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terça-feira, 14 setembro 2021 07:59

Breve Prontuário do Julgamento da BO

Decorre desde 23 de Agosto passado o que muitos chamam de maior julgamento da história de Moçambique, pela sua natureza, magnitude e extensão. Em termos de natureza, é a primeira vez na nossa existência que temos um caso de julgamento de grande corrupção, no sentido de envolvimento de valores altos, à volta de cinquenta milhões de dólares, mesmo que alguns considerem que ainda falta descobrir o paradeiro dos 700 MUSD que a Krol não conseguiu nem sentir o cheiro do seu destino. Magnitude, dada a quantidade de réus envolvidos: 19, por enquanto; mas há muitos mais! Em termos de extensão, ainda não se sabe ao certo quanto tempo vai durar, mas, em princípio, não vai ser menos de seis meses. Na tentativa de ajudar na compreensão deste facto social, para usar uma expressão sociológica, vamos aqui fazer o levantamento de termos e ou conceitos que estão lá em uso e vamos procurar dar-lhes sentido, de acordo com o linguajar popular, vulgo senso comum. A ordem não vai, ao contrário dos dicionários ou prontuários comuns, obedecer à do abecedário; tentará ser na sequência do entendimento do povão. Não é fechado, o leitor pode acrescentar ou melhorar certo conceito e ou a sua significação.

 

Dívidas ocultas - Dinheiro roubado ao Estado moçambicano por um grupo de cidadãos, no valor global de 2.2 BUSD, ao abrigo do projecto de protecção da Zona Económica Especial. Não há consenso sobre a designação do fenômeno que ocorreu. Uns chamam de dívidas ocultas, outros, de dívidas não declaradas, outros ainda de dívidas ilícitas, outros ainda mais, de dívidas ilegais. Pelas argumentações de todas as partes, fica claro que se trata de dívidas ilegais, uma vez que foram contraídas à margem da lei. No processo da sua contração, devia ter havido aquiescência da Assembleia da República e do Tribunal Administrativo. Para o cidadão de rua, trata-se de dinheiro roubado ao povo, pura e simplesmente!

 

Questões prévias - Momento, antes da audiência, em que os advogados de defesa, isto é, dos caloteiros, se unem e fazem de tudo para inviabilizar o julgamento. Levantam questões e questões, até aquelas que muito antes da marcação da data do julgamento tinham já colocado ao juiz, tipo a cobertura jornalística do evento, ou a liberdade condicional de alguns arguidos, alegadamente porque os prazos de prisão preventiva tinham expirado e, outros, sendo membros dos Serviços de Segurança não deviam ser presos… tudo para que o tribunal se renda às suas pretensões. Na boca do povo, o juiz da causa desbaratou todos os malandros! E disse alto e bom tom que eles não estavam ao serviço do Estado, mas a roubarem o Estado.

 

Abu Dabi - Cidade talismã que o povo sonha em estar e conhecer. Segunda casa dos caloteiros; nos momentos áureos do calote, viviam lá de passaporte. Quase todos eles tinham vistos de residência, mesmo não residindo lá.

 

Acusação - Segundo o Ministério Público, os arguidos associaram-se para sacarem ilicitamente da órbita do Estado milhões de frangos (ie., de dólares norte-americanos). Na linguagem dos populares, os arguidos roubaram dinheiro do Estado no valor de muitos milhões de dólares.

 

Acusação verdadeira - Na elaboração de diversos entendidos, especialistas, acadêmicos, analistas e jornalistas, bem como na percepção do povo nos “chapas”, a verdadeira acusação ainda não foi feita. E a verdadeira acusação é: o governo de então violou a constituição ao contrair empréstimos para determinados projectos, em valores que obrigavam que tivesse que ter a anuência da Assembleia da República e o pronunciamento do Tribunal Administrativo. Não o fez e tais projectos são inexistentes e a Procuradoria Geral da República não agiu, nem está a agir. Mas tem a obrigação de o fazer, responsabilizando o executivo de então.

 

Acusados - Os arguidos, ou réus. Muito pouco se fala de acusados na sessão. Fala-se mais, na rua e nos chapas, de presos e réus.

 

Alcunhas - Pseudônimos que Jean Boustani atribuiu aos arguidos e outras os arguidos se foram atribuindo uns aos outros, tudo para despistarem eventuais investigações da lei. A lista detalhada pode ser encontrada no relatório da Kroll.

