Quando recebi a notícia de que fecharam o “Takidir” lembrei-me do Bill Gates e de monumentos. De Bill Gates porque este uma vez disse que se não tivesse abraçado o mundo dos computadores teria optado por vender frangos e de que o resultado teria sido o mesmo: a riqueza. De monumentos porque considero o “Takidir” um património histórico da cidade e quiçá do país. Infelizmente o Bill Gates não disse se com a alternativa ele teria enriquecido fora dos EUA, especificamente em Moçambique.
De toda maneira, existem empresários em Moçambique, incluindo os do “Takidir”, que se dedicam ao negócio do frango. Serão ricos? Não sei, pelo menos, salvo melhor informação, nunca o disseram, nem em privado (para os que conheço) e nem em público (também para os que conheço e não só). Aliás, “O segredo é a alma do negócio” já diz o ditado. Porventura, e avaliando as razões do fecho do “Takidir”, alguém conhece as condições higiénicas em que são produzidos os computadores do Bill Gates? Por outro lado, e salvaguardando a ideia de que o “Takidir” é um património histórico da cidade, entendo de que o seu encerramento carecia de um outro tipo de protocolo. E como? No mínimo que fosse feita uma consulta pública aos munícipes consumidores do seu frango. Na verdade, e diante das últimas medidas de combate à Covid-19, o “Takidir” já se encontrava “fora do jogo” por conta do seu horário de ponta (das 8 da noite às 6/7 da manhã) que casa com o do fecho da restauração. E isto - atirar sobre um estatelado - não é justo e nem é ético.
Contudo e para concluir: o Bill Gates ficou por explicar em detalhe o processo de enriquecimento com a venda de frangos e a um preço concorrencial. E o INAE, a entidade competente e que exarou o fecho do “Takidir”, terá que explicar se a imundície (e os negócios) na Lixeira do Hulene - um outro monumento da cidade – não justificaria também uma visita e ao seu imediato e irreversível encerramento.
Um dia, tinha eu 20 anos, a idade da minha filha Mayisha hoje, desci a pé pela Vladimir Lenine abaixo e fui ter ao mítico jornal Notícias, na vetusta Joaquim Lapa. Pedi para falar com o Chefe de Redacção e este recebeu-me de imediato. Ouviu-me com parcimónia. Creio, a esta distância, que fui bastante ousado: propunha-me a ser colunista do jornal. Levava comigo duas laudas.
Mário Ferro assentiu e deu-me uma coluna. Advertiu-me que seria na página 3. Ele cogitava abrir portas para jovens escritores e fê-lo com denodo. Na última página pontificam os nomes estelares, entre eles o Albino Magaia, o Leite de Vasconcelos ou o Mia Couto.
Aprendi a batucar prosas literárias com velhos mestres brasileiros. Carlos Drummond de Andrade, antes de todos. O seu livro Fala, Amendoeira serviu-me de viático para a jornada. Lia-o com método. Lia outros tantos cronistas: Rubem Braga, Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. Quase todos mineiros, à excepção do velho Braga. Outro grande mestre no género foi o meu amigo Baptista-Bastos. Provavelmente, o maior cronista português do século passado. O livro Cidade Diária foi um verdadeiro manual.
Aqueles dias aturdidos, aqueles meses longos, aqueles anos intermináveis, vívidos e sofridos. O quotidiano, o nosso quotidiano, enchia-nos de vozes que habitavam os nossos textos. Era um quotidiano duro, difícil, dias do fim de um tempo, dias do fim de uma era. Mas havia uma coisa que não vejo hoje: humanismo. Éramos solidários, próximos, humanos.
Porfiávamos, naqueles textos breves e urgentes, a nossa esperança. Escrever, naqueles dias, por aqueles dias, era uma espécie de um sobressalto de quem apostava no futuro. Eram dias duros, disse-o. Os de hoje não são menos. As nossas crónicas, as nossas histórias, recortavam-se nessa gente anónima, viviam dessas vozes sussurradas, de gente humilde.
Vivíamos, escrevíamos, amávamos sem um manual de sobrevivência. Contudo, éramos lidos. Hoje quem nos lê? Com o advento da televisão e as telenovelas, primeiro, e, depois, com a revolução dos telemóveis e de seus avatares, a leitura tornou-se obsoleta. A esta distância, digo, éramos felizes e não sabíamos. Que belos e pungentes tempos!
