Nelson Saúte
Num belíssimo, raro e derradeiro poema, Noémia de Sousa, que escrevera o essencial da sua obra poética entre os finais da década de 40 e os inícios da subsequente, terminava com uma premonição: “os espíritos ancestrais me esperam”. O epílogo da sua vida dar-se-ia a 4 de Dezembro de 2002, aos 76 anos, passam hoje 20 anos. Para muitos de nós, que a acompanhamos ao longo dos anos e que a amamos sem tréguas, foi um duro golpe, não obstante a ciência que tínhamos da sua saúde, que se precarizara com o tempo. Custou aceitar que ela chegara, por fim, à fala “com a voz do nyanga”. Tínhamos, porém, o consolo de termos editado, um ano antes, o seu arrebatado e arrebatador “Sangue Negro” (2001), que permanecera inédito durante 50 anos.
Carolina Noémia Abranches de Sousa nascera a 20 de Setembro de 1926 na Catembe: “Quando eu nasci na grande casa à beira-mar / era meio-dia e o sol brilhava sobre o Índico. / Gaivotas pairavam, brancas, doidas de azul. / Os barcos dos pescadores indianos não tinham regressado ainda / arrastando as redes pejadas”. Quando em Janeiro de 1990, num remoto inverno em Lisboa, a entrevistei, para o livro “Os habitantes da memória”, ela falava-me de uma infância feliz: “Penso que a infância é sempre marcante. É para nós uma espécie de paraíso perdido. Depois, tive uma infância extraordinariamente feliz. Talvez por isso me lembre muito dela. Era uma vida livre e cheia de aventuras porque não havia quintais, fronteiras, limites”.
“Poema da Infância Distante”: “meninos negros e mulatos, brancos e indianos, / filhos da mainata, do padeiro, / do negro do bote, do carpinteiro, / vindos da miséria do Guachene / ou das casas de madeira dos pescadores. / Meninos mimados do posto, / meninos frescalhotes dos guardas-fiscais da Esquadrilha / - irmanados todos na aventura sempre nova / dos assaltos aos cajueiros das machambas, / no segredo das maçalas mais doces, / companheiros na inquieta sensação do mistério da “Ilha dos navios perdidos” / - onde nenhum brado fica sem eco”.
Noémia de Sousa: “A esta distância, quando me veem dizer que dizer o que eu queria dizer com o “Poema da infância distante”, eu penso, mesmo inconscientemente, que no fim queria falar de Moçambique. A casa à beira-mar era Moçambique. Outra coisa: por causa das circunstâncias, como não podia dizer Moçambique, quando digo “África” quero dizer “Moçambique””.
Viveu na mítica casa até aos seis anos. Lembrava-se de, aos quatro anos, aprender a ler, através da “Cartilha Maternal”, de João de Deus. Foi o pai quem a ensinou a ler, antes de saber redigir. Começou a escrever cedo, desde miúda. Fazia jornais com os irmãos, sobretudo com Nuno (Abranches de Sousa), que lhe era mais próximo, pela idade e cumplicidade. Lia muito. Lia tudo: desde Eça de Queirós a Guerra Junqueiro. Lia revistas. Publicações estrangeiras. O pai era um leitor omnívoro e um homem dado às artes, à música, à fotografia. A pequena Carolina frequentava, inquieta, o escritório de casa do pai. À volta dos livros e das revistas. Sempre com perguntas.
Eram seis irmãos, os mais velhos, Paulo e Camila, cedo foram enviados para Portugal para estudar. A ideia era fazer o mesmo com os que se seguiam. Mas a mãe, que não suportava estar apartada das crianças, impediu que o projecto paterno tivesse seguimento. Carolina conhecia os irmãos mais velhos através da correspondência que mantinham. Entretanto, aos 8 anos, ela perde o pai e o futuro que este sonhara. Estuda na Escola Técnica, área comercial. Não obstante, o seu obstinado amor pelos livros prossegue. Começa a trabalhar cedo.
Da parte materna era oriunda de um cruzamento entre sangue alemão (Brüheim) - de caçadores e negociantes alemães (Paulo e Max), que se aliaram aos chefes locais da região de Maputo e desposaram as suas filhas. Do lado paterno, sangue português, indiano e macua. O pai nascera na Ilha de Moçambique. A mãe vestia capulana. Quando casou, o que aconteceu muito tarde, com os filhos nascidos, deixou de a usar, por força dos ditames da época, que impediam que a mulher de um alto funcionário da Administração exibisse tal indumentária. O pai não queria que a sua mulher, que era muito mais nova, ficasse desprotegida caso ele morresse. Noémia e os irmãos assistem ao casamento.
De uma geração de seis, Noémia é próxima de Nuno: fazem jornais, conversam até à madrugada, numa época em que se recolhia cedo, partilham amigos. Antero, amigo do seu irmão Nuno, estava num grupo de jovens que se agregavam à volta do jornal da Mocidade Portuguesa, queriam subverter a publicação – disseram-lhe - e pedem-lhe colaboração. Noémia escreve o “Poema ao meu irmão negro”. Embora assinasse Carolina Abranches à época, nas suas colaborações de “O Brado Africano”, o texto literário haveria de levar as iniciais N.S. O poema criou evidente alvoroço. À época ninguém escrevia com aquela desenvoltura, aquele tipo de poesia. José Craveirinha, que lhe mostrara sonetos, que praticava, ainda desconfiou tratar-se de uma criação Nuno Abranches de Sousa. Estávamos nos finais dos anos 40. O grupo dos ruis (Knopfli, Guerra e Guedes), que se agregariam à volta do “Itinerário”, também ficaram espicaçados. Quem seria N.S.?
Seria, no entanto, a reacção de espanto, de Augusto dos Santos Abranches, a um poema publicado em “O Brado Africano”, igualmente assinado N.S., intitulado “Poesia, não venhas”, que iria, nas palavras da autora, salvar-lhe do anonimato futuro. Inicialmente, Augusto dos Santos Abranches pensara tratar-se de um plágio, mas depois concluirá ser um texto autêntico. Pareceu-lhe espantoso. Disse-me Noémia de Sousa anos mais tarde: “Se não tivesse surgido um Augusto dos Santos Abranches a chamar atenção para o meu nome talvez ele permanecesse desconhecido até hoje”.
Augusto dos Santos Abranches, que dirigira em Coimbra a famosa Portugália Editora, não terá influência sobre a jovem intrépida, como enganosamente alguns críticos irão referir futuramente. Foi, contudo, uma personagem importante no pequeno meio da velha cidade colonial. Trabalhou na Minerva, coordenou páginas literárias (“Sulco”), esteve na última fase do “Itinerário”. Foi influente para os jovens que então surgiam. Quem exerce influência sobre Noémia de Sousa e, de certo modo, algum magistério, é Cassiano Caldas, funcionário dos Caminhos de Ferro e intelectual ligado ao “Itinerário”. Sobretudo iniciando os jovens da sua época na leitura dos neo-realistas, dando-lhes a conhecer a revista “Vértice” (onde haveria de ler e conhecer a poesia de Nicolás Guillén) ou a ler os livros de Jorge Amado, como “Jubiabá”. Noémia já tinha lido, entretanto, os negros americanos. Fizera-o através de um embarcadiço que lhe trazia das viagens livros e o eco dos seus convívios com os negros americanos. O Sul dos Estados Unidos e Moçambique pareciam-lhe subscrever alguma similaridade. Sobretudo quanto ao racismo, à discriminação e às desigualdades. Foi dessa realidade, e não da “Negritude” – irá conhecer mais tarde os seus protagonistas e traduzirá o célebre “Discurso sobre o colonialismo”, de Aimé Césaire –, que ela encontrou a força motriz da sua poesia. Foi nessa época que conheceu a história trágica de “Strange fruit”, que estaria na origem de um poema de Lewis Allan (Abel Meeropol) que a mítica Billie Holiday deu voz, a quem dedicará um dos poemas do seu “Sangue Negro”: “e era só melancolia / do princípio ao fim”.
João Mendes, cujo nome consta do frontispício do livro “Sangue Negro”, ao lado do nome de Cassiano Caldas, foi quem estabeleceu a ponte entre ela e os míticos ruis: Knopfli, Guerra e Guedes e a malta que frequentava o Núcleo de Arte. Fonseca Amaral, embora fizesse parte da tertúlia, era um homem ensimesmado. Noémia ia à casa Ruy Guerra na companhia do Ricardo Rangel, e por vezes aos encontros do “Itinerário”. Ela era da ala do “Brado Africano” e da Associação Africana, mas tinha amigos no outro lado da cidade. Alguns estranhavam que ela frequentasse a Escola Técnica e fosse dada às letras.