 

Arguidos  - Réus. Esta equivalência não reúne consenso entre os advogados. Uns entendem que devem ser considerados ‘arguidos’ porque ainda não se provou a sua culpabilidade; enquanto a designação ‘réu’ já traz consigo a carga de culpabilidade. Para o povo na rua, são aqueles que roubaram milhões ao Estado e deles se locupletaram.

 

Arguidos verdadeiros - Na voz do zé povão, os arguidos em julgamento não são os verdadeiros. Os verdadeiros são os que devem explicar onde é que foram os 2.2 biliões de dólares de que não se fala neste julgamento. No corrente, só se fala de 50 milhões. O povo espera ser esclarecido sobre todo o valor e não apenas uma pequena parcela.

 

Basetsane - Estrela da manhã, mas também da noite. Estrela da manhã… porque serviu de guia aos reis magos; mas também é da noite, porque apareceu à noite, iluminou e depois desapareceu. A Sra. apareceu, guiou e apresentou Boustani e desapareceu!…

 

BO - Cadeia de máxima segurança de Moçambique. Este é o segundo grande julgamento que acolhe. O primeiro foi há 19 anos, quando foi julgada a quadrilha que assassinou o jornalista Carlos Cardoso.

 

Boustani, Jean - Caixa negra. Arquitecto da unidade nacional de todos os caloteiros presos e não presos e nem sequer processados.

 

Dólares - Moeda norte-americana equiparada a galinhas. Os réus, para se referirem camufladamente aos milhões de dólares que estavam a tratar de embolsar ilicitamente, usavam na documentação a expressão ‘galinhas’; “cinquenta galinhas”…

 

Fardamento - Cavalo de batalha dos advogados. Pediram insistentemente ao juiz para que os seus constituintes não envergassem a roupa de reclusos nas sessões de julgamento; pedido recusado pelo tribunal.

 

Facilitador - Teófilo Nhangumele. Grande lobista. Certamente que será debitado a ele a consagração definitiva da profissão de lobista/facilitador na nossa vida social. Nhangumele defendeu com unhas e dentes a sua profissão ou ocupação de facilitador.

 

Galinhas - Vide dólares.

 

Juiz Efigénio Baptista - Figura que está a julgar o caso "dívidas ilegais”. Pessoa a quem (i) o mundo inteiro tem em olho para ver até onde vai ou pode ir; (ii) o próprio aparelho de justiça, incluindo e sobretudo a Procuradoria Geral da República, deposita confiança para restaurar a credibilidade, seriedade, honestidade, capacidade e competência há anos perdida; (iii) o povão, àvido de justiça, revoltado, deposita total confiança para a reposição da justiça e para dar uma lição aos políticos; e (iv) a quem os corruptos acham que vai repor a justiça, deixando-os ir em liberdade, a despeito de tanto roubo ao povo. Em pouco tempo, tornou-se uma das figuras mais populares e muito queridas pela população. O futuro de Moçambique e o seu próprio está nas suas mãos.

 

Ministério Público - Dra. Ana Sheila Marrengula. Para a população em geral, esta é a revelação de uma grande mulher. Muita competência, firmeza, destemida, precisa, incisiva e linguagem fina, apurada - nunca se lhe notou nenhuma gafe linguística. É de grandes mulheres como esta que Moçambique precisa. O futuro pertence-lhe!

 

Motivação política - Alegação de certos réus mancomunados com os seus advogados para atirar areia aos olhos da populaça. Estratégia para criar confusão nas cabeças das pessoas, desvalorizar o julgamento e transformar o momento em instância de perseguição política, para dar a entender que alguém está a ser politicamente perseguido.

 

Muito bem - Expressão de fôlego preferida do juiz da causa. Após toda a batalha, pequena ou grande, a expressão que segue é “muito bem”.

 

Cipriano Sisínio Mutota, também conhecido por Rosário Mutota - O coitado do grupo. O mais injustiçado. Começou a desenhar o projecto de protecção da Zona Económica Especial, mas depois foi afastado. Para seu azar, do grupo dos caloteiros, foi o que menos galinhas recebeu e depois de tanto fazer barulho. Como um azar nunca vem só, o Mutota foi abandonado pela quadrilha na BO, indo ela acomodar-se no hotel de Língamo. Com as poucas galinhas que recebeu, ele foi fazer machamba em Mocuba em local que ninguém conhece, produziu milho, gergelim e soja, cujo dinheiro da venda comeu.