Devo ao Mário Ferro a realização daquele sonho de Escrevedor de Destinos. Num livro que leva esse título, redigi um texto em sua homenagem. Num país onde praticamos o descaso em relacção aos nossos melhores, quis lembrar-me dele em vida. A omissão, o olvido e a desmemória são práticas comuns na Pátria. Cá por mim, curvo-me ao Mário Ferro. Obrigado, meu velho Mestre, por teres acolhido a minha canhestra “tabuleta da oficina”, que saía justamente às terças-feiras, como hoje, no dia em que te lembro e exulto, comovidamente, a tua memória.
Nelson Saúte
A organização do poder na e da sociedade política (constituição dos órgãos de poder), a determinação dos mecanismos de decisão e fiscalização, é temporal e está num presente indefinido. As pessoas singulares mudam, as decisões são diversas, mas as instituições são supostamente imutáveis. Além disso, só se tornam instituições se se afastarem do evento para se constituírem como mecanismos e regras do jogo. Funcionam então num tempo móvel, mas que assegura o regresso ao mesmo. O tempo neutro e cíclico é, por excelência, o da vida política institucional.
A unidade de tempo que analisa e mede a vida política da sociedade é a duração de vida do principal corpo político. Na realidade, as ciências sociais não podem construir uma conceptualização do tempo. A história e todas as abordagens genéticas adoptam a concepção do tempo como linear, orientada e activa. É um tempo absoluto estruturado pelo calendário e pela periodização que o pesquisador constrói sobre o calendário. Este tempo social histórico permite organizar eventos e fenómenos duradouros de acordo com uma cronologia (Borella, 1990). A sociologia e todas as abordagens sincrónicas querem afastar-se deste tempo fluente a fim de basear a sua cientificidade no tempo relativo e neutro da mecânica. É o tempo dos sistemas e estruturas, específicos de cada sistema, uma dimensão simples do mecanismo que pode ser dispensada se o sistema for estável e fechado.
Esta dualidade é particularmente marcante em demografia, economia e política. Tanto assim que se duvida se estamos a falar das mesmas coisas. No primeiro caso, estamos a falar de objectos naturais, como teria dito Auguste Comte; no segundo, de objectos artificiais, sistemas abstractos e modelos. Na maior parte das vezes, ambos não têm mais nada a dizer um ao outro. Os historiadores só falam do passado e proíbem-se de qualquer explicação e especialmente de qualquer previsão. Outros, sociólogos, economistas, cientistas políticos, de facto falam do presente, mas como se fosse intemporal, isto é, eterno, e aspiram à previsibilidade dos seus modelos.
Mas em política não podemos cingir-nos a esta observação. A política como acção e a política como conhecimento são de facto inseparáveis. Como acção, a política é o controlo de um grupo social, do espaço que ocupa, do tempo que vive, por uns poucos ou pelo próprio grupo. Assim, é em primeiro lugar uma tentativa de controlar o tempo, mas inseparavelmente, é controlado por ele.
Tal como a política não pode fazer o tempo, também a política não pode fazer o tempo, mas tenta controlá-lo a fim de neutralizá-lo. Este esforço visa organizar o tempo político como uma realidade autónoma em relação ao tempo do mundo orientado e irreversível, e em relação ao tempo da história, em suma, em relação ao tempo que flui. A política procura estabelecer um tempo mecânico, neutro e reversível em que não há passado nem futuro. O fenómeno político só existe se observarmos esta situação de uma sociedade que se organiza para controlar a temporalidade do mundo e da história, para se instalar num presente permanente.
Por política, entendemos toda e qualquer acção que se efectiva pela capacidade de provocar ou retardar mudança e que é exercida pelos actores com poder de decisão sobre destinos colectivos. Com efeito, o tempo tem interessado à política, designadamente, enquanto um meio e um instrumento de calendarização de actividades ou como um plano de orçamentos e de avaliação da concretização de metas. Trata-se do tempo-calendário, o tempo como sistema métrico e cronológico (Araújo, 2018). Neste comentário, propomos argumentar que a política (que tanto se refere à acção dos representantes políticos, como a acção do indivíduo humano, no contexto da sua vida) se “esquece” frequentemente do tempo.
