Como é público, decorre, de 15 a 17 de Maio, a Conferência Anual do Sector Privado, vulgarmente designado por CASP. Trata-se de uma plataforma de diálogo que representa o culminar do diálogo que inicia com a interacção entre os Pelouros da CTA e os Ministérios económicos e/ou transversais, onde as partes instituem equipes técnicas, que se debruçam sobre matérias relevantes que preocupam o sector. De três em três meses ou menos, essas matérias técnicas são levadas ao Ministro de Tutela para ter o tratamento julgado conveniente.
Isto ao nível central, mas o diálogo público-privado também está descentralizado, sendo que a CTA tem Delegações nos distritos e nas províncias, onde o diálogo acontece e versa sobre matérias de interesse local e específico. Essas matérias podem e devem ter solução local, sendo que as que, pela sua natureza, requerem a intervenção dos órgãos centrais, as delegações da CTA reportam aos pelouros e estes canalizam o assunto aos respectivos Ministérios.
No diálogo público-privado, foi instituído o CEMAN, que é um espaço de diálogo público-privado liderado pelo Primeiro-ministro da República de Moçambique. Trata-se de um evento que se pode considerar preparatório da CASP – Conferência Anual do Sector Privado. Neste espaço de diálogo, são discutidas matérias contidas na Matriz de diálogo e não só, para que a Conferência Anual do Sector Privado tenha como objecto fazer o balanço da Matriz entre o Sector Privado e o Governo do dia e fazer uma nova Matriz para o ano subsequente, elencando matérias que merecem o tratamento, nesse lapso de tempo.
Dito isto, o Diálogo Público-Privado parece uma plataforma que corre numa plataforma harmónica, mas não é bem assim. O Diálogo Público-Privado tem tido os seus solavancos, devido a matérias, muitas vezes, de difícil abordagem e sobre as quais, muitas vezes, o sector público não possui resposta, não propriamente por falta de vontade, mas por não possuir soluções à vista. Dou o exemplo dos raptos de empresários nacionais, que é um fenómeno que o sector privado, que é vítima, tem estado, de forma recorrente, a solicitar soluções ao Governo. Entretanto, os resultados não são palpáveis aos olhos de quem está fora do diálogo e não parece haver preocupação para estancar o fenómeno.
Nada disso, a complexidade do assunto e o facto de mexer com as instituições de soberania podem ser o “calcanhar de Aquiles” do problema. Repare que, para a resolução deste fenómeno, somente o sector público deve intervir, porque compete à Polícia da República de Moçambique manter a ordem e segurança públicas em Moçambique. Mas, de forma recorrente, esta instituição queixa-se de falta de meios para fazer face à crescente onda de criminalidade e sua sofisticação. Sem querer limitar esta reflexão à análise de raptos somente, trago como exemplo que o Sector Privado, através da CTA, tem estado a trabalhar afincadamente para a solução do problema, mas, aos olhos das pessoas, parece que nada se faz, sobretudo, quando se é vítima do fenómeno. Mas voltemos à XIX Conferência do Sector Privado.
XIX CASP tem um significado especial, tanto para o Governo como para a CTA
Esta XIX CASP tem um significado muito especial, primeiro, porque Moçambique vai a eleições presidenciais, legislativas e provinciais em Outubro de 2024, o que equivale dizer que, por parte do Governo de Moçambique, depois de Fevereiro de 2025, haverá novos “players” para o Diálogo Público-Privado, a começar pelo nível mais alto, que é o Presidente da República. Muitas figuras concorrem para esse posto de Presidente da República e não sabemos, ainda, qual será o desfecho. Contudo, esperamos que, independentemente de quem seja o próximo Presidente da República, o diálogo seja mantido, por se ter mostrado como uma plataforma útil para a melhoria do ambiente de negócios.