 

Ndambi - Nome de um fenômeno natural - cheia decorrente de transbordo de um rio, em consequência de chuvas intensas - que o antigo Presidente da República adoptou para o seu primeiro filho. Após o seu interrogatório, ficou conhecido como ‘cinderela  mal criada’. Cinderela porque nalguma correspondência com Boustani foi assim tratado; e mal criado na sequência das várias chamadas de atenção feitas pelo juiz no curso do seu interrogatório, em que ele se comportava menos apropriadamente. Vezes sem conta interrompia o juiz, a magistrada do Ministério Público (MP) e ou o assistente do processo, tendo chegado a perguntar à representante do MP se queria um vinho, para além de manter as mãos nos bolsos do seu blusão de 260 euros todo o tempo, até agora.

 

Não respondo a essa pergunta = Não me ocorre/recordo = Não posso precisar - Expressões dos interrogados/presos para ocultarem informação. Estratégia adoptada pelos reclusos para não confessarem a verdade material ao tribunal e ao público, já que o julgamento está a ser transmitido em directo pelos media.

 

Vamos, meu caro - Expressão do juiz da causa a puxar pelo escrivão que o senso comum acha que é muito lento. Alguém já sugeriu até que o tribunal adoptasse a técnica já disponível no mercado de conversão automática do texto oral em texto escrito. Há a sensação de que se gasta muito tempo na redacção da acta.

 

Viagem - Ida (nova entrada na língua). Perguntado o réu se tinha viajado para a Alemanha, respondeu que não tinha viajado para Alemanha, mas tinha ‘ido’ para a Alemanha.

 

Vinho - Perguntado pela Magistrada do Ministério Público, Dra. Ana Sheila Marrengula, sobre qual era a outra mercadoria que o avião que num dos seus e-mails a Ndambi Guebuza Boustani indicava que tinha embalado vinho e outra mercadoria para a Presidência da República, o arguido respondeu “quer uma garrafa de vinho”?

domingo, 12 setembro 2021 10:24

História de um esquecimento*

Obrigado por me receberem neste encontro. Parabéns aos organizadores destas Jornadas. Moçambique pode ter orgulho na sua intervenção face à COVID 19. Conheço muitos países que se reclamam ricos e desenvolvidos que não foram capazes de sujeitar os interesses políticos e partidários às razões da ciência. Os governantes moçambicanos escutaram os cientistas e seguiram os seus conselhos. E isso é uma tripla vitória: para a ciência, para a governação e para o país. Seria bom que para outros assuntos os dirigentes do país voltassem a aceitar os conselhos da ciência, da arte e da cultura. Venho falar-vos não como biólogo, mas como escritor. 

 

E como escritor, fascina-me o fenómeno do esquecimento. Tenho, para mim, que o esquecimento nem sempre resulta de um lapso. A maior das vezes é uma construção narrativa. Quando nos esquecemos, nós raramente falhamos. Raramente tropeçamos no vazio. Em vez disso, o que acontece é que nós construímos uma outra narrativa por baixo da qual enterramos os tempos que nos causaram medo, enterramos os episódios em que não fomos vencedores. Somos dotados de uma amnésia selectiva que nos desvincula dos grandes sofrimentos. 

 

Às vezes, e isso é o mais triste e mais comum, não existe uma narrativa de substituição. Esquecemos porque, pura e simplesmente, regressamos à nossa velha rotina. Em pouco tempo somos devorados por um quotidiano de pequenas crises e grandes sobrevivências. Mais cedo do que pensamos, voltará a acontecer um outro desastre que nos irá, uma vez mais, apanhar de surpresa. Estaremos, de novo, improvisando respostas de emergência. Estaremos, uma vez mais, desprevenidos perante o previsível. É pena que assim seja. 

 

Na realidade, a lembrança é uma espécie de vacina: prepara nos para lidar com algo que reconhecemos como já vivido. Eu trago uma pergunta simples para esta sessão. E a pergunta é a seguinte: como é que daqui a uns anos iremos recordar a presente pandemia? Essa pergunta pode ser formulada de forma mais directa: será que, depois da COVID 19, vamos criar o novo normal ou vamos regressar ao velho anormal? A melhor maneira de imaginar o futuro depois da COVID 19 é lembrar como, nas anteriores pandemias, a promessa de um novo tempo foi ou não foi cumprida. Pode-se fazer uma pergunta simples: quem ficou a ganhar na longa lista das pandemias: foi a memória ou o esquecimento? Façamos um rápido balanço. Vou saltar por cima das incontáveis pandemias que assolaram a humanidade. E vou escolher apenas a gripe espanhola que, segundo a OMS, continua a ser o maior desastre da história da saúde humana. 