Nos anos 50, fingindo um encontro inofensivo, no Jardim Paraíso, redigem – José Craveirinha, Noémia de Sousa, Dolores Lopez y Lopez e Ricardo Rangel – um manifesto exigindo a independência de Moçambique. Estamos ainda longe dos movimentos libertários. Ela tinha já uma actividade política clandestina. Pertencera ao MUD-Juvenil. Colava cartazes e panfletos à noite, sobretudo com João Mendes, que será degredado. Fez parte do grupo de jovens que ajudavam na Associação Africana. Os mais velhos: Cassiano Caldas, Henrique Dahan, Miguel da Mata, Joaquim Soares, entre outros. Na comissão de festas, estava Beatriz Albasini, que viria a casar com Artur Garrido. Hoje conhecemo-la como a Avó Bia. Eram correligionários: Victor Santos (irmão de Marcelino), Nobre de Melo, Amália Ringler, Dolores Lopez y Lopez, Ricardo Rangel, ou filhos dos Dahan.
O surgimento de Noémia de Sousa quebra um marasmo que perdurava desde a morte de Rui de Noronha na poesia moçambicana. Noronha (1909-1943) tinha sido a grande figura literária nos anos da sua juventude. Augusto dos Santos Abranches: “Moçambique dorme ou mede as suas divagações pela intensidade do luar da noite”. Noémia não conviveu com o poeta, mas lembrava-se de o ver passar em frente da sua casa. Conhecia-o de vista. “Poema para Rui de Noronha”: “Rui de Noronha / nesta nova África de certezas e forças restauradas, / no meio dos “paixões” e das bebedeiras do natal, / vens-me tu, torturado e solitário, / ainda projectado para os fundos abismos do teu eu”.
O mesmo em relação à João Dias. Via-o na rua. Não chegaram à fala. As irmãs Dias, sim, frequentavam a sua casa, eram amigas das suas primas. Lembra-se de as ouvir falar do irmão, que fora muito jovem estudar para Portugal e da esperança que depositavam no filho do celebrado jornalista Estácio Dias. No poema “Godido” escrito à memória de João Dias, diz Noémia de Sousa: “Quando cheguei / trazia no olhar a luz verde dos negros simples / e uma dádiva maravilhosa em cada mão”.
Estes são alguns dos seus predecessores. No emblemático poema “Deixa passar o meu Povo” pode estar inscrita, de algum modo, a chave da sua poesia: “vozes da América remexem-me a alma e os nervos” ou “não poderei deixar-me embalar pela música fútil / das valsas de Strauss”. “Escrevo.../ Na minha mesa, vultos familiares se vêm debruçar. / Minha Mãe de mãos rudes e rosto cansado / e revoltas, dores, humilhações, / tatuando de negro o virgem papel branco”. O poema que inicia a sua obra poética (“Nossa voz”), dedicado a José Craveirinha: “Nossa voz ergueu-se consciente e bárbara / sobre o branco egoísmo dos homens / sobre a indiferença assassina de todos”.
A Antero, o amigo do mano Nuno, que lhe pediu aquele poema inicial, dedicará o poema “Se me quiseres conhecer”: “Se me quiseres conhecer, / estuda com os olhos bem de ver / esse pedaço de pau preto / que um desconhecido irmão maconde / de mãos inspiradas / talhou e trabalhou / em terras distantes lá do Norte”. Palavras de pitonisa, voz de sibila. Era já uma mulher consciente do seu papel e sobretudo revoltada.
Francisco Noa: “Divindade maior desta cosmologia é a liberdade ansiada (e ensaiada) e o exercício da palavra como instrumento consciencializador e agonístico. E a expressão arrebatada se, por um lado, subjectiva a expressão poética em Noémia, por outro, confere-lhe uma dimensão majestática e que faz do sujeito rapsodo das dores, dos anseios, da revolta, das resignações e dos mitos dos flagelados irmanados por um destino comum determinado pela ocupação colonial”.
Esta voz rude ímpia, brutal, feroz, selvagem, instintiva, brava, indócil, laboriosa, perseverante surge, na sua ferocidade juvenil, com uma espantosa maturidade. É, ao mesmo tempo, uma voz esplendente, deslumbrante, magnificente. É assombrosa e portentosa. A esta distância, ainda assim, não se consegue atingir a dimensão da sua força telúrica. “Ah, essa sou eu: / órbitras vazias no desespero de possuir a vida, / boca rasgada em feridas de angústia, / mãos enormes, espalmadas”. Esta é uma voz sublime.
Voz indignada, colérica ou enfuriada, contra a resignação, consciência do ser moçambicano, da sua condição, da sociedade injusta, voz insubmissa, intrépida. A voz do grito. Grito negro, mestiço, solitário e solidário. Voz livre e libertária. Voz e condição primeira da “poesia de raiz marcadamente moçambicana”, como avisadamente lhe designou Rui Knopfli, a quem Noémia dedica o poema “Bayete”. Em três anos, entre os 22 e os 25 anos, isto é: entre 1948 e 1951, escreve a poesia que constitui hoje o seu espólio. O nosso espólio. O espólio da moçambicanidade. O espólio da africanidade. Forçada a exilar-se, arrancada da terra e das suas gentes, da sua condição negra e mestiça, não escreve mais, à excepção de dois poemas, um na morte de Samora Machel, arrancado a ferros pelo sobrinho Camilo e aquele no qual acena aos antepassados.
O angolano Mário de Andrade, que fora colega de universidade de Eduardo Mondlane, no ano em que este permanecera em Portugal, a caminho dos Estados Unidos, escreve-lhe sabendo que ela, cansada do cerco da PIDE, se preparava para embarcar para a antiga capital do Império. Uma das causas desse cerco fora um artigo seu, em “O Brado Africano”, relatando a situação de Mondlane, então na África do Sul, a quem o governo de Malan não concedia a prorrogação do visto, impedindo-o de prosseguir os estudos na Universidade de Witwatersrand. Quando se conheceram, mais tarde, falaram das interrogações que haviam sofrido e o facto de não se conhecerem até então.
O Centro de Estudos Africanos, iniciativa que se iria replicar nos países independentes, estava em marcha, na rua Actor Vale, 37, da Tia Andreza, tia da Alda do Espírito Santo. Noémia não assiste às apresentações iniciais de Francisco José Tenreiro (de São Tomé) nem de Amílcar Cabral (da Guiné). Mas irá ter uma activa participação, ajudando sobretudo Mário de Andrade a organizar as sessões que visavam problematizar o futuro dos seus países. Estão ainda na capital portuguesa os jovens nacionalistas africanos. É companheira de Lúcio Lara (será madrinha do seu filho mais velho), Agostinho Neto, Amílcar Cabral, entre outros. Também se reúnem, amiúde, em casa de Francisco José Tenreiro ou no quarto de Mário de Andrade.
Em 1953, Francisco José Tenreiro e Mário de Andrade publicam “Poesia Negra de Expressão Portuguesa”. É a primeira publicação do género que reivindica a “poesia negra”. Noémia colabora com dois poemas: “Magaíça” e “Deixa passar o meu povo”. Já é, seguramente, a mais arrebatadora e arrebatada voz feminina da poesia africana de língua portuguesa. O seu nome começara a construir o mito.
Andrade será um dos primeiros a ir para Paris onde vai trabalhar na “Presence Africaine”. Noémia segue-se-lhe mais tarde. Entretanto, casara e nascera-lhe uma filha, a sua única filha, Gina. O marido Gualter Soares, poeta, oriundo de Moçambique, encontrava-se em Ponta Negra quando recebeu o aviso, em 1964, de que se voltasse a Portugal seria preso. Vai para Paris. Noémia vai ao seu encontro. Leva a filha, de ambos, às costas e é contrabandeada nas fronteiras até chegar a Paris. Marcelino dos Santos consegue-lhe um emprego no Consulado de Marrocos. Só em 1973, em plena primavera marcelista, regressará. Primeiro para a Reuters e, depois, para a ANOP, predecessora da LUSA, onde permaneceria até ao fim.
Em Paris assistira ao Maio de 68. Em Portugal, viverá o 25 de Abril. Ruy Guerra zombaria com carinho da amiga de infância: faltava ela ir para o Brasil para acontecer uma revolução. Não foi convidada para os festejos da Independência de Moçambique a 25 de Junho de 1975. Os seus antigos companheiros tinham-na proscrito. Disseram-se inverdades sobre a sua estada em Paris. A maledicência de sempre: que estava rica e que se estava nas tintas para Moçambique: baixo, canalha e detestável. Ela visitou Moçambique quando pôde em 1984. Levaria 33 anos para revisitar a terra.
Entretanto, Noémia de Sousa subscrevia a condição de mito. Os seus poemas tornaram-se hinos: “Nossa Voz”, “Se me quiseres conhecer”, “Poema da infância distante”, “Zampungana”, “Moça das docas”, “Sangue negro”. Era lida e admirada não só em Moçambique, mas em todos outros países africanos de língua portuguesa. A sua voz chegara ao Brasil. No seu país de origem, os jovens reivindicavam-na. Esquecida apenas dos palácios. Aliás, este fenómeno irá continuar ao longo da década 90 e no início do século XXI: a sua poesia é redescoberta pelos jovens, que a proclamam e a conclamam com jubilosa energia. Dizem os seus poemas, declamam os seus versos, reverberam-na. Em 1996, quando faz 70 anos, é-lhe prestada uma homenagem pública.
