"A coragem cresce com a ocasião" – William Shakespeare
Os terroristas de Cabo Delgado são impiedosos. Matam tudo que tem vida. Cair nas emboscadas deles é dizer adeus ao mundo dos vivos, mesmo quando nas bases deles a pessoa estiver na fila do interrogatório. Foi o que aconteceu com Abdala, um herói vivo que hoje vive atormentado na sua terra natal – Quelimane, depois de ter escapado das garras dos terroristas em finais de Fevereiro de 2021.
Abdala era motorista de uma companhia de transporte contratada pelas autoridades nacionais para distribuir produtos alimentares para diferentes regiões deste vasto e belo país – chamado Moçambique. Com o advento da guerra e a escassez de empresas que fornecessem serviços em distritos circunvizinhos dos assolados pela onda de terror que desde 2017 instalou-se em Cabo Delgado. A empresa teve um jackpot comercial – passou a transportar produtos alimentares para Mueda, Montepuez, Palma e arredores. Distritos que antes do ataque de 24 de Março a vila de Palma, acolhiam deslocados que fugiam dos outros pontos da província de Cabo Delgado.
Sucede que o patronato de Abdala fez-lhe uma proposta tentadora. Passar a transportar os produtos alimentares para os locais acima mencionados e que teria o dobro do salário. Abdala aceitou. Realizou a primeira, a segunda e a terceira viagem – todas elas com sucesso. O patronato estava satisfeito. Mais divisas engordavam as contas da empresa – afinal não era tarefa fácil – circular na zona de guerra com camiões transportando diversos produtos alimentares necessários e procurados por todos no planalto dos Macondes – onde devido a guerra e a desordem – a fome se instalou!
Com três viagens realizadas com sucesso. Abdala e os seus colegas não tiveram a mesma sorte na quarta viagem. Tudo começou na Cidade de Pemba, onde Abdala pretendiam levar alguns passageiros para seguir consigo o trajecto, nesta procura aparece uma mulher com quatro filhos menores pretendendo viajar para Palma, onde segundo ela, iria participar num funeral – Abdala não aceitou que a mesma seguisse viagem no camião, dirigido por si, alegadamente por que a estrada era perigosa (que tristemente, voltaram a cruzar-se no cativeiro, porque a mulher seguiu viagem num outro veículo que seria também emboscado e as pessoas raptadas. No cativeiro, a mulher viu os seus filhos serem esquartejados pelos terroristas por estarem a chorar sem parar logo que foram raptados por estes e levados para base – o responsável da base dos terroristas não teve piedade para aquelas crianças inocentes que estavam assustadas).
No dia do sequestro, Abdala seguia viagem no entroncamento da Estrada Nacional (EN 380) quando um homem armado e encapuzado parou no meio da via com uma bazuca (lança foguetes) nas costas apontando para a viatura – diante da ameaça, Abdala tentou fazer uma retaguarda para fugir da acção do terrorista, mas no mesmo instante surgiu um outro terrorista por detrás, apontando uma outra bazuca – mas o corajoso Abdala pisou no acelerador e entrou pelo interior da mata até embater numa árvore frondosa – já sem alternativas, mas tentando ligar o motor para zarpar do local, alguns ocupantes abandonaram o camião e fugiram do local sem olhar para trás – Abdala permaneceu no local e foi capturado pelos terroristas que no mesmo local emboscaram três camiões e incendiaram um que transportava pessoas e bens.
Capturado e levado para uma base provisória nas matas de Mocímboa da Praia, Abdala e mais de vinte civis foram amarrados dos pés ao pescoço e deixados dias sem comer naquele cativeiro. Uma semana depois começou o interrogatório. Os terroristas levavam um por um e perguntavam donde vinha e para onde ia, independentemente das explicações que o civil desse, o mesmo era desamarrado e forçado a carregar na cabeça um bidão de 20 litros com água para detrás de um murmuche, onde o civil era esquartejado e a água servia para lavar a espada e o banho do decapitador.