 

Vale a pena, pois, revisitar o ano de 1918, o ano da chamada Gripe Espanhola. Em três surtos sucessivos a Gripe Espanhola matou em todo o mundo 50 milhões de pessoas apenas num ano (dez vezes mais do que a COVID 19 matou em dois anos). Esta pandemia veio junto com a Primeira Guerra Mundial que causou a morte de outras 38 milhões de pessoas. Os governos europeus decidiram esconder a realidade brutal desta doença para não desmoralizar nem os soldados na frente de combate nem as famílias que esperavam que esses soldados voltassem a casa. 


O nome "Gripe Espanhola" não vem do local onde teve início o contágio, mas sim do facto de a imprensa espanhola ter dado especial atenção à doença. A Espanha não estava envolvida na guerra, a imprensa de Espanha não sofria de censura em relação à doença. Se estamos a falar em esquecimento é preciso começar por dizer que a maior parte dos médicos que tratavam os doentes da Gripe Espanhola em 1918 já se tinham esquecido da uma outra pandemia que vinte anos antes tinha atingido gravemente a Europa. Nessa altura, em princípios dos anos de 1890, os hospitais europeus ficaram superlotados de pacientes atingidos pela chamada Gripe Russa. 

 

Os europeus mais pobres que, naquela altura, emigraram em massa para os Estados Unidos da América foram acusados de trazer essa doença para o chamado Novo Mundo. É curioso como os países se esquecem da sua própria história e hoje a maior parte dos que protestam contra a migração são filhos e netos de emigrantes. O drama da gripe espanhola não ocorreu apenas na Europa. Curiosamente, a Gripe Espanhola foi escondida pela mesma razão que a fez disseminar pelo mundo: a Primeira Guerra Mundial. Milhares de soldados de todas as geografias foram transferidos para outros continentes. E as consequências foram explosivas. Só na Índia, 17 milhões de pessoas morreram. Em África dois por cento da população desapareceu. Na África do Sul a história da Gripe Espanhola está bem registada. 

 

Em Setembro de 1918 dois navios de guerra vindos da Inglaterra chegaram a Cape Town transportando 2000 soldados sul-africanos negros. Esses soldados estavam a ser repatriados depois de passarem um ano nos campos de batalha de França e da Bélgica. Actuavam apenas em serviços de apoio logístico já que a lei sul-africana da altura proibia os negros de usar armas. Algumas dezenas desses soldados vinham infectados e foram encaminhados para as suas terras de origem. 

 

O resultado foi o seguinte: em menos de dois meses morreram 300 000 sul africanos. (Lembremo-nos que em dois anos da COVID 19 morreram 83 000 sul africanos). Durante a Gripe Espanhola, seis por cento da população do país desapareceu em menos de dois meses. A África do Sul foi uma das nações mais atingidas do mundo. O mesmo drama aconteceu no Quénia que perdeu 150 000 pessoas em menos de nove meses. Este número de vítimas equivalia a 6 por cento da população total do país. (É preciso lembrar que agora, com a COVID 19, morreram 4800 quenianos). O Gana viu morrer 100 000 dos seus cidadãos. Na Tanzânia, dez por cento da população foi dizimada, mas o drama teve repercussões ainda maiores porque à doença se juntou uma seca e a fome que matou outras milhares de pessoas.

 

Em Moçambique não encontrei registos da pandemia nem há censos precisos e abrangentes do conjunto da população na primeira metade do século 20. Sabemos apenas que em 1950 a colónia de Moçambique tinha 6,5 milhões de habitantes. Se aplicarmos a taxa de mortalidade dos países vizinhos a uma população que poderia variar entre 4 a 4.5 milhões de habitantes poderemos deduzir de forma muito grosseira que Moçambique terá perdido naquela pandemia entre 100 000 a 200 000 pessoas. 