50 anos sobre a data em que cessara a sua escrita, lançámos, finalmente, o seu livro “Sangue Negro”. Foi a 20 de Setembro de 2001, no dia dos seus 75 anos. Durante os anos em que convivi com Noémia fui um dos que insistiram para que publicasse em vida o seu legado. Ela anuiria e haveria de me incumbir a responsabilidade de coordenar esta edição. Queria a participação da Fátima Mendonça e do Francisco Noa, que irão assinar os textos ensaísticos que acompanham a obra. Também queria que a chancela fosse da AEMO. Chegámos a cogitar fazer uma co-edição com a Imprensa Nacional-Casa da Moeda em Portugal, mas tal desiderato não se cumpriu. Foi com gáudio que o fizemos. Ela já se encontrava muito debilitada pela doença. Ainda fui, meses depois, na companhia da Fátima Mendonça, visitá-la. Levávamos o livro. Ficámos deprimidos ao vê-la.
Manuel Ferreira fora dos primeiros a tentá-la convencer em publicar “Sangue Negro”. Michel Laban, seu amigo, também não conseguira. Aliás, ele ajudou a recuperar poemas que estavam em falta no caderno da autora. Rui Nogar, Gulamo Khan, Leite de Vasconcelos, Júlio Navarro, Fátima Mendonça, entre outros, tinham-na persuadido ao longo dos anos, debalde. Felizmente e finalmente ela acedera e conseguimos tributar-lhe em vida a nossa veneração, a nossa amizade, a nossa devoção. Inicialmente editado pela AEMO, “Sangue Negro” foi, posteriormente, publicado pela Marimbique e pela brasileira Kapulana. Está em marcha uma edição em francês. Estranhamente não está editada em Portugal.
Para além dos textos que enformavam o seu vetusto caderno, acrescentamos-lhe três textos: um velho poema de 51, um texto que fizera para um filme de Camilo de Sousa e um belíssimo poema que escrevera para um livro de fotografias (“A meu ver”) de Carlos Pinto Coelho. Desafortunadamente, o poema intitulado “A mulher que ri à vida e à morte” haveria de cumprir o seu desígnio a 4 de Dezembro de 2002. Aqui a relembro, nesta evocação hoje, 20 anos depois da sua morte, para que o nome da Noémia de Sousa não subscreva o anátema da desmemória e do descaso.
A MULHER QUE RI À VIDA E À MORTE
Para lá daquela curva
os espíritos ancestrais me esperam.
Breve, muito breve
tomarei o meu lugar entre os antepassados.
À terra deixarei os despojos do meu corpo inútil
as unhas córneas de todos os labores
este invólucro sulcado pela aranha dos dias.
Enquanto não falo com a voz do nyanga
cada aurora é uma vitória
saúdo-a com o riso irreverente do meu secreto triunfo.
Oyo, oyo, vida!
Para lá daquela curva
os espíritos ancestrais me esperam.
NOÉMIA DE SOUSA
Kampflumo, 4 de Dezembro de 2022
Luís Bernardo Honwana, que faz hoje, neste sábado, 12 de Novembro, 80 anos, é um dos precursores da literatura moçambicana e um dos maiores intérpretes da moçambicanidade. Quando tinha 22 anos, em 1964, fez publicar uma obra seminal e fundadora da moderna ficção moçambicana – “Nós Matámos o Cão Tinhoso”. O início desta obra é um dos mais belos que se podem cotejar entre nós: “O Cão-Tinhoso tinha uns olhos azuis que não tinham brilho nenhum, mas eram enormes e estavam sempre cheios de lágrimas, que lhe escorriam pelo focinho. Metiam medo aqueles olhos, assim tão grandes, a olhar como uma pessoa a pedir qualquer coisa sem querer dizer”.
O jovem autor de “Nós Matámos o Cão Tinhoso”, uma bela edição de 135 páginas, de pequeno formato, com ilustrações da pintora Bertina Lopes e composto por caracteres hieráticos, redigira uma nota biográfica igualmente singular: “Não sei se sou realmente escritor. Acho que apenas escrevo sobre coisas que, acontecendo à minha volta, se relacionem intimamente comigo ou traduzam factos que me pareçam decentes. Este livro de histórias é o testemunho em que tento retratar uma série de situações e procedimentos que talvez interesse conhecer”.
Começou a publicar histórias na página “Despertar” do “Notícias”. Colaborou em jornais (“Notícias”, “Voz de Moçambique”, “Tribuna”, “Diário de Moçambique” e “A Voz Africana”, na Beira), fez desenhos à pena, participou em exposições de artes plásticas, viu filmes e escreveu para o cinema, dedicou-se à fotografia, participou com jornalistas, poetas e pintores do seu tempo na efervescente vida cultural dos anos 60. Para além disso, praticou desporto e não se coibiu de conspirar activa e politicamente contra o regime. Foi um intrépido nacionalista. Conheceu, aos 22 anos, o opróbrio da PIDE, a humilhação, as sevícias, as injúrias. A prisão. Foram três anos e meio. A crueldade de um tempo que está hoje obliterado. A brutalidade de um regime.
As histórias – as sete histórias do livro – têm claramente um recorte autobiográfico, aliás isto é assumido pelo autor. “O Papá ressona. A Lolota e a Nelita na outra cama ressonam. A meu lado, aqui, debaixo do meu braço, o Nandito ressona também. Ontem, quando fui sorrateiramente abrir a porta, depois de deixar que os outros adormecessem bem, ouvi ressonar no outro quarto. Não sei se era a Mamã ou se era a Tina. Devia ter sido a Mamã. Sim, acho que foi a Mamã, embora não tenha certeza. Será que eu, também, ressonarei quando adormecer?” (“Inventário de imóveis e jacentes”) Ou: “Antes de ir para o serviço, o Papá foi ver a capoeira com a Mamã. Apareceram os dois à porta da cozinha, a Mamã com o avental já posto e o Papá com um palito na boca e o jornal debaixo do braço. Quando passaram por mim, o Papá dizia ´não pode ser´, ´não pode ser´, ´isto não pode continuar assim´” (Papá, cobra e eu”).
O mundo da infância é cartografado aqui num poderoso olhar. Para além destes textos (“Inventário de imóveis e jacentes” e “Papá, cobra e eu”), “As mãos dos pretos” compõe o universo encantado desse tempo pueril. Mas há aqui, também ou sobretudo, um admirável testemunho de um olhar indagador. O gabarito do seu narrador esplende, igualmente, em “A Velhota”, “Dina” ou “Nhinguitimo”, os restantes textos deste conjunto primoroso. A prosa é de grande quilate e denuncia uma espantosa maturidade do seu autor. Há nela uma acuidade linguística espantosa e um enriquecido resgatar da oralidade.
A realidade que estas histórias narram ultrapassa, em muito, a circunstância da mera biografia. Estes textos denunciavam, de forma resoluta e corajosa, uma realidade social profundamente injusta e desigual. Textos breves, quase todos, à excepção daquele que nomeia o volume (“Nós matámos o Cão Tinhoso”). Este livro é uma surpreendente obra literária e é um libelo acusatório virulento. Provavelmente, a grande literatura seja isso mesmo: a combinação entre as faculdades da arte em si e o poder de esta nos interpelar com a realidade que ilustra ou denuncia.
“Nós Matámos o Cão Tinhoso” é uma vigorosa denúncia das desigualdades e das injustiças sociais que o tempo e a realidade colonial impunham aos moçambicanos. A obra consegue isso através de um olhar ou uma capacidade de observação invulgares. O fino recorte da escrita, o seu despojamento, a sua carpintaria literária, a forma como desenha as personagens, como expõe as tensões dessa sociedade profundamente disjuntiva, dessa realidade divergente, desse tempo digressivo, coloca-o, não só na condição de grande narrador moçambicano, mas também o filia entre o escol dos escritores africanos que seriam consagrados na mítica “African Writers Series”, da Heinemann, industriada pelo célebre Chinua Achebe.
A série publicou, para além do nigeriano Chinua Achebe, o queniano Ngugi Wa Thiong´o, o senegalês Sembène Ousmane, o egípcio Naguib Mahfouz, o nigeriano Wole Soyinka ou a sul-africana Nadine Gordimer, os três últimos laureados com o Prémio Nobel da Literatura. Diria, afoitamente, que Luís Bernardo Honwana, com “We Killed Mangy Dog and Other Stories” (tradução de Doroth Guedes, de 1969) pertence, sem favor, a esta plêiade dos maiores intérpretes africanos. Doroth, mulher de Pancho Guedes, é a Dori (“que é sensível à angústia dos cães”), da dedicatória da edição original de “Nós Matámos o Cão Tinhoso”.