Dias passaram. Todos que eram interrogados e forçados a carregar o bidão para trás do murmuche não voltavam até que ficaram seis civis capturados. Chamado ao interrogatório, Abdala explicou que era um simples ajudante do camião – mas os terroristas disseram não, que ele era membro da Frelimo e que o seu porte físico demonstrava que estava bem de vida como os membros da Frelimo – Aflito e a beira de ser esquartejado pelos terroristas – Abdala implorou pela vida e disse que não era. Repentinamente, o responsável da base perguntou-lhe se era muçulmano ou não, tendo respondido prontamente que sim, era! De imediato, os terroristas disseram-lhe para recitar alguns versículos do sagrado Alcorão, kalimas e que demonstrasse como um muçulmano reza, o que foi prontamente feito por Abdala.
Perante a situação, parte dos terroristas ficou comovida com Abdala e a execução foi abortada – mesmo assim, haviam alguns que insistiam que ele deveria ser decapitado – mas o responsável da base disse que não! Que Abdala estaria vivo e que passaria a andar com ele para tudo que fosse lugar. Abdala virou o confidente do responsável daquela base, até que o líder principal do grupo soube do homem e decidiu visitar a base e conhecer o "famoso Abdala" que havia amolecido os corações malignos dos terroristas.
Durante aqueles dias Abdala foi convencido a fazer parte do grupo dos terroristas e como temia pela vida, o homem disse sim! Esta situação, acompanhada pelo porte físico de Abdala, precipitou a vinda do líder do grupo. Um homem barbudo, trajado a rigor como um verdadeiro muçulmano e que nas conversas que foram tendo durante aqueles dias, ficou a saber foi o mesmo que liderou os mais de 30 homens armados que atacou Mocímboa da Praia entre 4 e 5 de Outubro de 2017. O tal homem sempre que fosse aquela base vinha com maletas transbordando de maços de dinheiro para pagar e premiar os terroristas mais destacados.
Naquela visita, o líder do grupo conversou com Abdala que lhe fez o convite formal e lhe disse que primeiro seria enviado para madrassa do grupo para ser formatado e depois seria enquadrado nas fileiras dos terroristas – Abdala concordou! Mas primeiro fez um pedido "especial" e o tal dirigente respondeu – peça: Abdala disse – estou com muita fome e desde que chegamos ainda não comemos nada, já se passam dias que não vimos nenhuma refeição.
Atendendo o pedido de Abdala – o líder do grupo ordenou que os capturados e Abdala que já tinha um outro tratamento fossem levados para base principal onde poderiam tomar alguma refeição e assim foi. Chegando lá foram servidos um prato de comida para cada um – na ocasião, os outros capturados queriam recusar a refeição, mas Abdala os convenceu que depois daquele dia não sabia quando teriam uma outra refeição igual – eis que todos aceitaram e assim foi. Após a refeição, Abdala junto com outros capturados foram levados de volta ao local de origem.
Dias passaram. Os terroristas perguntaram se Abdala, o "novo aliado" sabia reparar camiões, uma vez que na base haviam veículos avariados e Abdala disse que sabia. Durante aqueles dias, os terroristas deram um intervalo as decapitações, é quando dois dos raptados tiveram a ideia de fugir, uma vez que preferiam morrer tentando do que serem degolados como "galinhas". Tristemente no grupo dos capturados havia uma mulher que mantinha relações sexuais com um dos terroristas. A mulher que participava nas concertações no cativeiro com outros raptados correu e foi contar ao terrorista que alguns pretendem fugir – alertados e chateados, reuniram todos os sequestrados e pediram para que ela apontasse qual dos civis estava a desenhar o plano de fuga – eis que ela prontamente apontou os dois coitados que foram degolados em frente dos outros.
Durante a concentração, alguns terroristas que ainda desejavam decapitar o sortudo do Abdala protegido pelos chefes, questionaram a mulher se ele teria feito parte daquele arriscado plano, tendo ela respondido que NÃO! Abdala estava salvo da crueldade dos terroristas naquele momento. Abdala que calmamente reparava a viatura por ordem dos terroristas tinha um plano de fuga devidamente arquitetado e que manteve apenas para si durante dias. A sorte estava do seu lado. Levou dias reparando o camião.
Finalmente, chegou o dia da entrega do camião! Mesmo depois de estar pronto, Abdala ficou calado esperando que começasse a escurecer. Já no final da tarde, Abdala comunicou que o camião já estava reparado e os terroristas disseram que ele poderia experimentar a mesma, algo que prontamente foi recusado por ele, tendo sugerido que o motorista dos terroristas conduzisse o camião – proposta que foi acatada e seguiu-se.