Explicadas as metamorfoses sobre o tempo, importa destacar que ao analisar a implementação de uma reforma (do sector público) ou de uma iniciativa governamental, existem dois tempos centrais para a boa realização ou não de tal pretensão política.
O primeiro momento podemos designá-lo de tempo técnico, que seria a possibilidade material e efectiva de colocar em prática um serviço – uma acção. Dito de outra forma, é a criação de condições objectivas para que a vontade do político seja materializada. Aqui não basta a promessa ou a mera intenção, é preciso que existam condições para o efeito, sejam elas de ordem material, financeira ou mesmo humana.
O segundo tempo é político, que é a vontade do implementador (entenda-se actor político de governação) para colocar em marcha uma determinada acção governativa, tendo como objectivo principal o cumprimento de uma promessa política. Seria a ‘entrega’, em forma de bens e serviços, aos cidadãos de um pacto político feito antes da eleição do governante.
Trazemos esses dois tempos para perceber de que forma os mesmos podem ter aplicação, face ao momento de crise que, mais do que sanitária, deve ser entendida como tendo pendor político, sobretudo porque demanda dos governantes a tomada de acções para minimização dos impactos que podem afectar a sua reeleição ou mesmo manutenção em determinados cargos de exercício de poder.
O tempo técnico em face desta pandemia seria a criação de vacinas ou soluções médicas que possibilitem a erradicação da doença, mas enquanto essa acção não se concretiza de todo, o actor político precisa acelerar a sua marcha para que possa cumprir as juras que fez ao seu eleitorado, sobretudo antes da pandemia – referimo-nos aqui ao tempo político.
Pensamos que vivemos hoje a contradição invisível de dois tempos que procuram coexistir num mesmo espaço que podemos designar de arena social, onde enquanto que os cidadãos (aqui entendidos como eleitores) demandam por protecção em prol da sua saúde, o político (governante) preocupa-se em garantir que, ao mesmo tempo que disponibiliza serviços de saúde, deve colocar em marcha as suas promessas políticas (que vão para além de gerir uma pandemia) tendo em vista os próximos pleitos eleitorais – uma campanha política permanente. Se bem feita tal protecção sanitária, pode valer claramente a reeleição de um político ou do seu partido. Esta equação não deve ser surpreendente, se tivermos em conta a racionalidade incompleta que guia qualquer actor político, cuja preocupação maior passa pela perpetuação do poder (Marrel, 2018).
Em outros termos, diríamos que os actores políticos têm consciência da importância do inesperado e do desconhecido no desenvolvimento da tomada de decisão e de políticas. Todavia, a sua visão de tempo na política é fundamentalmente de carácter sequencial, linear e delimitada pela prevalência de datas e de prazos. Uns, à escala anual, como planos de actividade, programas ou orçamentos, e outros a uma escala mais longa. Na base, pode afirmar-se que predomina o conceito de tempo-recurso. As técnicas da acção política utilizam o tempo como recurso e meio de acção, e não apenas como objecto de acção, o que demonstra a transformação do papel da política. Já não se trata de uma questão de poder político que estabelece normas para a actividade humana e social, que de outra forma é deixada livre. É claro que o Estado continua a ser responsável por esta tarefa, estabelece e controla as regras do jogo, mas também se torna um dos jogadores.
Esta situação é bem conhecida. O estado neutro, liberal, mínimo ou modesto é a política no presente permanente, enquanto que o estado intervencionista, assistencialista e providencial é a política em acção no tempo histórico. Estratega e táctico, o actor estatal actua num tempo prospectivo e finalizado, que se torna um recurso raro como os outros recursos necessários para qualquer acção (meios humanos e financeiros, espaço e técnicas, materiais e intelectuais).
Desde as acções mais simples, como as obras públicas, até às mais complexas, como o planeamento completo de toda a vida económica e social, o tempo histórico-social torna-se um recurso raro. Nas democracias liberais, cuja acção política é canalizada através de eleições populares, o intervalo entre as eleições fornece a matéria-prima temporal para a acção dos órgãos políticos eleitos. Os regimes autoritários ou totalitários, ao recusarem as eleições e/ou mandatos limitados, pretendem fornecer-se com uma oferta inesgotável de tempo.
Chegados aqui, sobressaem duas questões que nos parecem fundamentais: como garantir a articulação entre o tempo e a política durante a gestão de uma pandemia? Seria esta uma oportunidade ou perigo político?
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