A obra de Luís Bernardo Honwana não se pode dissociar da sua biografia cívica, política, cultural e ética. Esteve três anos e meio preso. Com ele, Armando Pedro Muiuiane, Rui Nogar, José Craveirinha, Malangatana Valente, Rogério Njauana, entre outros, são seus companheiros. Primeiro na ominosa Vila Algarve e depois na Cadeia da Machava. Craveirinha escreveria sobre esta dura provação “Cela 1” (1980) e Rui Nogar haveria de cartografar esses tempos sinistros em “Silêncio Escancarado” (1982). No belíssimo livro “Mahanyela – A Vida na Periferia da Grande Cidade” (2018), Nely Nyaka, mãe do autor, faz um arrepiante relato sobre a experiência prisional de Luís Bernardo Honwana. Antes deste, num outro brilhante testemunho, “Memórias” (1985), o pai, Raúl Bernardo Honwana, que também fora preso, dois anos antes, refere-se à prisão do filho e de outros nacionalistas. José Craveirinha: “Lembras-te amigo Luís? / Por semana eram duas vezes meia hora / e o guarda de turno a avisar / - “São 30 minutos e acabou!” (“Dia de visita”).
É interessante, aliás, numa leitura comparativa, perceber que há, nestas vidas, nestes percursos e nestas obras, um mesmo desiderato: um mesmo compromisso ético. Há, mesmo, nestas obras, uma mesma estética, uma mesma poética e uma mesma ética que enforma o percurso desta família exemplar: os valores, a decência, a integridade, a moral, a probidade, a honradez. Isto é inédito. Para além disso, a realidade familiar e social que estes autores (Pai, Mãe e Filho) traduzem nas suas obras revelam uma lisura e uma autenticidade impressionantes. Mais uma vez, aqui se atesta o prodigioso olhar de Luís Bernardo Honwana, que fixou, muito jovem, magnífica e cabalmente, um tempo histórico.
Se, em 1964, Luís Bernardo Honwana, com a sua pluma de escritor de primeira água, inventava a nossa ficção narrativa, em 2017, ao publicar o livro de ensaios “A Velha Casa de Madeira e Zinco” afirmar-se-ia, de novo, como intérprete fundamental da moçambicanidade. Este livro, sobretudo o seu ensaio inicial, irá balizar os estudos, as análises, as perspetivas, os debates, ou o que quer seja, que exista, lá, no futuro, sobre uma época, o contexto e a realidade sempre contraditória da nossa nacionalidade. Este é, também, por consequência, um texto fundador à semelhança do que acontecera com o prodigioso “Nós Matámos o Cão Tinhoso”.
O livro “A Velha Casa de Madeira e Zinco” alia e articula uma capacidade e qualidade literárias sobejamente conhecidas a uma análise, discussão e provocação intelectuais igualmente únicas e invulgares. Publicado 53 anos depois da sua obra de estreia, este livro desfez o mito do autor de uma obra só. Aliás, ao longo de décadas defrontou-se com cobranças implacáveis. Quando, em 1990, o entrevistei para o livro “Os Habitantes da Memória”, não contornei a pergunta sacramental: continua a escrever? A resposta foi fleumática: “Escrevo intermitentemente como suponho que toda a gente o faz. Mas tenho agora uma situação interessante, que é a raiva das pessoas pelo meu silêncio, uma situação de devedor que eu preferia não ter e que nos melhores momentos me convenço de que não tenho. Mas é isto que se está passando. As pessoas “cobram” de mim o não publicar. E, às vezes, cobram de uma forma violenta, extremamente severa. Mas, de qualquer modo, suponho que, se isso estiver no desígnio dos deuses, essa actividade poderá ser retomada e é bem provável que sim”.
Luís Bernardo Honwana procede uma época clemente em termos culturais para Moçambique. A sua geração é a dos prestigiosos fundadores. Não só na prosa de ficção, como é o seu caso, mas também na poesia, na pintura, na fotografia ou na música. Craveirinha (“expressão verdadeira da poesia de Moçambique”, como dirá na dedicatória no frontispício da sua excepcional obra) é um dos seus companheiros, como o são: Rui Nogar, outro poeta extraordinário; Malangatana, pintor arrebatador e uma força tenaz da natureza; Ricardo Rangel, o mestre do instante decisivo, entre outros tantos. Esta é, por conseguinte, uma geração única, absolutamente magnificente, determinante e fundadora do devir moçambicano. Nesta pátria da desmemória e do esquecimento, não raro, pratica-se o descaso. A história destes fundadores – poderia e deveria acrescentar o insigne nome de Noémia de Sousa, cujos versos fazem a epígrafe de “A Velha Casa de Madeira e Zinco” – é uma das páginas mais nobres da nossa história e cultura do século XX. A nobreza é o que os distingue.
De Luís Bernardo Honwana avulta um percurso público edificante: jornalista e nacionalista, preso político, combatente pela liberdade, Director do Gabinete do Presidente da República logo após à Independência, sucessivamente Secretário de Estado e Ministro da Cultura, fundador e Presidente do Fundo Bibliográfico, membro do Conselho Consultivo da UNESCO, seu representante na África Austral, é hoje Director Executivo da Fundação para a Conservação da Biodiversidade – BIOFUND.
Para além da sua vastíssima cultura, é um tribuno lustroso, homem de uma rara inteligência, dono de uma sedutora e fascinante conversa. Pertence à categoria dos que melhoram o silêncio quando falam. Entre nós, não abundam espécimes similares. Tenho o privilégio de privar com este vulto da nossa nacionalidade e não tenho pejo em encomiá-lo hoje e aqui. Não há muitos como ele, pese embora a pátria condescenda a dispensar figuras deste quilate. Este desapreço só amesquinha a pátria que se compraz com sua mediocridade.
Pertenço à geração de moçambicanos que estudaram, em anos sucessivos, a obra “Nós Matámos o Cão Tinhoso” e se formaram na companhia das suas personagens, sobretudo: Ginho, Quim, Gulamo, Zé, Xangai, Carlinhos, Issufo, Chico, Telmo, Chichorro ou Norotamo, sem esquecer a renitente Isaura. O Senhor Duarte da veterinária, o Administrador, Madala, Maria, o Capataz, Djimo, Filimone, n´Guiana, Muthakati, Tandane, Muthambi, o Senhor Antunes da Coca Cola, a Dona Dores, o Senhor Frias, a dona Estefânia, o Rodrigues da loja, o Vírgula Oito, Maguiguane, Mathumbitana, eu sei lá! Papá, Mamã, Lolota, Tina, Gita, Nandito, Nelita, Joãozinho. Uma verdadeira galeria de personagens (reais) que hoje fazem parte do nosso imaginário.
Termino este depoimento celebrativo, lembrando que, gozando do privilégio de conviver com estes numes da literatura moçambicana – Noémia, Craveirinha, Nogar, entre outros –, ao ouvi-los, o que fazia amiudadas vezes, eles falavam, com veemência, de homens probos, que eram comuns no tempo em que eles viveram e se afirmaram. Esta fidalguia, de mulheres e homens distintos, honestos e honrados, dignos e decorosos, éticos e probos, não avulta, hoje, por certo. Vivemos nos antípodas dos tempos irrepreensíveis de outrora e das figuras que nos nobilitavam. Luís Bernardo Honwana é um dos últimos desta tribo exemplar. Aqui lhe deixo o meu preito, neste dia em que ele celebra 80 anos e que nós, seus leitores contumazes, perseveramos.
KaMpfumo, 12 de Novembro de 2022
O Poeta Jorge Viegas, de seu nome completo Jorge Alberto Viegas, nascido em Quelimane, a 6 de Novembro de 1947, faz hoje 75 anos. Publicou, muito jovem, aos 19 anos, em 1966, “Os Milagres”, o seu livro de estreia. Seria, porém, ao ver os seus poemas estampados nos cadernos de poesia “Caliban”, editados por João Pedro Grabato Dias e Rui Knopfli, dois nomes importantes da nossa lírica, que se sentiria reconhecido como poeta. Não é caso de somenos importância: estava acompanhado de José Craveirinha, Rui Nogar, Sebastião Alba, João Pedro Grabato Dias, Rui Knopfli (para citar os nomes locais), ou Jorge de Sena ou T.S. Eliot (traduzido por Knopfli e apresentado por Eugénio Lisboa). Isto em 1971, no ano em que o jovem promissor está à beira dos 24 anos.
Quando publica “O Núcleo Tenaz”, a sua obra mais significativa, na mítica colecção Autores Moçambicanos, do INLD, na brevíssima nota biográfica, na contra-capa da obra, este facto (a sua colaboração nos cadernos “Caliban”) merece destaque. Não refere aí o seu livro primaveril. Do autor vai constar ainda o facto de exercer as funções de Director de Finanças, em Nampula, onde então residia. Estávamos em 1982, Jorge Viegas tinha 35 anos. Começara, porém, a experimentar as amolações da revolução. Vivíamos tempos alvoroçados. Abatido, exaurido, fatigado, profundamente doente, aparta-se da Pátria, no ano seguinte.