Dizer que o Diálogo Público-Privado não é algo institucionalizado ainda, por isso não vincula, de forma obrigatória, as instituições públicas. Ele resulta da vontade das partes, o que, na minha opinião, não é bom para o ambiente de negócios. O Diálogo Público-Privado deve ser oficializado, sendo que a sua operacionalização poderia depender do Governo do dia. Esperemos que o novo Governo o faça, bem como torne a CASP uma marca desse diálogo. Entretanto, consta que a CTA já avançou com a reserva do nome junto das instituições de direito.
Embora o Diálogo Público-Privado não tivesse um carácter obrigatório, devo dizer que o actual Presidente da República, Filipe Nyusi, participou das IX Conferências do Sector Privado e o único em que não participou é porque não se realizou, devido à COVID 19, por isso não se pode colocar em causa a vontade ou não de dialogar. Ele sempre esteve disponível, podendo se questionar os resultados, mas governar é como uma equipe de futebol de onze, quando a equipe não ganha, o culpado é o treinador e não os jogadores. No caso em apreço, Filipe Jacinto Nyusi é o treinador, o capitão é Adriano Maleiane, Primeiro-Ministro, e os jogadores são os Ministros!
Por isso, esta XIX CASP deve servir de despedida ao bom treinador da equipa, que é Filipe Jacinto Nyusi, ao capitão Adriano Maleiane e aos jogadores, independentemente, se foram bons ou maus jogadores. Igualmente, esta XIX CASP serve de despedida ao Presidente da CTA Agostinho Vuma, por ter cumprido os dois mandatos, como Presidente da CTA – Confederação das Associações Económicas de Moçambique.
Agostinho Vuma, Presidente da CTA, deixa legado à instituição!
Por ocasião do fim do seu mandato, como Presidente da CTA – Confederação das Associações Económicas de Moçambique, Agostinho Vuma pretende deixar um legado, através da sistematização do que foi o Diálogo Público-Privado, nos últimos 10 anos em Moçambique, curiosamente, o que equivale dizer que Agostinho Vuma irá deixar um espólio do seu mandato, que coincide com o mandato de Filipe Nyusi, Presidente da República. O sector privado, de um modo geral, espera com ansiedade esse espólio, sistematizado de forma cronológica e reduzido a LIVROS.
Mesmo para terminar, agradecer ao Governo de Moçambique, liderado por Filipe Jacinto Nyusi, Presidente da República de Moçambique, por ter estado muito perto do Sector produtivo nacional através da CTA e, igualmente, agradecer a Agostinho Zacarias Vuma, por ter levado a bom porto os interesses do Sector Privado durante estes 10 anos da sua Governação. Para os dois, Filipe Jacinto Nyusi e Agostinho Zacarias Vuma, ide em paz e estamos gratos pelo trabalho que realizaram em prol de um bom ambiente de negócios. Continuem nos inspirando nesta caminhada!
Adelino Buque
“Produtores de hortícolas e outros frescos no Regadio do Chókwè, em Gaza, clamam por uma indústria de conservação e processamento para rentabilizar a cadeia de valor de produção na região. Os agricultores afirmam que, por falta de indústria de processamento agrícola, anualmente, somam prejuízos enormes com a deterioração de grandes quantidades de produção. Entretanto, o Administrador Distrital de Chókwè, Eceu Muianga, tranquiliza os camponeses com a promessa de retoma, ainda este ano, das actividades do Complexo Agroindustrial de Chókwè que garante absorver grande parte do tomate cultivado na área”.
In Jornal Noticias Edição nº 32.233 de 09 de Maio de 2024, primeira página.
Confesso que tudo o que se refere à produção agrícola, independentemente do local de produção, me cativa e me enche de curiosidade, por isso, quando vi o título “Agricultores pedem fabrica de processamento”, fiquei curioso e, depois da breve leitura, voltei a reler, para perceber se não estava equivocado. De acordo com o Jornal Noticias, os agricultores dizem somar enormes prejuízos, por falta de uma indústria de processamento. Na minha opinião, uma matéria destas merece um tratamento mais aprofundado, sobretudo, quando se sabe que, nessa região, tivemos várias indústrias de processamento que, por razões diversas, pararam de laborar.