 

As duas únicas referências especificas relacionadas com a situação sanitária em Moçambique em 1918 são as seguintes: - "No Final da Grande Guerra de 1914-1918, foi aberto o Cemitério de São José de Lhanguene com o objectivo de acorrer aos enterramentos em massa das muitas centenas de indígenas vitimados pela epidemia pneumónica. “ (A Pandemia da Gripe Espanhola em LM 1918, Alfredo Pereira de Lima, no site The Delagoa Bay World) - a segunda referência tem a ver com portugueses que saíram de Moçambique num navio chamado “Moçambique” em 1918. O navio saiu de Lourenço Marques com 952 passageiros que estavam distribuídos em quatro classes. A mortalidade na 4.ª classe, na qual se encontravam mais de 500 soldados, foi superior a 30%. Nas restantes, em que viajavam sargentos, oficiais e civis, foi de 7,2%. 

 

Quem relata este episódio é um médico português chamado Ricardo Jorge que deu o nome ao Instituto de Saúde Ricardo Jorge em Portugal, com quem o nosso Instituto Nacional de Saúde mantém um acordo de cooperação. Na altura, Ricardo Jorge era comissário-geral do governo na luta contra a epidemia e deixou escrito o seguinte comentário: Não tenho nenhuma dúvida: Os vírus não atingem toda a gente da mesma forma. Os mais pobres pagam a pior fatia da crise". E foi isto que consegui para Moçambique. 

 

No nosso caso, existe mais do que um esquecimento. Não há registos escritos que apoiem quem se queira lembrar da pandemia em Moçambique. Falamos de uma amnésia generalizada dos factos públicos. Mas este esquecimento atinge a área médica e a pesquisa científica. Equipes de investigação de laboratórios do Exército dos EUA iniciaram o estudo da etiologia da Gripe Espanhola por volta de 1951. 

 

A razão fundamental para conduzir esse estudo não era a curiosidade científica, mas aquilo que se entendia como segurança militar. Um projeto super secreto referido com o nome de código Project George fez com que fossem exumados corpos de soldados norte-americanos que tinham sido enterrados nas terras geladas do Alaska. Buscavam-se os segredos genéticos do vírus da Gripe Espanhola. Os dirigentes americanos consideravam esse projecto como sendo de máxima segurança nacional porque receavam que os soviéticos estivessem fazendo a mesma pesquisa a partir dos milhares de soldados que jaziam congelados nas tundras da Sibéria. Essa investigação acabou sendo suspensa e ficou em estado dormência até que, em 1997, um vírus similar ao da gripe espanhola matou uma criança em Hong-Kong. Então a pesquisa voltou a ganhar um caráter de urgência. 

 

Uma das equipes que liderou esta segunda fase da pesquisa foi o Instituto de Patologia das Forças Armadas de Washington liderada por um tal Jeffery Taubenberger. Em 1997, este cientista escreveu o seguinte sobre a gripe espanhola: “não foi o vírus que, na maior parte das vezes, causou a morte. O que foi fatal foi a resposta do corpo da pessoa infectada, resposta conhecida como tempestade ou cascata de citoquinas”. Isto soa familiar? Soa familiar para alguns, mas para a maior parte das pessoas foi como se esta relação causal entre vírus e doença tivesse sido descoberta agora. Disse no início que ia falar sobre esquecimento. 

 

Deixei de lado esquecimentos mais antigos, deixei de lado as pandemias mais antigas mesmo que já tenhamos esquecido que foi a resposta a esses antigos surtos que nos trouxe algumas práticas que pensamos recentes: - a máscara - o distanciamento e o confinamento - a quarentena Estas medidas têm séculos de existência. O escritor Boccaccio já fala de algumas destas práticas no livro "Decameron" escrito em 1350. Contudo, seis séculos depois estas condutas surgem para a maior parte das pessoas como uma novidade. 

 

Voltemos para a pandemia de 1918 para reiterar que esse drama foi incomparavelmente mais grave do que aquele que estamos a viver agora. O balanço é terrível: em apenas um ano um em cada três seres humanos morreu. 1 Os dois terços que sobreviveram estavam 1 Penso que há aqui um erro do autor. A população do mundo em 1918 é estimada em cerca de 1,8 mil milhões de pessoas. Aceitando que morreram 50 milhões de pessoas, a percentagem de mortes seria de menos de 3 por cento, cerca de um décimo do referido pelo autor. absolutamente certos de uma coisa: que a humanidade nunca se iria esquecer daquela tragédia. 