“Do meu país as aves se ausentaram / e com elas se foi a vida, a alegria. / E os poetas, nos versos que cantaram, / foram pássaros de morte e de melancolia”. À esta distância, eu diria que estes acerados versos subscrevem o anátema do nosso destino individual e colectivo. A despeito, um poeta capaz de semelhantes versos tem direito a habitar a nossa mitologia literária. Jorge Viegas, avaro e escasso, rebelde e tenaz, indômito e soturno, eufórico e taciturno, canta sempre a vida e a morte, proclama a liberdade, ama voluptuosamente as palavras. Nos tempos em que a revolução concitou o seu entusiasmo teve dele uma adesão comedida. Nunca foi panfletário, sempre um subversor da linguagem.
“O Núcleo Tenaz” inicia com um poema que traz uma epígrafe que é também uma espécie de programa ou, até, epigrama: “A Pátria está nos livros que eu não li”. Este poema, sem título, evoca, no seu primeiro verso, o Poeta, que enuncia: “As pátrias nascem, crescem, / vivem dentro de nós.” Mais adiante em “Fala de um guerrilheiro”: “Neste tempo de susto e de loucura, / Tempo de fome e tempo de amargura / A Pátria cresce em nós num sonho puro.”
Acto contínuo, na página seguinte, o poeta da “Subversão” prescreve o tom da insurreição: “O pintor subverte a paisagem. / O poeta subverte os planos da linguagem. / O guerrilheiro subverte os homens sem mensagem. // Subverte. Subvertemos. / Subvertidos fomos. / À subversão devemos / A estatura do que somos.” Sublinho: “À subversão devemos / A estatura do que somos”. Este poema, este tom subversivo, esta sublevação poética, também seriam o mote da geração que viria a despontar nos anos 80 quando esta obra foi publicada. Alguns dos poetas da minha geração – Eduardo White sobretudo – reclamam-no. “O Núcleo Tenaz” foi, para alguns de nós, uma espécie de breviário.
Era o tempo no qual “o inimigo move-se no arco dos azimutes”, tempo onde: “Baionetas caladas / Perfuram a noite. / Permaneço de pedra. / Transmudado em basalto”. Isto na “Canção de Bagarila”, dedicada a José Craveirinha. Aliás, as dedicatórias neste livro para além de denunciarem laços poéticos inextricáveis, são uma espécie de cartografia lírica do autor. A Sebastião Alba dedica-lhe Jorge Viegas o poema que dá título ao livro onde estão inscritos estes versos: “Com o poema / abriremos a noite, / jugularemos o medo.” “Porque o poema é sempre / (mesmo o das palavras mansas e amáveis) / o núcleo tenaz / duma revolução.”
Poesia que adere ao sonho sem ser necessariamente panfletária. O fervor da revolução numa escrita vigiada obstinadamente. Parece que estamos perante uma contradita? “Ao escreveres um poema / articula bem as palavras, / todas as palavras necessárias, / para que elas permaneçam intactas / não na brancura do papel, / mas grafadas, indelevelmente, / na memória dos homens”, conclama Viegas.
Provavelmente, o verso que cito a seguir resolva o paradoxo de uma poesia engajada que não é necessariamente panfletária: “As palavras estão no começo e no fim de todas as cousas”. Creio que está aí a chave. No texto “Poema” diz o poeta: “E canto. / E evoluo nas minhas coordenadas. / “Que os humanos se matem às dentadas” / Pois que, por enquanto, / eu escrevo poemas para mulheres sentadas”.
Nos primórdios da década de 80, a revolução revela algumas fissuras e começa a conhecer-se-lhe um certo refluxo. Uma brutal e indisfarçável crise social denunciava-lhe o impasse. Não deixa de ser admirável, neste contexto, a afoiteza do poeta. Neste mesmo livro, o tom lírico, que ao tempo era uma espécie de sublevação, vai-se acentuando: “O teu corpo de planos e derrotas, / Onde esvoaça à pura luz da aurora, / A exilada sombra das gaivotas”. (“Guida”). Ou: “o amor fende as águas da melancolia”. Ou ainda: “Há um lugar de sombra nos teus olhos. / Nesse lugar me deito e adormeço.”
“O Núcleo Tenaz” é também um livro de desencanto. Num texto ominoso, dedicado a Rui Knopfli (“Círculo de Sombra”): “A minha alma é um círculo de sombra. / Os meus poemas são a pálida mensagem / dum homem melancólico. Se sou poeta, / decerto não sou do tempo presente.” Há lugar para uma certa distopia aqui. “Escrevo poemas de amor, e os meus poemas / não conduzem os povos à contestação. / Gosto de passear nas ruas a antiga liberdade / que eu sei haver nos poetas que mais amo”. É um dos mais belos e pungentes poemas deste poeta moçambicano.
Esta inflexão acentua-se no poema seguinte: “Eu escrevo poemas, / somente para fugir à sedução, / ao trágico pendor da minha alma / por uma poça negra, / tão funda como a morte”. Aqui está o desengano. Em “A Esperança Aracnídea”, dedicado a Rui Nogar: “No espaço de sombra / das palavras que escrevo / o futuro é ilegível”. Ou mais adiante: “Sobreviventes do naufrágio de nós mesmos”. Torna-se flagrante este dissídio quando em “As palavras são poucos” o poeta escreve: “As palavras são poucas / para explicar o cansaço, / o desânimo de estarmos / inevitavelmente vivos.”
“O Poeta / é o que tem a memória límpida de alguns lugares / onde não foi em data nenhuma a sua vida.” Eu diria que este livro que vai da adesão à revolução à disforia aquando do seu refluxo é, ao mesmo tempo, belo e lancinante, melancólico e profundo, escrutina ou perscruta, o mais profundo do seu ser.
O livro seguinte, “Novelo de Chamas”, publicado em 1989, em Lisboa, pela ALAC, de Manuel Ferreira, experimenta os limites dessa circunstância biográfica adversa do autor, marcada pela exaustão, pela descrença, pela prostração, pela angústia e pela tribulação. Mesmo quando afirma em “Brancura viva”: “Da obscura noite do sonho / nasce a brancura vida do poema”, o que encontramos neste livro profundamente taciturno? “Sinais de morte?”
No poema “Necrologia” parece chegar-se ao limite do paroxismo: “Acaba de morrer / na sua residência circular / de Illinois ó Prata, / o poeta moçambicano / Jorge Viegas. / Paz à sua alma”. “Nenhuma aspa de luz me ilumina, / nenhum deus vela à minha cabeceira.” Poesia agoirenta, aziaga, sinistra, consternada, amargurada, sorumbática, agónica.
Mas sempre uma poesia reveladora do seu alto estro, capaz de versos sublimes: “fina haste de melancolia”, “os açulados nervos da linguagem” ou “a fúria vocabular de deus”, entre outras tiradas, que denunciam o conseguimento daquilo que o poeta alvitra ser “a tentativa de fazer / com as palavras, / o que a Ralenkova / faz com o arco”.
Para além destas obras, os poemas de Jorge Viegas estão coligidos em “No Reino de Caliban III” (1985), de Manuel Ferreira, na “Antologia da Nova Poesia Moçambicana” (1993), que co-organizei com a Fátima Mendonça e em “Nunca Mais é Sábado” (2004), antologia de poesia moçambicana. “Novelo de Chamas”, publicado há 33 anos, foi a sua última obra conhecida. Foi nessa época em que o conheci pessoalmente e tivemos um cordial embora limitado convívio.
Num texto mítico (“Notas para a recordação do meu mestre Fonseca Amaral”), o Poeta Rui Knopfli escreve: “Fonseca Amaral é, por direito e mérito próprios, um dos nomes mais altos e representativos da Poesia em Moçambique e, simultaneamente, por desleixo ou abulia, um dos menos conhecidos e apregoados, espécie de grande ausente nos vários certamos em que vamos acrescentando pátina às nossas acanhadas glórias caseiras”. Eu diria exactamente o mesmo de Jorge Viegas. Proferiria as mesmas palavras. Esta efeméride, os 75 anos do Poeta Jorge Viegas, constitui, por conseguinte, um facto literário importante e um pretexto para o lembrar e celebrar.
No texto que redigiu para o prefácio de “Novelo de Chamas”, Luís Carlos Patraquim diz o seguinte deste poeta muitas vezes omisso entre nós: “É esse Ser, esse deus ou deuses plurais, que desde longa data vêm habitando a Poesia deste Jorge Viegas, ora sarcástico, ora terrível, ou angustiado como um dos escolhidos para descobrir no deserto o maná da sua travessia”.
No poema “A loucura”, Jorge Viegas escreve: “De louco e de poeta / todos temos um pouco. / Mas eu tenho mais de louco”. Isto é óbvio sarcasmo. No entanto, este poderia ser um epigrama da vida, da biografia ou do destino deste poeta que escreve dolorosa e profeticamente estes terríveis versos: “No meu país / a única forma de liberdade permitida / é a loucura”.