Aqui, não uso a expressão “faliram” para não suscitar debates desnecessários. O que é facto é que a nova fábrica de Chilembene, salvo erro, não chegou a laborar em pleno, por falta de matéria-prima e as informações veiculadas na altura prendia-se com os preços que os agricultores queriam do seu tomate que não era compatível com os preços para o tomate para a indústria. Ora, se este entendimento não existir, provavelmente, o Administrador pode fazer promessas de que amanhã será cobrado e, eventualmente, terá dificuldades de dar resposta que satisfaça os referidos camponeses!
Por outro lado, é importante que os agricultores ou camponeses estejam conscientes de que o produto para processamento não é propriamente refugo ou rejeito do consumo fresco, pelo que a produção deve estar virada para esse fim industrial e com preços muito mais baixos que a produção para consumo de tomate fresco, mais para a indústria. O industrial deve dizer qual a variedade que lhe interessa, não pode o agricultor ou o camponês produzir o tomate de uma variedade do seu gosto e querer que a indústria consuma!
Ora, faço esta reflexão de forma emocional porque, durante largos anos da minha vida, trabalhei na região de Chókwè, na aquisição de vários frescos para a empresa onde trabalhei e trabalho. Aqui não falo por suposição, falo com conhecimento de causa. O meu colega farta-se de contar a história dos agricultores desta região e alguns dirigentes da mesma. Fala, por exemplo, de um dirigente que se queixou ao Presidente Samora Moisés Machel, na altura, dizendo que o tomate estava a apodrecer em Chókwè. O meu colega mandou um camião cavalo para resolver o problema e o camião cavalo regressou de Chókwè com menos de duas dezenas de caixas. Não havia tomate apodrecendo ali!
Exercício de Compra de Tomate em Chókwè!
Pessoalmente, durante mais de três campanhas, fiz parte de uma equipa interessada no tomate de Chókwè. Na nossa equipa integravam pessoas em representação da indústria de massa de tomate, que tinha uma exigência específica, indústria de processamento do tomate inteiro, cujas exigências são outras, o tomate fresco, com outras exigências e as variedades, igualmente, devem ser diferentes. Por exemplo, para a conserva de tomate inteiro, é uma variedade diferente do tomate para massa, o nível de maturação também é diferente. Estarão os camponeses e agricultores preparados para esse tipo de produção?
Eu não conheço o Complexo Agro-Industrial de Chókwè, mas trabalhei com o Complexo Agro-Industrial do Limpopo. Fazia o processamento do tomate, mas quem garantia a produção para esse processamento não eram camponeses, nem a Cooperativa dos Heróis Moçambicanos que, na altura, tinha um nível de produção comercial, eram as empresas do Estado que faziam essa produção.
Depois do Complexo Afro-Industrial do Limpopo, creio ter ido a LOMACO, cuja estadia durou o tempo que durou e teve grande entrave na sua produção, devido ao mercado. Os últimos lotes de produção comercializável foram de massa de tomate em latas de 5 kg, essas latas de tomate, devido a formas de conservação, causaram um enorme alvoroço na Baixa da Cidade de Maputo. Num dia de calor, as latas começaram a rebentar, as pessoas, que não sabiam do que se tratava, começaram a correr em debandada. Felizmente, não durou muito tempo e o pânico ficou controlado e foi reposta a tranquilidade pública.
Por isso, julgo que para reportar assuntos de agricultura, numa região como Chókwè, é preciso dispor de muito tempo. Não basta ouvir o choro do agricultor ou camponeses, não basta ouvir o representante do Estado, é importante ouvir quem vai colocar a “mão na massa” no caso a referida Empresa, Complexo Agro-Industrial do Chókwè, sob pena de fazer-se promessas não exequíveis. Mas valeu, deu para produzir esta reflexão que julgo ser de alguma utilidade para quem queira enveredar por este tipo de negócios.