 

A verdade é que esquecemos. Não houve uma intenção deliberada de apagar esse tempo. Houve, sim, outras urgências, outras rotinas, outras tragédias. Mas houve a chegada da chamada “idade de ouro” dos antibióticos, houve uma outra narrativa que afirmava o poderio absoluto da tecnologia, uma narrativa que celebrava a nossa espécie como dona absoluta da natureza e do futuro. Nos dias de hoje, a humanidade está absolutamente convencida que o drama da COVID 19 nunca mais será esquecido. Não sei se amanhã perante um Juiz sentado no tribunal da história os nossos netos não recorram à já célebre resposta: “não me lembro, Meritíssimo.” 

 

Há também a ideia ingénua que o mundo vai mudar radicalmente depois desta pandemia. Algumas coisas vão mudar. E vão mudar para melhor. Mas não sou optimista em relação a transformações de fundo. Aquilo que insistimos em chamar o “novo normal” será, em grande parte, a continuação do “velho anormal”. 

 

Eis algumas tendências que estamos já a ver que se vão manter em todo o mundo: 

 

- Vai-se continuar a desvalorizar a importância da prevenção nas estratégias de saúde a nível nacional e internacional.

 

- Vai-se manter o domínio de um modelo económico que colocou o Mercado no trono e secundariza o papel do Estado. 

 

- Vai permanecer inalterada a tendência de privilegiar a medicina privada, mantendo fragilizado o sector público que será incapaz de sustentar um justo e eficaz Sistema Nacional de Saúde. 

 

- vai-se manter a marginalização da Organização Mundial de Saúde e das instituições internacionais que podiam assegurar um comando central para as próximas pandemias (num mundo que se proclamava globalizado e no qual se esperava uma intervenção unitária o que aconteceu foi que cada região assumiu as suas próprias normas, os seus calendários). 

 

- vai-se manter uma chocante falta de solidariedade humana e os países ricos continuarão a virar as costas aos apelos para partilharem recursos com os mais pobres (é revelador o facto do único país que enviou ajuda para Moçambique em temos de recursos humanos ter sido curiosamente um país pobre, chamado Cuba).

 

- vai-se manter uma agenda da investigação científica baseada em interesses de lucro das grandes companhias farmacêuticas.  

 

- vamos continuar a fazer de conta que muitas das nossas escolas não deveriam ter que ser fechadas durante a pandemia porque, em rigor, nunca antes deveriam ter sido abertas. Essas escolas não reúnem as mais básicas condições de higiene. E o mesmo se pode dizer para grande parte dos transportes públicos, dos mercados, dos ginásios, das instituições públicas.

 

- vai-se manter a ideia de que a saúde diz respeito aos médicos, hospitais e Ministérios da Saúde. Vamos esquecer que a prestação de cuidados de saúde é uma tarefa de toda a governação, uma tarefa de toda a economia e toda a sociedade. 

 

Em suma, nós sabemos quais as lições a recolher. Mas não somos donos das respostas. Assim que surgir a próxima epidemia iremos reagir como se fosse algo inesperado. A COVID poderá ser daqui a umas dezenas de anos uma lembrança vaga, tão vaga como é agora a recordação da Gripe Espanhola. Recordo-me de uma carta que, há um ano e meio, uma centena de intelectuais e artistas africanos dirigiu aos dirigentes políticos do continente. 

 

Essa carta sugeria que se deixasse de olhar África como uma eterna vítima, um continente cuja sobrevivência dependerá sempre da compaixão dos outros. E apelavam para que houvesse uma forma mais criativa de desenharmos os nossos próprios sistema de saúde. Os intelectuais e artistas africanos apelavam para que se introduzissem rupturas radicais nas formas de governação dos nossos países. 

 

E que os africanos deixassem de medir o progresso dos nossos países por indicadores que são ditados pelos chamados “países doadores” como é o caso das taxas de crescimento económico. E que apostassem fortemente em políticas públicas de educação e de saúde que não servissem apenas uma pequena minoria que está mais ocupada no roubo dos bens do Estado do que na promoção de um futuro melhor. Daqui a uns anos a grande pergunta não será se continuaremos a usar máscara e iremos precisar de novas vacinas. A grande pergunta será se teremos escolas com água e casas de banho, se teremos melhores hospitais, melhores transportes públicos e uma vida melhor para a grande maioria do nosso povo. 