O Poeta Alberto de Lacerda morreu há 15 anos. Li, pela primeira vez, um poema seu publicado, na vetusta “Gazeta” da TEMPO, por Luís Carlos Patraquim, que me marcaria para sempre: “Diotima”. Aqueles versos iniciais são inesquecíveis e nunca me abandonaram: “És linda como haver Morte/ depois da morte dos dias”. Isto é de uma beleza tremenda. Mas o poema tem outros versos igualmente perfeitos: “Quem te criou destruiu / qualquer coisa para sempre”. Um poeta capaz deste tipo de síntese poética tem lugar em qualquer panteão. Este poema foi inspirado pela sua sacerdotisa, a Poeta Sophia de Mello Breyner Andresen, talvez a mais importante poeta portuguesa do século passado.
Alberto de Lacerda nasceu na Ilha de Moçambique a 20 de Setembro de 1928 e cedo imigrou para Londres onde viveu – com intermitências pela América – até ao fim. Luís Amorim de Sousa escreveu um testemunho pungente sobre o Poeta em “Às Sete no Sa Tortuga: um retrato de Alberdo de Lacerda”. Um comovente testemunho de amigo desde que se conheceram em Londres até ao fim. Lacerda abandona Moçambique em 1946, parte para Lisboa onde prossegue os estudos e chega, em 1951, a Londres. Aos 23 anos almoçou “Exactamente / No centro / Da liberdade” com o imenso poeta T.S. Eliot, autor desse celebrado “The Waste Land” e Nobel em 1948. Conhece, através de Edith Sitwell, o poeta Dylan Thomas.
Será na capital britânica onde publicará o seu primeiro livro: “77 Poems”, em 1955, pela Allen&Unwin. Teve um acolhimento caloroso e críticas entusiasmadas. Em Portugal, onde no início dos anos 50 conviveu com a nata da poesia portuguesa – Ruy Cinatti, Mário Cesariny, Raul de Carvalho, António Ramos Rosa, Luís Amaro e Sophia de Mello Breyner Andresen, a sua Diotima –, participou da criação da “Távola Redonda”, com Ruy Cinatti, António Manuel Couto Viana e David Mourão-Ferreira.
Poeta maravilhado e do maravilhamento, poeta deslumbrado e do deslumbramento, poeta sensível e iluminado, poeta intenso, por vezes enigmático, esfíngico, nostálgico sempre. Poeta amante da poesia, da música, das artes plásticas. É amigo, até ao fim, da grande artista Paula Rego. Outra musa. Coleccionador inveterado de arte, de livros, de discos. Vive compungido com a música, sobretudo de Mozart, exulta com Picasso. Poeta da língua, grande exegeta. A língua portuguesa esplende-se e esplende-lhe. Quem o conheceu, via nele a figura e a imagem do poeta. Homem por vezes ensimesmado, recolhido no seu ser. Soberbo conversador: Eugénio Lisboa dizia que a conversa com Alberto de Lacerda melhorava o silêncio. Aliás, Luís Amorim de Sousa, nas várias homenagens que lhe faz, não poupa elogios a essa arte de conversar e a essa festa da palavra no diálogo com Alberto de Lacerda. Da palavra exacta. Da poesia esmerada. Do silêncio.
Numa remota viagem pelo seu lugar de origem escreve um dos poemas mais belos e translúcidos sobre a Ilha de Moçambique, que lhe chama “L`isle joyeuse” no livro “Exílio”: “Ó festa de luz de mar tranquilo”. Aliás, em “A Minha Ilha”, esta mesma Ilha de Moçambique estará na origem dos mais breves e mais intensos versos de sagração da Ilha de que há memória: “Ilha onde os cães não ladram e onde as crianças brincam / No meio da rua como peregrinos / Dum mundo mais aberto e cristalino”. Este e outros versos seus, igualmente lapidares, foram recolhidos na antologia “A Ilha de Moçambique pela Voz dos Poetas”, compilada por mim e pelo António Sopa. Numa ulterior empreitada, “Nunca Mais é Sábado” (título pilhado a Rui Knopfli), antologia que organizei, sobre a poesia moçambicana, iria, igualmente, incluir poemas de Alberto de Lacerda. Para obter o seu consentimento, falei-lhe ao telefone e ele foi extremamente afável nesse único contacto que estabelecemos. Tive pena de nunca o ter encontrado pessoalmente. O Eugénio Lisboa quis muito que eu o conhecesse, mas não calhamos em Londres.
Quando vou a Londres hospedo-me em Battersea. Não raro imagino-o a percorrer as ruas de Chelsea, o seu bairro predilecto, no qual residiu até ao início da década de 70 e que está profusamente cartografado na sua poesia. Mudar-se-ia para 48A Primrose Mansions, na Prince of Wales Drive, que margina o Battersea Park, onde frequento amiúde. Certa noite fui lá em busca da sua memória. Em Julho passado ainda intentei uma visita ao Cemitério de Brompton onde ele está sepultado. Mas o calor impenitente que assolava Londres impediu-me essa romagem poética.
Das suas efemérides literárias destacaria: “Oferenda I” (1984), que inclui “77 Poemas” (1955), “Palácio” (1961), “Exílio” (1963), “Tauromagia” (1981) e “Cor: Azul”. Publicou “Elegias de Londres” (1987), “Meio-Dia” (1988) e “Oferenda II”, que acolhe “Opus 7” e “Mecânica Celeste”, para além de “Átrio” (1997” ou “Horizonte” (2001) ou ainda o póstumo “O Pajem Formidável dos Indícios” (2010).
Foi amigo do poeta brasileiro Manuel Bandeira, a quem visita no Brasil, entre 1959 e 1960, numa prolongada estada, que será preenchida com leituras e palestras. Conhece figuras estelares do modernismo brasileiro. Trava amizade com Oscar Niemeyer, este irá levá-lo a conhecer Brasília, então em fase de construção.
Da sua estada na América avulta a sua passagem por Austin, na Universidade do Texas, onde dá aulas, orienta cursos de Português, Francês e Literatura Comparada. Deixara para trás o trabalho precário de locutor e redactor da BBC. Convive à época com nomes como Octavio Paz, o poeta mexicano que seria laureado com o Nobel em 1990. Em 1969 surgem os seus “Selected Poems” nos Estados Unidos. Visita o México, que lhe inspira “Trinta e Quatro Poemas Mexicanos ou a Genealogia do Tempo”, obra inédita. Organiza um festival de poesia. Dele participam: Jorge Luis Borges, Czeslaw Milosz (outro Nobel, em 1980), Robert Duncan, Louis Zukofsky, David Wevill e Robert Creeley, entre outros.
Em 1972 vai leccionar para a Universidade de Boston. Foi, entre outros, professor de Jhumpa Lahiri, uma grande escritora americana, nascida em Londres, filha de indianos. Reencontra Octavio Paz, trava novas amizades: Jorge Guillén, Roman Jakobson, Elisabeth Bishop, entre tantas outras figuras da literatura americana. Sobretudo os da Costa Leste.
Em 1977 fez uma leitura pública da sua obra na Biblioteca do Congresso, em Washington, e gravou uma selecção de poemas para os arquivos sonoros desta instituição. É provavelmente o único poeta em língua portuguesa que mereceu até hoje esta distinção.
A sua ligação com a Universidade de Boston perdura até à sua aposentação em 1996, ano em que retorna, definitivamente, a Inglaterra. Os últimos livros que publica em vida são “Átrio” (1997) e “Horizonte” (2001).
Era um grande colecionador. Existe uma obra – “Colecção Alberto de Lacerda – Um Olhar”, com textos de Luís Amorim de Sousa, Jhumpa Lahiri, Mário Soares, John McEwen e Alfredo Caldeira. Lacerda, para além de ser grande nome da poesia em língua portuguesa, era um obstinado colecionador de livros, quadros, desenhos, discos, cartazes, fotografias. Em 1987, parte da sua colecção esteve exposta na Gulbenkian, em Lisboa, em “O Mundo de Um Poeta”. No livro “Apesar de Tudo – Em memória de Alberto de Lacerda”, Luís de Sousa Amorim relata os últimos dias e a morte do Poeta, bem como a saga kafkiana que se seguirá para a recuperação do seu vasto espólio. O testemunho de como venceu a burocracia das heranças e os obstáculos que a banca impunha é assombroso. Deve-se-lhe a recuperação do património e do nome de Alberto de Lacerda.
Alberto de Lacerda não terá voltado a visitar Moçambique depois da viagem que antecede o belíssimo livro evocativo “Exílio”. Mas o referencial poético moçambicano está sempre presente. Sobretudo o Norte de Moçambique. Na “Segunda Elegia” das suas belas e pungentes “Elegias de Londres” a infância e os seus territórios desse eterno encantamento estão cartografados de forma ineludível. E noutros versos e noutros poemas.