Adelino Buque
Depois das celebrações dos 50 anos do assassinato e desta nova Páscoa de Amílcar Cabral, abraçamos, com a mesma êxtase e fraternidade, o seu centenário natalício. Amílcar Cabral, possivelmente um dos mais celebrados líderes das lutas pela libertação e independência dos países africanos de língua portuguesa, nos convoca, serenos e incertos, em seu centenário, imbuídos desses nobres ideais e do sentimento patriótico de servir o povo, de lutar pela igualdade e por um amanhã melhor, sem ambiguidades. Esse era o cerne de seu pensamento e pelo qual ele dedicou sua vida e derramou seu sangue.
Reverenciado, enaltecido e glorificado como um dos mais carismáticos líderes da sua época, Amílcar Cabral era confesso admirador e amigo de Eduardo Mondlane, nosso herói nacional, muito embora, nem sempre, estivessem de acordo sobre as estratégias de luta e fundamentos da luta. O importante é que, após essa longa jornada, Eduardo Mondlane conseguiu retornar à sua aldeia como um combatente pela libertação e pelo progresso de seu povo, enriquecido pelas experiências muitas vezes perturbadoras do mundo contemporâneo. Ele ofereceu um exemplo frutífero, enfrentando todas as dificuldades, resistindo às tentações e rompendo com os compromissos de alienação cultural e política, ao mesmo tempo em que se reconectou com suas raízes, identificou-se com seu povo e dedicou-se à causa da libertação nacional e social. Eis o que os imperialistas não lhe perdoaram, afirmava.
Amílcar Cabral foi um dos maiores e mais críticos pensadores do século XX, de acordo com muitas correntes de pensamento e escritos. Um pouco por esta razão, ele continua presente nas cátedras, citado em diferente bibliografia e eternizado em telas. O seu pensamento continua subjacente em duas correntes principais, sendo a primeira a que se consubstancia no facto de, através da sua prática e acção revolucionárias ter dado um passo significativo no sentido de renunciar à condição de subalternidade e de dependência a que o colonialismo português o tinha votado, a ele e ao seu povo, enquanto colonizados.
A segunda corrente, eventualmente, a mais estudada pela academia mundial era o seu pensamento crítico, ao não se ter conformado com alguns dos paradigmas do pensamento social vigentes na época, inclusive os das ciências sociais. Estas reflexões de Amílcar, que se distanciaram das lideranças subsequentes, pós-independência, encontram expressão nos dois volumes das suas obras, nomeadamente “A Arma da Teoria”, de 1980, para o primeiro, e “A Pratica Revolucionaria: Unidade E Luta II”, de 1977, para o segundo.
Para alguém que não teve a oportunidade de o conhecer fisicamente, e sem nenhuma aparição em Moçambique, diferente de Julius Nyerere, Agostinho Neto, Keneth Kaunda, todos eles já centenários, não o pode conceber dissociado e distanciado de Eduardo Mondlane, Paulo Freire e tantos outros. Num eloquente discurso na Universidade de Syracuse, nos Estados Unidos da América, onde Mondlane se formou e foi homenageado, Amílcar afirmou “[…] quisemos demonstrar a nossa amizade militante e solidariedade ao povo de Moçambique e ao seu bem-amado chefe, o Dr. Eduardo Mondlane, ao qual estivemos ligados por laços fundamentais na luta comum contra o mais retrógrado dos colonialismos, o colonialismo português. A nossa amizade e a nossa solidariedade são tanto mais sinceras quanto nem sempre estivemos de acordo com o nosso camarada Eduardo Mondlane, cuja morte foi, aliás, uma perda também para o nosso povo […]”
Faz, pois, sentido que os nossos países e, sobretudo, os jovens retomem a estes testemunhos, desse tempo, cujos pensamentos continuam presentes. É fundamental revisitar as personagens que fizeram e fazem nossa história, sociedade e cultura e, principalmente, os cultores que assumiram protagonismo e falaram em nome de tantas gerações.