No entanto, na hora de ligar a viatura, a mesma não arrancou, o que levou os terroristas a empurrarem a mesma e foi exatamente neste momento que Abdala recuou os passos e com a velocidade de uma chita colocou-se em fuga. Tendo sido visto pelos terroristas fugindo, os mesmos que estavam sem as suas armas no momento, deixaram o camião e começaram a persegui-lo. Esperto e com um plano devidamente pensado. Abdala apenas deu a volta a base e escondeu-se no "murmuche das decapitações". Já escondido num local em que os terroristas nem esperavam, Abdala se manteve no local por nove horas de tempo, ao lado dos restos mortais dos seus ex-companheiros do cativeiro.
Revoltados e com ordens para o aniquilar, os terroristas saíram com tudo atrás de Abdala. Das 18 horas até duas horas de madrugada, os terroristas transportando-se em motorizadas procuraram Abdala por quilómetros, mas não o acharam – afinal ele ainda estava na base – a ordem era que fosse encontrado porque ele havia visto muita coisa e conversado com as lideranças superiores do grupo. Duas horas da madrugada, os terroristas já cansados regressaram à base e quando chegaram todos foram se deitar e foi neste momento que Abdala saiu silenciosamente e começou a longa maratona em busca da salvação.
Abdala caminhou e correu pela mata durante sete dias. Viu vários corpos espalhados pela mata. O corpo já não aguentava, mas a busca pela salvação era maior (…) Abdala rezou! Implorou ao Senhor que lhe mostrasse uma luz no fundo do túnel. O que veio a acontecer quando de repente começou a ouvir o roncar de carros numa certa direcção, afinal estava perto. Abdala conseguiu chegar a estrada, onde durante horas pediu ajuda, mas todos os carros que passavam andavam a velocidade de 120 à 180 quilómetros por hora pensando que ele era terrorista, até que um grupo de funcionários de uma organização viu-lhe implorando por socorro e banhado de lágrimas, tendo parado a viatura e questionado quem ele era e donde vinha.
Sem papas na língua, cansado e banhado de lágrimas, Abdala disse que havia escapulido das mãos dos terroristas – o que os ocupantes do carro se espantaram – como? Fugiste do cativeiro dos terroristas, tu? Questionaram os ocupantes em coro – Abdala respondeu sim! Decidiram levar-lhe e a viagem continuou até a vila de Palma, onde foi levado ao quartel e entregue às Forças de Defesa e Segurança (FDS) que primeiramente o interrogaram e não aceitaram a história que ele contava.
Os elementos das FDS delegados para o interrogatório ordenaram que Abdala fosse tomar um banho, comesse algo e tentasse dormir um pouco porque alegadamente o que estava a falar não fazia sentido, uma vez que os terroristas não deixam que nenhum homem escape!
No dia seguinte, o interrogatório continuou e Abdala contou o que viveu naqueles dias e como conseguiu fugir até que as FDS aceitaram na sua história e pediram que ele os ajudasse a localizar onde estava esta base, o que foi prontamente feito por ele – na operação conduzida pelas FDS quinze terroristas foram mortos e os restantes escapuliram-se.
Abdala foi levado para Pemba, onde foi agradecido pela cooperação e deixado voltar para casa. Mas infelizmente o homem viu tanta coisa que o cérebro não consegue processar e nem contemplar a nova realidade – vive em constantes delírios – quando dorme só a carnificina protagonizada pelos terroristas. Abdala até hoje vive atormentado, com medo e certas vezes acorda assustado e a falar sózinho como se estivesse em contacto telepático com os terroristas – a quem diga que o problema é ter comido a refeição dos terroristas, onde podem ter colocado alguns produtos supersticiosos que lhes mantém conectados e caso a pessoa fuja ainda pensa em voltar ou a mente fica alterada para sempre!!!
Esta é a história de um sobrevivente da guerra em Cabo Delgado que fez de tudo para salvar-se e vive atormentado e em constante medo!
O país está de tanga. Estamos a travar com jantes. Não temos dinheiro para financiar o nosso próprio orçamento do próximo ano. Não temos dinheiro para financiar eleições gerais do próximo ano.
Não temos remédios nos hospitais. Não temos carteiras nas escolas. Paramos de contratar professores e enfermeiros por falta de verba. As progressões também pararam.