Rui Knopfli, no luminoso livro “Mangas Verdes com Sal” (1969), num dos seus mais belos poemas, cita-o como um dos seus predecessores: “Que subtraio de Alberto de Lacerda / e pilho em Herberto Helder e que / - quando lá chego e sempre que posso - / furto ao velho Camões.” Hoje é um poeta praticamente deslembrado. Há quatro anos foi publicada uma antologia de sua poesia (“Labareda”), em Portugal, com prefácio e organização de Luís Amorim de Sousa, seu indefectível amigo e legatário. Por sua iniciativa, tinha sido editado o livro póstumo “O Pajem Formidável dos Indícios”. Entre nós, o seu nome sempre escapou à quezilenta discussão da nacionalidade literária. Ainda bem. Nunca os ensimesmados esbirros literários se meteram com ele. Um poeta do seu quilate, um poeta do seu gabarito, não é de todo prescindível. Hoje, 27 de Agosto, passam 15 anos sobre a sua morte. Num remotíssimo breve poema intitulado “Vento” escreveu premonitoriamente: “Que a minha vida fosse para os humanos / como o vento que passa e que se esquece.” Está gravado na pedra do seu túmulo o poema de uma única palavra que também faz a súmula da sua vida e de como viu este mundo: “Paraíso”.
“...ela estava entre as estrelas mais brilhantes deste país, no sentido próprio da palavra.”“...ela estava entre as estrelas mais brilhantes deste país, no sentido próprio da palavra.”
Nelson Mandela
Naquele infausto dia 17 de Agosto de 1982, há precisamente 40 anos, quando ouvi, na rádio, a notícia do brutal assassinato de Ruth First, por intermédio de uma carta-bomba, eu não passava de um adolescente de 15 anos. Vivíamos, é certo, tempos vertiginosos e empolgantes, ulteriores a uma emancipação política recente. Eram tempos de engajamento, tempos de exacerbamentos ideológicos, tempos disjuntivos, sem dúvida, entre a revolução e os seus acérrimos defensores e aqueles que eram os inimigos figadais da mesma, ou que estavam nos seus antípodas. Mesmo sendo um jovem adolescente, tinha a noção do que estava a acontecer no território movediço da política em Moçambique e da África Austral, então em ebulição, numa encarniçada e violenta disputa.
Os virulentos ataques da então Rodésia do Sul (actual Zimbabwe, independente em 1980) e os da África do Sul do apartheid, quotidianamente demonizados na imprensa, estavam na origem de mossas visíveis no tecido social e económico. Para além disso, os indícios da guerra de agressão eram já ineludíveis. O nosso apoio sem tréguas às lutas pela libertação do Zimbabwe e pelo fim do apartheid na África do Sul traduziu-se numa impiedosa agressão, cuja devastação tem efeitos ainda hoje. Os nossos dias, nos quais tudo escasseava, de bichas para tudo e de uma miséria material e social inelutáveis, eram já o testemunho do desastre. Tínhamos, afinal, consignado o nosso presente e o nosso futuro a esta causa. Teríamos nós a noção do que estávamos a penhorar? Ou estávamos cegos imbuídos pelo arroubo do proselitismo que nos movia?
Quando o infortúnio atingiu Ruth First, eu já estivera em comícios na Praça da Independência, vira Samora Machel de mãos dadas com Oliver Tambo, ouvira as suas diatribes contra o regime vigente na África do Sul, marchara a favor da libertação de Nelson Mandela, abominava visceralmente o regime do apartheid, tinha devotado muito antes a mesma bílis em relação a Ian Smith. Era já, de algum modo, um jovem politizado. Não estava imune à propaganda e à ideologia dominantes. Antes pelo contrário. Os meus versos daquela noite foram de ira, ódio, fúria, repulsa. Não os tenho mais, perderam-se, mas guardei a lembrança do facto de terem desencadeado, em mim, naquele momento de cólera, o escritor que se iria revelar com tempo. Ali, naquele acontecimento plangente, estava inscrito, de algum modo, o meu destino literário e o nome sacrificado de Ruth First ficaria assim ligado à minha mitologia pessoal.
Heloise Ruth First, filha de judeus oriundos do Mar Báltico, entre a Lituânia e a Estônia, no Leste europeu, nascera, em Joanesburgo, a 4 de Maio de 1925. O pai era um dos membros fundadores do Partido Comunista Sul-africano. As causas que ela iria abraçar e o seu aguerrido carácter parecem advir da ascendência. A estirpe da lutadora tem uma origem indissimulável. Na Universidade de Witwatersrand, que frequentou entre 1942 a 1946, foi contemporânea do futuro marido e companheiro de vida e de luta - Joe Slovo -, bem como de Nelson Mandela. Estudou ciências sociais que lhe garantiram os instrumentos para o combate intelectual e político. Estava do lado dos oprimidos, dos vexados pela História, dos amofinados pelo regime – os violentados, os aviltados, os molestados, os injustiçados. Sempre esteve. A sua vocação, por assim dizer, era o jornalismo, era a denúncia, era a contestação, era a rebeldia. Apoiou a luta dos mineiros em 1946, esteve na campanha da resistência pacífica dos indianos em 1950, ou nos protestos contra o banimento do Partido Comunista nos anos 50. Esteve sempre do lado certo da História.
Casa-se com Joe Slovo em 1949. A casa de ambos converter-se-ia numa célula política, lugar importante para a conspiração, para reuniões e debates, naqueles duros anos 50. Ela é já então uma activista intrépida. O legendário fotógrafo Peter Magubane, que tem a provecta idade dos 90 anos, tem uma fotografia de Nelson Mandela confabulando com Ruth First nos tempos em que ambos combatiam o apartheid. É uma belíssima imagem desses tempos acirrados e fascinantes da História - testemunho e testamento da História. First e Slovo são brancos e combatem a supremacia racial e incivil instalada no seu país.
Ruth é presa, tal como Nelson Mandela, no processo e, depois, Julgamento por Traição (1956-1961). No entanto, as acusações do regime foram retiradas e todos os réus absolvidos. Aquando da declaração do estado de emergência, na sequência do massacre de Sharpeville e da dura repressão, foge do país, contudo retorna a Joanesburgo seis meses depois. Torna-se editora do “New Age”. Importa citar a sua passagem pelo “The Guardian” e pelo “Fighting Talk”, igualmente. Aliás, seria novamente detida, em 1963, por conta do seu activismo e dos artigos que escrevia. Esteve na solitária 117 dias e redigiu um testemunho dessa experiência. Foi, indubitavelmente, a primeira branca a experimentar essas agruras.
Nelson Mandela e muitos dos seus companheiros, na sequência da “Operação Mayibuye”, são presos. As anotações de Mandela sobre a guerrilha e os seus diários da sua célebre viagem de 1962 (ilegal para o regime) eram incriminatórios. Walter Sisulu, Dennis Goldberg, Govan Mbeki, Ahmed Kathrada, Raymond Mhaba, ou Andrew Mlangeni estão entre os réus. Estavam todos arrolados no célebre Julgamento de Rivonia. Oliver Tambo, Joe Slovo e Ruth First também foram envolvidos.
Joe Slovo exilara-se no Reino Unido. Quando Ruth ganha o direito à liberdade, ela e as três filhas, juntam-se-lhe. Nas décadas 60 e 70, a viver na Grã-Bretanha, é uma activista anti-apartheid destemida e escreve uma série de livros audazes e tem uma brilhante carreira acadêmica. A sua história em Moçambique está umbilicalmente ligada ao Centro de Estudos Africanos, onde desempenhará o papel de directora de pesquisa, coadjuvando Aquino de Bragança, seu director, pela mão de quem viera. Ao abandonar o Reino Unido juntava-se a uma geografia que lhe devolvia a proximidade com o seu país e a sua luta. À época, Slovo vivia em Angola. Posteriormente, estabelece-se em Maputo. A fronteira era importante para a luta e para as actividades do Umhkonto we Sizwe.
Quando chega a Moçambique, em meados dos anos 70, Ruth First é uma intelectual afirmadíssima e autora de uma importante obra. O Centro de Estudos Africanos, inspirado no remoto CEA criado em Lisboa por Mário Pinto de Andrade e seus companheiros nacionalistas africanos, que funcionou inicialmente em casa da Tia Andreza, tia da santomense Alda do Espírito Santo, é uma experiência, de laboratório social, reproduzida não só em Moçambique. Na Guine Bissau, o próprio Mário de Andrade será propulsor de um dos CEA mais activos e formará importantes investigadores e intelectuais, entre os quais está o proeminente Carlos Lopes, uma das mentes cintilantes de África hoje, que é dessa fornalha.
Em Moçambique, o CEA tem um papel decisivo no estudo e na problematização social do novo país. Uma abrangente pesquisa colectiva de campo, por si dirigida, entre 1977 e 1979, sobre a situação do trabalhador migrante moçambicano de origem camponesa, nas minas sul-africanas, é um dos trabalhos pioneiros no campo da economia política ou da sociologia económica em Moçambique, ou, se quisermos, das ciências sociais moçambicanas, e um dos vibrantes legados de Ruth First. Seriam estes camponeses migrantes, expostos à indústria do Rand, fautores da industrialização na nova realidade social e política de Moçambique?