Defendo, vezes sem conta, que estes tempos exigem que se faça algo contra o esquecimento, contra o vexame do alheamento e, sobretudo, contra a indignidade do desconhecimento e essa amnésia colectiva que aos poucos se apodera de todos nós.
O centenário de Amílcar Cabral representa uma extraordinária oportunidade para revisitarmos seu caminho, explorando seus pensamentos, atitudes, valores, aspirações e inquietações. Desde sua participação na Casa dos Estudantes do Império até a clandestinidade na metrópole, passando pelas associações de estudantes africanos e enfrentando prisões arbitrárias e massacres, devemos reverenciar os jovens que, diante de todos os perigos, expressaram e demonstraram com bravura um amor ilimitado e um dever patriótico incomum para com Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Angola e São Tomé e Príncipe.
Amílcar Cabral, esse engenheiro Agrónomo, líder da revolução da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, continua tão presente e consequente pelo seu pensamento político e libertador, sua visão cultural e pelo pragmatismo com o qual conduziu os destinos da luta de libertação nacional, mas, também, pela utopia do seu sonho e querer. Essa utopia que o posicionou como exímio conhecedor e detentor de reflexões políticas e revolucionárias muito para além do seu tempo e espaço. Permanecem célebres suas análises e memórias sobre a essência desse colonialismo, a forma inglória com não foi entendido o clamor dos povos e, sobretudo, a maneira como se oprimiu povos africanos e se estendeu essas práticas fascistas para o seu próprio interior. Por essa razão, as recentes celebrações do 25 de Abril, 50 anos da revolução dos cravos, simbolizam e seriam consequência directa das próprias lutas de libertação nas colónias do ultramar.
Amílcar Cabral afirmava que a política é repleta de contradições, destacando a necessidade de diálogo aberto e discussão franca sobre questões que conduzem às melhores soluções para o futuro. Para ele, a política também era um exercício de diálogo contínuo. Essa contradição intrínseca encerrava a essência do diálogo e justificava a luta pela dignidade de seu povo, pelo resgate de seus valores morais e pelos direitos fundamentais e pela paz para os povos africanos.
Amílcar Cabral considerava que a essência de sua luta residia na busca pela possibilidade e realização da construção de pontes e consensos. Por isso, participou em sessões das Nações Unidas, visitou universidades, corporizou a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP) e criou as primeiras assembleias populares nas zonas libertadas. Sob sua liderança, mais de 80% da Guiné-Bissau se libertou, até ao começo dos anos 70. A luta de libertação, afirmava, só poderia ser pela dignidade dos povos do seu país, a liberdade e a possibilidade de poderem usufruir dos mesmos direitos e recursos.
Continua célebre a sua afirmação segundo a qual “[…] a história ensina-nos que, em determinadas circunstâncias, é fácil ao estrangeiro impor o seu domínio a um povo. Mas, ensina-nos, igualmente que, sejam quais forem os aspectos materiais desse domínio, ele só se pode manter com uma repressão permanente e organizada da vida cultural desse mesmo povo, não podendo garantir, definitivamente, a sua implantação a não ser pela liquidação física de parte significativa da população dominada […]”. Portanto, apelar à indestrutível resistência cultural, assumiria uma das formas de contestar, com vigor, o domínio estrangeiro.
Para Amílcar Cabral, e por vezes em rota de colisão com seus próprios camaradas, os movimentos de libertação deveriam saber preservar os valores culturais positivos de cada grupo social bem definido, de cada categoria, realizando a confluência desses valores no sentido da luta, dando-lhes uma nova dimensão, a nacional. Perante esta necessidade, a luta de libertação era, acima de tudo, uma luta tanto pela preservação e sobrevivência dos valores culturais do povo, como pela harmonização e desenvolvimento desses valores num quadro nacional.