Para piorar: ninguém quer arriscar em dar-nos crédito. Somos caloteiros porque não estamos a conseguir pagar a meia-parte-da-metade da primeira tranche do fiado que contraímos fora. Estamos sujos na praça. Perdemos credibilidade.
Enquanto isso:
Aparece um punhado de indivíduos de toga e sotaina que exige ampliação das suas mordomias e dos seus parentes. Até passaporte diplomático exigem.
Pede-se uma vida condigna a um povo que vive uma vida indigna. Pede-se uma vida justa a um povo que vive uma vida injusta injustamente. Um povo injustiçado, para ser mais claro.
Era suposto que num Estado de Direito, qual o moçambicano(?), o Conselho Constitucional fosse um fórum instrutor e orientador do Estado. Que os Juízes deste fórum fossem indivíduos cuja idoneidade ética, moral e profissional não levantasse quaisquer tipos de discussões. Que fossem togados que dominam não só as leis, mas também os contextos e os circunstancialismos das circunstâncias que tais leis são aplicadas. Que fossem guias do Estado e do povo.
Juízes costumam ter juízo. Mas os daqui, não.
Publicado em 11-12-2018
*Desde a primeira edição de Carta, em 22 de Novembro de 2018, o cronista Juma Aiuba impregnava nestas páginas o doce sabor da sua escrita. Sua morte abrupta foi um tremendo golpe. Para tentar manter sua voz viva, Carta decidiu reeditar semanalmente uma das suas crónicas. Seu perfume permanecerá vivo!
Este espaço é oferecido pela:
No entanto, seu conteúdo não vincula a empresa.
Nos anos da fome!
Tudo era escasso
As machambas estavam desertas
Os celeiros vazios
As populações aflitas
Os ratos sem nada para roer!
A dor era intensa
Faltava tudo
Até de sexo completo
As sementes não germinavam
Os campos estavam improdutivos
Todos choravam!
Ninguém mais aguentava
Nos anos da fome!
A seca havia assassinado tudo
As cheias haviam levado tudo
As balas mutilando e matando inocentes
Em casa tínhamos apenas água e sal, mas sem produtos alimentares por confeccionar.
Os deuses estavam a castigar-nos,
talvez pelo facto do povo tanto pecar nas suas escolhas;
Nos anos da fome!
Abolimos a religião e reeducamos os pastores e seguidores;
Assaltou-se o dinheiro dos pobres em nome da liberdade;
Cultuamos mares de inverdades
numa terra em que tudo os ratos roeram!
Nos anos da fome!
Irmãos e pais lutaram mortalmente por 16 anos em nome da democracia e hoje enganados pela riqueza do gás, crianças, jovens e adultos instalaram a desordem,
aliada da fome!
Omardine Omar, Maputo- Moçambique - Abril de 2021
A queda de Francisco Mabjaia (na verdade, os motivos da queda), como primeiro-secretário da FRELIMO da cidade de Maputo, coloca-nos diante de um mistério muito dificil de decifrar. Um caso capaz de embaraçar qualquer criminalista ou laboratório forense avançado. Um caso de Ci-Esse-Ai.
Tudo o que se sabe é que o "mista-tractor" vinha sendo vítima das suas próprias decisões um tanto quanto acrobáticas. Mas aí está. O homem é um colecionador nato de trafulhices. Qual foi então a trafulhice que precipitou a sua queda?
Nos últimos dois casos, parece que Mabjaia não tinha alternativas. Parece que as decisões foram tomadas num outro nível e a ele só cabia executar. Ou seja, fazer as trafulhices. O homem estava entre a espada e a parede. Mas podem ser essas últimas trafulhices que ditaram a sua queda vertiginosa.
Enfim, seja o que seja (como diria a minha prima) parece que, ultimamente, Mabjaia tinha decidido "meter água" no partido. É tanta água turva que dificulta a autópsia, mas mesmo assim há que descobrir qual foi o tiro que "matou" o Mabjaia. O tiro no pé ou o que saiu pela culatra? Talvez nem o tempo dirá.
- Co'licença!
Publicado em 07-12-2018
*Desde a primeira edição de Carta, em 22 de Novembro de 2018, o cronista Juma Aiuba impregnava nestas páginas o doce sabor da sua escrita. Sua morte abrupta foi um tremendo golpe. Para tentar manter sua voz viva, Carta decidiu reeditar semanalmente uma das suas crónicas. Seu perfume permanecerá vivo!