 

Chego ao final desta intervenção e preciso de ser verdadeiro com o sentimento que aqui me trouxe e que não é derrotado nem pessimista. Tenho não apenas a esperança, mas a certeza que irão ocorrer mudanças positivas. O que quero dizer é que não vai ser apenas por causa do fim da epidemia que iremos mudar. Serão precisas outras mudanças de fundo, outras vontades, outras formas de governar. A questão é uma outra, bem mais urgente e mais profunda. A questão é que iremos mudar porque não temos escolha. Ou mudamos todos ou não haverá futuro para ninguém. Neste sentido, o futuro é parecido com a vacina. Ou há futuro para todos ou seremos todos vencidos pelo passado.  

 

*Intervenção nas Jornadas Científicas do Instituto Nacional de Saúde – 08.09.21.

sexta-feira, 10 setembro 2021 08:50

Os nossos amigos chinocas

sexta-feira, 10 setembro 2021 08:24

O juiz e a aplicação da lei no tempo!

Definitivamente, a lógica de aplicação da lei penal no tempo, no julgamento ora em curso na tenda da BO, não parece ser aquela das ciências jurídicas e da lei, mas outra, como voltou a verificar-se ontem. 
 
Em bom rigor, o juiz não pode, ao arrepio da lei e dos princípios do processo, aplicar uma lei do processo revogada, excepto se tal fosse de forma inequivocamente excepcional, donde resultasse benefício para o arguido. 
 
Até parecemos estar em presença de uma explicação a la carte, já que  se o juiz diz que se aplica a lei antiga, ele próprio não deveria ser o juiz da causa!
 
É que é exactamente por esta lei ter entrado em vigor de imediato que ele, o juiz Efigénio Baptista, ingressou como juiz da causa, visto que o novo CPP veio impor que um é o juiz que pronuncia, e outro é o que julga. 
 
Na verdade, ao decidir que é aplicável, no caso, o CPP de 1929 e não o de 2019, o juiz pode ter declarado a sua própria  incompetência  para julgar o caso, e nessa óptica, devia fazer-lhe a vez o juiz natural, no caso a juíza (Evandra Uamusse) que saiu do processo, por conta do CPP de 2019.
 
Claro que essa “competência inquinada” do juiz não passará despercebida em sede de um eventual recurso, o que gerará várias consequências, até de índole económica. 
 
A lógica, e isto é básico, é que a lei processual vem regular os procedimentos que estão em curso, não sendo questão do passado ou futuro. Por isso que a regra é essa de aplicação imediata, excepto, conforme já referi acima, no que mexer com direitos e liberdades, mormente quando não for favorável ao arguido.
(Ericino de Salema)
quinta-feira, 09 setembro 2021 08:24

A minha derrocada

A pior coisa que te pode acontecer na vida, é chegares a um ponto em que não tens onde ir, e eu atingi essa nefasta fasquia. Perdi a capacidade de criar novos cenários. O mais grave é que nem a mim mesmo consigo recriar. Quero levantar voo e as asas vacilam. Recusam. Aliás, apercebi-me de que já nem asas tenho. Revisito os pulmões podres que tenho, queimados ao longo dos anos pelo fumo, e sinto que me resta pouco oxigénio. Vou às veias por onde o sangue vai passar, e o diagnóstico é por demais perfurante, o coctail de comprimidos que andei a tomar na busca incessante e inglória pela liberdade, e pelo levitar dos loucos, retiraram-me toda a vitalidade, sobrando apenas esta carcaça sem imunidade, que vai deabulando ao acaso à espera da derrocada final.

 

Todos aqueles que tentaram ajudar-me na luta contra o diabo que me domina e manipula, largaram as armas. Capitularam. Foram vencidos. E o que sobra é  o meu esqueleto, que já não tem onde ir nesta longa espera de cair como um mabeco que caminha nas matas com as vísceras à mostra. Mas eu continuo a guerrear por dentro,  contra essa sombra tenaz que me derrota todos os dias, por isso estou aqui hoje sentado como sempre, na minha marginal. É o único lugar onde posso  ainda encontrar a paz enquanto aguardo pela hora. É bom estar aqui onde não passa ninguém. Quase ninguém. Ao contrário de outros lugares onde as pessoas estão sempre a fazer-me perguntas, como se eu soubesse alguma coisa.