À semelhança de Frantz Fanon, autor da célebre obra “Os Condenados da Terra”, de 1961, o colonialismo foi um sistema que construiu e perpetuou estereótipos, destruindo valores e moral. Acredito que Amílcar estudou Fanon e Albert Memmi, manifestando em diferentes discursos uma grande preocupação e desilusão, evidenciadas pelas várias experiências de governação em África após 1960. Dizia Cabral que após a independência, tudo deveria ser feito para que as pessoas passassem a viver melhor que antes, que essa era a forma de legitimação desse exercício e sacrifício libertador. Se depois das independências as pessoas passassem a viver pior, então, não valia a pena ter lutado pela independência.
Amílcar Cabral, descrito por Paulo Freire como um pedagogo do anticolonialismo, defendia três eixos fundamentais na governança dos países africanos após as independências conquistadas por revolucionários: a necessidade de governar com decência, honestidade e patriotismo. Estas são questões de grande relevância na contemporaneidade.
Nesta breve e desproporcional retoma ao pensamento de Cabral, resgatando sua memória e dignidade, amor pelo continente, esquartejando os tremendos desafios e a complexidade dos tempos, batemos de cara com as vicissitudes, experiências das lutas pela emancipação, equações para o desenvolvimento económico, afirmação da identidade, congregação dos ideais de nação e institucionalização de novas regras de convivência social, e damos conta que Cabral esta desaparecido. Precisa de ser resgatado. Nem que seja por um dia.
A gestão dos novos poderes políticos, permaneceu como processos inacabados, de enorme complexidade e, nem sempre, predefinido por lógicas e soluções reconciliatórias. Entre a misoginia, os sonhos políticos e as virgindades discursivas até as ambiguidades, assimetrias e desigualdades, esses países foram construídos primeiro como estados socialistas, depois como sociais-democracias, mas logo foram forçados a converter-se em sistemas pluralistas, multipartidários e de economia aberta.
As instituições globais promotoras do neoliberalismo, explorando as fragilidades socioeconómicas e institucionais e as clivagens culturais e políticas locais, ditam os vectores e modelos macroeconómicos de desenvolvimento que, em larga medida, servem os seus próprios interesses, fragilizando as correntes do não-alinhamento, cooperação sul-sul e a permanente dependência socioeconómica e tecnológica.
Amílcar Cabral e Eduardo Mondlane poderiam não ter pensado no antídoto para estas situações, nem mesmo teriam respostas para fazer face a ferocidade do capitalismo global, do neoliberalismo, onde os países, como o nosso, se apresentam desprovidos desses recursos tecnológico e científico, com as instituições fragilizadas, e que se tornam presas fáceis. Os condicionalismos fazem com que as lideranças não se assumam e que os destinos nacionalistas permaneçam sonhos adiados. Agora, mudamos os termos e já são outros conceitos de endogeneidade, desenvolvimento tecnológico, digital e ambiental.
Como muitos outros países da periferia, acabamos por nos configurar como Estados de descontinuidades e processos políticos, económicos, sociais e culturais inacabados. Os líderes de ontem nem sequer acreditam que viramos palco dos descaminhos e incongruências, que inviabilizam consensos e retardam o passo do desenvolvimento harmonioso como nação, gerando tensões, conflitos sociais e terrorismo.
Cabral, esse multilateralista nato, não acreditaria, nem no pior dos seus sonhos, que as respostas de ontem continuam perguntas, ainda, de hoje, e que as incertezas se perderam com o tempo. Amílcar e Mondlane deitariam lágrimas de tristeza constatando que 50 anos depois do movimento das independências, estas terras continuam convivendo com graves crises económicas e sociais, políticas e militares. Esta população de 24 anos ou menos, procura pelos seus próprios ventos de mudança, para desfrutar do potencial e das oportunidades. “Amo Africa e quero um dia regressar”.
Foi manchete nas últimas semanas e até meses, e dominou vários debates públicos em círculos de opinião, a questão da sucessão dentro do partido FRELIMO, bem como sobre quem incidiria a escolha do próximo candidato às eleições de Outubro próximo.