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No entanto, seu conteúdo não vincula a empresa.
Na esplanada do Hotel Tofo-Mar não há vivalma, nem no bar onde cheira a bafio no lugar do aroma agradável do café. Ninguém vocaliza qualquer coisa, todos os trabalhadores aqui presentes parecem resignados. Há um silêncio de tédio que se parece com o prenúncio de uma chacina, não se ouve nenhum tilintar de talheres ou o som da cerveja jorrando para as grandes canecas ou para os copos. Porém, a música das ondas do Índico que se vão esbatendo na areia, ainda nos dá a esperança de que a vida vai voltar.
Mas eu venero lugares livres onde há silêncio, é por isso que estou aqui sem me importar com tudo o mais. Vim a Tofo para me abastrair, e Tofo só faz sentido para mim quando está assim, sem ninguém, ou com meia dúzia de gatos pingados que chegam a este lugar com o único propósito de ouvir a música do mar infinito, porque quando há muita gente, essa mesma música perde-se nas vozes que querem cantar também.
Estou sentado na esplanada, descamisado, bafejado por este paraíso sem saber ao certo o que vou beber, se uma água ou uma cerveja, tanto faz, apesar de que a cerveja tem essa vocação de me ajudar bastante na invenção dos solvejos, então é melhor pedir uma caneca.
- Dê-me uma caneca, por favor.
O garçon traz uma irresistível caneca de cerveja clara, que borbulha por dentro e transborda uma leve espuma que apresso-me a dominar com os lábios. Bebo um longo gole e invade-me imediatamente uma falsa sensação de bem estar. Sorrio para o oceano que não pára de cantar, cuja sequência das ondas faz-me lembrar que depois de nós vêm outros logo a seguir, talvez sem as mesmas armas que as nossas, como as próprias ondas que não terão a mesma intensidade das que hão-de vir depois.
Já vou na terceira caneca e o blues começa a brotar de dentro de mim, como se eu mesmo fosse o Budy Guy cantando Sweet home Chicago, ou o João Paulo imitando John Lee Hooker nas noites do Gil Vicente. Mas estou aqui sozinho feito uma lenha fora do feixe, e assim facilmente posso ser quebrado, então tenho que recorrer ao blues para convocar os meus demónios que me fortelecem a alma.
- Senhor, vai mais uma!
Eu nem tinha reparado que a caneca esvaziara. Estou alucinado pelo silêncio que se recusa a desvanecer, não obstante o zumbido dos barcos de recreio que levam mergulhadores ao fundo do mar. Bebo devagar sem me entregar aos pensamentos, não bebo para pensar, mesmo estando sozinho com os meus demónios, que estão loucos pelo blues que vai saindo mais intenso ao ritmo do efeito do álcool me vai subindo à cabeça. Mas já não posso mais continuar aqui, por hoje é bastante, estou saciado pela poesia da Tofo. Um lugar para o qual um dia voltarei, outra vez. O resto fica por conta das emoções.
Nos dias 8 e 9 de Abril correram informações com registo fotográfico e de vídeo sobre a violação do direito do ambiente por via da destruição de dunas primárias na Praia de Chongoene por uma determinada empresa chinesa, denominada DINGSHENG MINERALS.
No dia 09 de Abril corrente, o Conselho dos Serviços de Representação do Estado, por via do SERVIÇO PROVINCIAL DE INFRA-ESTRUTURAS emitiu uma notificação sobre o assunto epigrafado direcionada à DINGSHENG MINERALS, a ordenar a imediata e incondicional interrupção das obras em curso no local, até a regularização de todo o processo nos termos legalmente estabelecidos. No entanto, não se percebe até que ponto é possível regularizar-se algo ilegal.
Aliás, na sua notificação, a SERVIÇO PROVINCIAL DE INFRA-ESTRUTURAS deixou claro que a DINGSHENG MINERALS não possui qualquer licença ou autorização legal para as obras em questão, que consistem na abertura de uma via de acesso (estrada) para a Praia de Chongoene, o que é grave e preocupante.
Ora, curiosamente, sob o lema “Por um Judiciário Protector do Meio Ambiente”, teve lugar, a tradicional abertura solene do ano Judicial, referente ao ano de 2021.
