimensões. Um acto praticado de forma sistemática, envolvendo altas patentes do estabelecimento prisional de Ndlavela e uma elite abastada que paga grandes somas  em troca de serviços sexuais.

 

Aquando do escândalo de Matalane, vozes existiram que de forma peremptória acusaram as formandas de falta de postura deontológica, oferecimento e de assédio aos instrutores. Por outras palavras, as instruendas passaram de vítimas a prevaricadoras e, entre críticas, vilipêndios e pedido de punição exemplar, a sociedade não se esqueceu mas arquivou o caso.

 

E para Ndlavela, o que diremos? O que faremos e o que poderemos esperar? O que a sociedade fará para não deixar que este e mais casos se esfumem ao sabor da indiferença e das contra narrativas existentes?

 

É de todo inegável que estamos diante de um crime público. Ou melhor, de vários crimes públicos que se alimentam em cadeia. Legalmente esta estabelecido e previsto no número 3 do Artigo 61 da CRM, que nenhuma pena na República de Moçambique implica a cessação dos direitos fundamentais. Obviamente, haverá algumas restrições advindas da tipologia da própria pena, não sendo o caso nem de um nem de outro fenómeno aqui reflectido.

 

Uma breve leitura de estudos sobre género como ferramenta metodológica, política e social para problematizar e reflectir os processos que instituem e sustentam desigualdades sociais entre homens e mulheres, e autorizam formas de subordinação feminina, facilmente poderíamos somar vários indícios que sinalizam uma trajectória de reconhecimento, incorporação  e legitimação crescentes dessa teorização. Quero com isto dizer que há indícios bastantes para afirmar a existência de uma legitimação silenciosa a nível doméstico, institucional e social de várias práticas atinentes a desvalorização, subordinação e inferiorização da mulher.

 

A história moderna e contemporânea testemunhou a partir da primeira metade do século XX a emergência de vários movimentos de mulheres e tipos de Feminismos que chamaram atenção à necessidade de se investir mais em produção de conhecimento e estudos com vista uma maior capacidade de denunciar e sobretudo compreender e explicar a subordinação social e a quase inexistência nos processos de participação política a que as mulheres estavam sujeitas até pelo menos o final do século transacto.

 

De entre várias acepções existentes, ressaltam duas diferentes e conflituantes: Por um lado, o género vem sendo usado como um conceito que se opõe ou se complementa a noção de sexo biológico e se refere aos comportamentos, atitudes ou traços de personalidade que a(s) cultura (s) inscreve (m) sobre corpos sexuados. Por outro lado, género tem sido usado, sobretudo pelas feministas para enfatizar que “a sociedade forma não só a personalidade e o comportamento, mas também as maneiras como o corpo {e portanto, também o sexo} aparece”. E nestas acepções, podemos ir buscar algumas explicações elementares para tentar pelo menos perceber a génese deste tipo de pensamento que conduz a uma acção negativa que é legal e socialmente inaceitável. 

 

Quando me refiro a capacidade de denunciar, sobretudo compreender e explicar a subordinação social, quero me insurgir quanto a normalização do anormal, a estabilização do absurdo e a perpetuação de dogmas e medos que não nos edificam enquanto sociedade. Esta sucessão de fenómenos aparentemente dispersos, pode ser ainda mais comum e mais viva em muitas instituições e em vários quadrantes do nosso vasto país. É uma sucessão perigosa  de um fenómeno indicativo daquilo a que muitas instituições se foram tornando ao longo do tempo e hoje encontram-se manchadas com nodoas de imoralidade.

 

Na verdade não se trata de um fenómeno de Matalane ou de Ndlavela apenas. É um fenómeno que tem raízes muito mais profundas e estes são apenas alguns dos resultados, e por sinal resultados da vergonha e da falta de pudor. Denominador comum nisto é que são as mulheres quem mais sofrem com isto – daí o nosso foco analítico nas relações de género e seus desdobramentos com o poder instituído. São as mulheres as maiores vítimas destas atrocidades e são elas que mais são vitimizadas em vez de protegidas (processo de normalização do anormal).

 

Numa análise profunda a estes e mais fenómenos vividos e sobejamente conhecidos por nós, facilmente se chega a conclusão que estes casos são na verdade o reflexo daquilo que somos como sociedade e da forma como olhamos e tratamos a mulher. É um sintoma grave que veemente e copiosamente vamos ignorando, pois nas relações de género nos foi ensinado que o homem é o mais poderoso e tem mais direitos que a mulher.

 

É premente fazer uma introspeção e iniciar uma reforma nas nossas casas, locais de trabalho e na sociedade. As instituições tanto estatais como privadas devem recuperar o normal funcionamento e a restauração do seu modus operandi e dos modelos de moralidade pública e privada, do respeito que outrora existiram. É preciso coragem para abordar, firmeza para desconstruir, integridade para actuar de forma imparcial,  mão dura para punir os infractores, e valores éticos no seu mais alto nível para elevar a paz e harmonia social. Talvez assim poderemos resgatar o estado e suas instituições desta tremenda imundice e promiscuidade que envergonha a todos.  Deste modo poderemos sonhar em edificar uma sociedade alicerçada em valores fundados no humanismo, na verticalidade e acima de tudo no respeito pelos direitos humanos.

 

Por Hélio Guiliche (Filósofo)