Na reunião dos ACCLIN que antecedeu a sessão ordinária do Comité Central do Partido FRELIMO, José Óscar Monteiro, quadro sénior, ideólogo da FRELIMO e veterano da luta de Libertação de Moçambique, com a verticalidade e frontalidade habitual deu mote a um assunto que a todos preocupava, mas poucos tinham coragem de abordar. Ao levantar de forma estilística a imagem do elefante na sala, abriu uma nova página na agenda do dia – era inevitável não se falar do tema da sucessão.
No épico “conclave” extraordinário que durou três dias, contra tudo e todos, emergiu uma figura inesperada. Surgiu de uma lista restrita proposta por um núcleo duro, e que poucos deram a devida relevância na altura – chamarei a esta figura, de forma analógica de “Furacão Chapo”.
Dos retiros hermenêuticos que realizei para tentar perceber o outro lado do fenómeno, permiti-me acompanhar alguns debates a vários níveis, desde os órgãos de comunicação como televisão, rádio e jornais às redes sociais – estas últimas com uma quantidade anormal de análises. Neste exercício pude encontrar uma nota e um denominador comum – uma tentativa de catalogar e rotular o candidato escrutinado e relacionar com os tão almejados ventos da mudança. E dessa constatação formulei algumas perguntas que orientaram a reflexão.
Afinal de contas, de que mudança tanto se fala? Do novo paradigma governativo? Da tomada de consciência e atitude dos jovens quadros do partido? Ou apenas e simplesmente da mudança de um candidato mais velho por outro mais jovem?
Que nuances essa propalada e celebrada mudança carrega consigo?
Sobre a matemática e racionalidade dos votos, prefiro guardar para uma outra reflexão, sob o risco de desfocar-me do cerne da reflexão.
Ao anúncio formal do candidato - “Furacão Chapo”, seguiram-se dias de azafama e muita euforia no seio de alguma franja da sociedade. Seguiu-se igualmente aquele processo de catalogar e curricular o novo candidato, vasculhando um pouco a sua história, seu percurso, ligações, conexões, desconexões e tudo o que pudesse conferir alguma autoridade e legitimidade para dizer que o conhecemos minimamente.
O até então, apenas Governador da majestosa província de Inhambane (que ostenta o nome de Terra da Boa Gente), surge como o escolhido, e é já apelidado e adjectivado por um grupo de analistas e comentadores de “salvador e portador de esperança”. Os adjectivos surgem por um lado devido ao facto de Daniel Chapo ter infringido uma pesada e inesperada derrota ao tal “colosso indesejado”, conhecido como alguém de matriz autoritária, pouco ávido a discussões e de poucos consensos; e por outro lado, porque a eleição marca um ponto de viragem histórica em relação as últimas tendências percebidas como semi-autoritárias, pouco dialogantes, pouco transparentes e pouco democráticas no seio do partido. Um ponto de viragem e de advocacia dos jovens quadros do partido que deram um murro na mesa – os mesmos quadros que foram criticados e acusados de forma veemente de pouco ou nada fazer para reverter a situação actual.
A questão paradigmática que aqui tento trazer não é tanto que descrever o que aconteceu no conclave da Matola, mesmo porque não teria novidade nenhuma nem propriedade alguma para trazer seja lá o que fosse. Mas, como moçambicano, filho desta terra e que ama o seu país de forma profunda, me propus escrever e oferecer este texto onde discorro sobre a possível via sacra do conclave da Matola ao acto de governar. De como pode este processo ser capitalizado para que o Sol de Junho recupere o brilho que vem perdendo. Como é que esta viragem pode significar a recuperação ou reinvenção da mística de setenta e cinco.
A nossa reflexão como sociedade, não deve cingir-se a caras nem a coroas, tampouco a teorias sobre etnicidade, religiosidade, racialismo, ou seja, lá que variável a equação política queira tomar. Não pode ter como pressupostos a personificação de um indivíduo seja ele do Sul, do Centro ou do Norte, mas sim olhar para Moçambique como um todo globalizante, seus povos, suas pessoas, suas matrizes culturais e sociais, seus defeitos e suas qualidades, seus problemas e soluções.