 

Abdiquei das barracas, e estou aqui. Sem cerveja, sem nada, na ansiedade da espera pela morte que demora. A minha alma entra em harmonia com a carcaça putrefacta que me tornei, por isso já não tenho medo de morrer. Estou à espera tranquilamente como nunca. Vou escutando  vozes em sussurro que me chegam aos ouvidos, como o hulular das palmeiras que se erguem do outro lado da baía. São vozes que falam em forma de música, ao mesmo tempo que oiço animais abomináveis vacalizando as canções de Lúcifer, cujo côro será o ranger dos dentes nas sombras da morte por onde eu já estou a passar sem temer.

 

Estou a ser disputado, e o que me rigozija é que o meu último reduto jamais será abalado. Continua a cantar mensagens que me afagam, dizendo, não te preocupes meu filho, Eu estou aqui, ao teu lado. Sorrio e já não me preocupo com os que olham para mim e dizem assim, este gajo, mais dia menos dia vai partir a cambota. O que eles não sabem é  que a minha cambota, na verdade já quebrou, e o que me mantém ainda de pé são os estilhaços dos meus ossos que daqui a pouco vão descer.

 

É linda a morte, e eu vou morrer aqui, sentado neste banco contemplando os poucos flamingos que ainda sobrevivem à chacina. Vou continuar aqui sem cachaça, sem nada. Sem o conctail de comprimidos que me fez perder o horizonte. Sem fumo, sem nada, ouvindo de um lado a música sinistra orquestrada pelas farpas de balzebuba, e por outro lado as canções saídas das harpas que me dão paz nesta longa espera pela minha derradeira derrocada.

quarta-feira, 08 setembro 2021 13:04

O Poder pode cair

Em meados da década 2000 um conhecido e saudoso académico moçambicano aconselhara a um grupo de jovens activistas, que se empenhavam em campanhas públicas de influência da governação, para “não fragilizar ainda mais, mas fortalecer as instituições”. Para o académico, não estava em causa a razão que impelia os jovens activistas a endurecer as campanhas, mas o receio quanto ao resultado, atendendo que as instituições em Moçambique ainda eram/são frágeis e daí o receio de que elas pudessem cair em total descrédito diante da exposição em que se veriam confrontadas.

 

Para elucidar o seu conselho, o académico ainda advertira de que “não se augura que o país caia em situação semelhante a da Somália” e de que o objectivo, e assim lançava uma contraposta, deveria ser sempre no sentido do fortalecimento das instituições e que cabia aos jovens o papel motor para as mudanças requeridas.

 

Este sentido de Estado, fazendo jus ao dito pelo académico, até lembrava Marcelo Caetano, político e académico da área do direito, que na negociação dos termos da sua rendição como chefe do governo português, deposto pelo golpe de 25 de Abril de 1974, também advertira de que “O Poder não pode cair na rua”.

 

Veio-me à mente estes episódios na conversa habitual de café sobre o julgamento das chamadas “dívidas ocultas”, ora em curso, cujos factos em exame decorrem de processos de governação. Deste julgamento e por conta de ânimos que são notórios nos autos e nas audições e ainda em querelas de outras esferas em praça pública, que por porventura decorram da corrida para o preenchimento da candidatura partidária na rota da conquista do Poder, a conclusão de que, independentemente do desfecho do julgamento, as crispações no seio da Frelimo não cessarão e no final do dia, seguramente, que o partido ficará cada vez mais fragilizado.

 

O citado académico moçambicano, chamado a opinar do além, de certeza que aconselharia que não se fragilizasse ainda mais (caos), mas sim que o partido fosse fortalecido. E quem assumiria essa tarefa? Marcelo Caetano, diante da fragilização/queda do seu regime, fez questão de entregar o Poder a um General (mais velho) e não aos jovens capitães de Abril, os reais autores da mudança. Talvez estes não o merecessem.

 

Uma saída semelhante - o Poder continuar na mão dos mais velhos – seria uma opção actual do partidão? Não sei, mas de toda a maneira fica a lição de que a fragilização ou a crise em qualquer instituição é uma oportunidade de mudança e uma energética ocasião para a juventude assumir e com responsabilidade o devido protagonismo como uma alternativa viável e segura.

 

O certo, para fechar, é que como as coisas andam e embora o Poder, detido pelo partido em pauta desde a independência em 1975, não seja provável que caia na rua, a possibilidade que caia na urna é bem real. Perante este cenário, um devoto partidário respondeu: “Nem plano B temos!”. Na verdade, é o plano C de que fala, porque o B sempre foi o de implementar (e com sucesso) o plano A.