A protecção do meio ambiente foi o símbolo escolhido pelo judiciário como uma questão prioritária a salvaguardar e essa escolha não foi ao acaso, mas resultado da tomada de consciência da degradação ambiental, sobretudo pela acção humana, num contexto de arbitrariedades, corrupção e impunidade.
Na sequência, a Procuradora-Geral da República (PGR) referiu no discurso, entre outros aspectos, o seguinte:
A questão da destruição de dunas primárias na praia de Chongoene pela DINGSHENG MINERALS faz lembrar os compromissos assumidos aquando da abertura do ano judicial de 2021. Onde está a PGR e o Governo de Moçambique perante tamanha arbitrariedade e violação do meio ambiente? Como foi possível chegar a essa situação?
De lembrar que ainda na mesma abertura do ano judicial, Sua Excelência Carlos Agostinho do Rosário, Primeiro-Ministro, em Representação de Sua Excelência Filipe Jacinto Nyusi, Presidente da República de Moçambique, referiu no seu discurso que: “O Estado moçambicano, através do Governo e outros órgãos, está comprometido em ir de encontro com a sua obrigação de garantir o equilíbrio ecológico e a protecção do meio ambiente visando o bem-estar colectivo.”
A sociedade está indignada com este facto da destruição de dunas primárias na Praia de Chongoene pela DINGSHENG MINERALS e precisa compreender os contornos deste caso, bem como as acções concretas em prática para a efectiva e almejada salvaguarda do meio ambiente ora em destruição.
DA MATÉRIA DE DIREITO:
O ambiental é um direito fundamental que está consagrado no artigo 90 da Constituição da República de Moçambique nos seguintes termos:
Os factos acima relatados violam, não só a Constituição da República, mas também a Lei do Ambiente que estabelece as regras de gestão ambiental e de prevenção de danos ambientais que não foram observados pela DINGSHENG MINERALS. O Regulamento de Avaliação do Impacto Ambiental e o Regulamento de Prevenção da Poluição e Protecção do Ambiente Marinho e Costeiro também foram postos em causa pelos actos desta empresa chinesa.
Moçambique assumiu compromissos internacionais sobre a protecção do ambiente como é o caso da Convenção Africana para a Conservação da Natureza, bem como a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Este último é um compromisso mundial que compreende 17 Objectivos que cobrem as dimensões económica, social e ambiental, mas que neste caso estão a ser desrespeitados.
Os Ministérios da Terra e Ambiente (MTA) e o Ministério do Mar, Águas Interiores e Pescas são relevantes para a questão da protecção do meio ambiente e devem activamente intervir para o esclarecimento do presente caso.
Na estrutura funcional do MTA existe a AGÊNCIA NACIONAL PARA O CONTROLO DA QUALIDADE AMBIENTA- AQUA que, ponto de vista legal, é responsável pelo monitoramento ambiental e pela realização de auditorias ambientais, conforme dispõe o artigo 5 do Decreto n.º 2/2016 de 10 de Fevereiro que cria, pelo que tem algo a fazer e dizer neste caso.
Mais ainda, nos termos do artigo 235 da Constituição da República, “ao Ministério Público compete representar o Estado junto dos tribunais e defender os interesses que a lei determina, controlar a legalidade, os prazos das detenções, dirigir a instrução preparatória dos processos-crime, exercer a acção penal e assegurar a defesa jurídica dos menores, ausentes e incapazes.” É, pois, nestes termos que deve o Ministério Público intervir em defesa das comunidades e do meio ambiente como garante da legalidade das acções ou activiadades das empresas, defendendo assim os interesses que a lei determina.
Importa notar que algumas das actividades da empresa chinesa em questão podem constituir matéria criminal, de tal modo que é dever do Ministério Público investigar e exercer a devida acção penal.
DO PEDIDO:
O lema da abertura do ano judicial de 2021 “Por um Judiciário Protector do Meio Ambiente” e as leis de protecçõa do ambiente em vigor em Moçambique não devem constituir uma letra morta ou uma mera vontade sem acção. Por isso, se requer-se à PGR e aos relevantes gestores públicos sobre o ambiente como é o caso do Ministério da Terra e Ambiente para, dentro das competências que lhes são conferidos por lei, intervir neste caso com vista a: Investigar seriamente e em tempo útil os actos de destruição da duna da Praia de Chongoene e tomar as medidas necessárias para a responsabilização dos infractores e efectiva protecção do ambiente em causa.
João Nhampossa