A eleição de Daniel Chapo a candidato, não encerra uma discussão. Na verdade, a meu ver, reinicia um debate já antigo sobre a necessidade do partido que governa o país se ajustar às novas tendências, aos novos tempos, e retocar ligeiramente a narrativa já desgastada sobre a libertação do jugo colonial e descolonização, sobre o conflito dos 16 anos – essa narrativa desgastou-se e fatigou até aos que a compraram, e pouco convence e comove o eleitorado mais novo.
Chapo herda enquanto candidato, um partido de certa forma fragmentado e com tendência de clivagens que podem abalar a estabilidade; um partido com algumas forças internas a andarem em contramão guiadas por interesses particulares. Pesa sobre ele, o fardo de ser o candidato sem o tal traquejo e preparo ideológico e até rotação governativa de nível central e que ousou derrotar um peso pesado. Mas a democracia é isto mesmo: entrar ao sufrágio e saber que todos resultados são passiveis e possíveis.
Ser candidato pela FRELIMO, num momento em que a oposição se encontra num sono profundo, e de oposição só tem nome, confere uma vantagem competitiva a Chapo; confere uma vitoria quase certa em Outubro (se retumbante, esmagadora e asfixiadora ou não, isso as urnas irão dizer).
Chapo irá, caso se confirme a premissa, enfrentar três grandes desafios:
O primeiro grande desafio que enfrentará enquanto candidato será o de gerir as várias animosidades das chamadas alas que foram sedimentando sua posição no xadrez interno e reclamando cada uma o seu protagonismo e no acesso ao tacho e a riqueza do país. Sendo ele novo em idade e em experiência político-partidária deverá se dar tempo de moldar-se num processo simultâneo de aprender fazendo.
O segundo desafio, será o de se tornar o presidente de facto e de jure do partido e ter poderes suficientes e liberdade para ser ele mesmo – claro que sabendo respeitar limites, os estatutos e os demais instrumentos do partido. Aqui terá um árduo trabalho de resgate da imagem do partido, do orgulho da onda vermelha, recuperação do eleitorado descontente e frustrado e, conduzir um processo interno de reconciliação e valorização da história do partido, dos seus ideais e legados.
O terceiro e último desafio que vislumbro, e talvez o mais importante será o de governar Moçambique. Governar um país vasto e com muitos problemas que não foram devidamente acautelados no passado (pobreza generalizada, a segurança alimentar, choques climáticos, educação decadente, saúde doentia, o dossier das dívidas ocultas e de outras que poderão surgir, a insurgência em Cabo Delgado, a corrupção no aparelho do estado, nepotismo, segurança pública, a segurança do país, a defesa da nossa soberania, etc).
Preparando o voo, para aterrar de forma segura e sem estrondo, digo de forma objectiva e sem rodeios: onde muitos veem Chapo como um herói e salvador, eu vejo como produto e consequência de uma circunstância, uma vez que a escolha dele não se baseou numa prerrogativa nem numa premissa previamente estudada e acordada. Dizendo por outras palavras, subassumo que Chapo não terá desenhado, apresentado nem submetido uma manifestação de interesse para o efeito.
A circunstância a que me refiro é daquelas conspirações difíceis de explicar; e pode ter um final feliz se as peças do xadrez se assentarem no tabuleiro sem pressões internas e externas. Enquanto governante, deverá saber ser lobo em alguns momentos e ovelha noutros.
Chapo tem um desafio à altura da sua altura _ Amar Moçambique em primeiro lugar para poder governar com sabedoria e ponderação. É meu (e talvez de muitos) o ensejo que esta caminhada seja gloriosa. Lembrar que apesar de ter espinhos, a rosa não perde a sua beleza – este é o Moçambique que Chapo vai herdar em breve. Terá de aprender a lidar com nuances e vicissitudes de vária ordem.
Homens e instituições fortes podem fazer Estados fortes e prósperos.
Disse!!!
Por: Hélio Guiliche