Ruth era uma militante engajada na luta anti-apartheid, mas nem por isso deixava de ser uma cientista social de grande gabarito intelectual e com um aparato metodológico inatacável. As suas causas não lhe tolhiam a racionalidade. Sendo uma socióloga marxista, por assim dizer, mesmo quando a realidade social desmentia a ideologia ou aquilo que se pretendia politicamente, não pervertia os números. Os seus trabalhos estavam alicerçados em dados estatísticos e em evidências empíricas sólidas. Não os torcia a favor da política.
Gillian Slovo, a sua filha do meio, é uma escritora reputada no Reino Unido. É autora, entre muitas obras, de “Every Secret Thing”, um relato biográfico onde retrata, com evidente e comovente candura, a sua mãe, os seus pais - melhor dizendo -, as suas lutas e as suas heranças políticas. É um poderoso testemunho. Por outro lado, Rob Davies, que chegou a Moçambique em 1979, jovem branco activista anti-apartheid, integrou a equipa do CEA, trabalhou com Ruth, faz o testemunho disso no seu mais recente livro “Towards a New Deal – a political economy of the times of my life”. São as suas memórias depois de servir os governos do ANC ao longo de duas décadas. Ele relata os tempos de Moçambique e da revolução e dos sonhos que então acalentavam naqueles anos. Chegou a estar na mira de Craig Williamson, o carrasco de First.
Williamson é uma figura tenebrosa. Está na origem de assassinatos e atentados em vários países, de Angola ao Reino Unido, passando por Moçambique, visando activistas e combatentes anti-apartheid. Seria, no entanto, beneficiário de uma amnistia da Comissão da Verdade e Reconciliação, o que exasperou as filhas de Ruth First e Joe Slovo, que intentaram, inclusive, a postergação da mesma. Paradoxos da nova África do Sul.
No dia em que a mataram, no Centro dos Estudos Africanos, que tem um memorial com o seu nome e o de Aquino de Bragança, Ruth estava na companhia de Aquino, que ficou ferido, bem como do seu camarada Pallo Jordan e da investigadora americana Bridget O´Lauglin. As imagens deste atentado são pungentes. Depõem sobre um tempo que tendemos a esquecer e que foi distinto na história entre os nossos países. No ano anterior, Matola tinha sido atacada, resultando na morte de activistas sul-africanos e de moçambicanos inocentes. O que quitávamos deste esforço era a destruição da nossa economia e a morte dos nossos concidadãos. Dois anos depois, em 1984, Samora Machel e Pieter Botha intentam um Acordo de Nkomati. O ANC viu-se atraiçoado. Ainda hoje vivemos contrafeitos desse pacto e as nossas relações continuam irresolutas.
A distância destes 40 anos não vejo referida, entre nós, a sublime figura de Ruth First. É a nossa congénita amnésia? Não fosse o seu vulto de intelectual, ou o seu combate intrépido contra o regime de segregação racial, a sua marcante passagem pelo CEA, em Moçambique, num tempo e numa circunstância em que as ciências sociais procuravam ser o laboratório da revolução em curso, ela mereceria de nós, no mínimo, um preito, um tributo, um reconhecimento. Para além da desmemória e do descaso, somos desagradecidos e deslembrados. Há uma história de sangue que nos une à África do Sul, contudo somos incapazes de a nobilitar. Dos dois lados da fronteira. O Acordo de Nkomati – e todas as contradições que encerra – não pode explicar tudo quanto à nossa displicência e omissão. Moçambique hipotecou, severamente, o seu presente e o seu futuro para a liberdade dos sul-africanos. A remuneração disso não pode ser a desatenção, o lapso e a indiferença.
Ruth First não viveria os tempos da liberdade que chegariam na década ulterior. Joe Slovo, o seu companheiro de vida, ainda viu a África do Sul livre e foi, por alguns parcos meses, ministro de Nelson Mandela, antes de ser tolhido pela doença e pela morte. Uma pintura emblemática pintura do seu marcante rosto, numa das casas sociais do bairro de Langa, na Cidade do Cabo, à beira da estrada, ilustra o lugar de Slovo na história da África do Sul. 40 anos após a sua morte, Ruth continua a ser, para mim, uma figura inspiradora. Descobri, amarrado, por uns dias, numa das docas da mesma Cidade do Cabo, há dois anos, um navio patrulha, com o seu nome e, confesso, fiquei emocionado. Sabia que o seu nome dera crédito à toponímia em algumas cidades da África do Sul, mas desconhecia a monta inscrita naquele navio.
Em Moçambique, a despeito da pedra evocativa no CEA, não lhe conheço outra valia que a tenhamos prestado. A Slovo concedemo-nos a honra de uma rua na baixa da cidade de Maputo. Não obstante, o nome de Ruth First está irreversivelmente ligado à minha humilde história pessoal. Afinal, foi naquela noite ominosa que eu cometi os meus primeiros versos. Passam 40 anos! Lembro-a não apenas por isso. Ela é uma grande intérprete do destino da África do Sul, de Moçambique e da África Austral. É evidente que laboramos hoje no lodo de outros equívocos e outros ímpetos, aluviões incapazes de sufragar o que a História de bom nos designou, ou de autuar os excessos – afinal de contas assim ditam os eufemismos! – que estarão na origem dos desacertos que ainda hoje nos perseguem e assombram.
KaMpfumo, 17 de Agosto de 2022
Rui Knopfli, nascido em Inhambane, a 10 de Agosto de 1932, faria hoje 90 anos. Um acaso está na origem da minha descoberta juvenil de o “Reino Submarino”, publicado em 1962. Esse encontro desencadeou um tumulto, difícil de descrever, em mim. Aquele tom estava fora do tom. Aquela poesia parecia estranha. Aquelas imagens, aquela sonoridade, aquelas metáforas. Aquele poder discursivo, barroco, torrencial por vezes, alegórico. Sempre cativante, sedutor e encantatório. Quase sempre pungente, língua dilacerada e dilacerante. Voz dos eleitos. Oriundo de uma educação literária onde avultava a poesia engajada e revolucionária, no lídimo contexto de afirmação de um novo país, desconhecia este poeta tão impressivo. Aliás, havia um ensurdecedor silêncio à sua volta.
Não se falava à época, meados dos anos 80, de Rui Knopfli. Nascera em Inhambane. Filho de um funcionário da Administração, a sua família vivia, nos anos 30, em Vilanculos. A mãe foi tê-lo à Inhambane onde estavam asseguradas condições de assistência médica mínimas. O poeta só aos 20 anos irá conhecer a cidade que lhe dá naturalidade. Viverá na Moamba, na Namaacha, em Magude. Curiosamente, Magude tem uma importância capital sob o ponto de vista literário. Foi lá, aos 15 anos, que começou a ler livros emprestados. Estava-se nos finais dos anos 40.
No final da juventude e já na capital teve encontros decisivos: Fonseca Amaral e João Mendes - os mentores da sua geração -, José Craveirinha, Noémia de Sousa, Rui Nogar ou Ricardo Rangel. Em casa da Noémia, a pretexto de ouvir o mítico Daíco, empreendem conversas subversivas. Não estavam isentos da perseguição política. Aquando das eleições de 1949 e da candidatura desafiante de Norton de Matos (que concitou tantos jovens africanos em Moçambique e em outros países) colam cartazes, promovem reuniões, conspiram. Alguns são presos, interrogados e mesmo espancados. Aníbal Aleluia é violentamente sovado. Rangel e Noémia não são isentos da bordoada pidesca. Knopfli, por conta da raça, é humilhado verbalmente. Era branco e a PIDE tinha critérios epidérmicos no seu acto incriminatório. Mais tarde, em 1952, foi parar aos calaboiços por um dia. Tinham importado livros inobedientes.
Em 1959 publica, aos 27 anos, o seu primeiro livro. Alguns companheiros de juventude tinham emigrado ou se exilado noutras latitudes. Rui terá, no entanto, uma passagem por Joanesburgo onde estuda e escreve alguma poesia em inglês. Aliás, no seu livro de estreia essa influência anglo-saxónica já é visível: “Velho poema da cidade do ouro”. Mais tarde ver-se-á ampliada. Sobretudo no seu encontro com T.S. Eliot, que traduz e glosa. Mas é a evocação da sua cidade, do seu tempo de infância, “da sociologia de esquinas”, dos jogos “pueris de sexo”, mas também a consciência de um lugar e de um tempo em tumulto, em transição, em transformação. O título do livro é uma provocação ou, se quisermos, o assumir dessa consciência de um tempo que mudaria, inexoravelmente: “O País dos Outros”.
Como disse intentei o seu conhecimento através de “Reino Submarino” (1962). Os poemas elegíacos foram aqueles que mais me impressionaram: “A Menina do Retrato”, “Encontro”, “Monólogo”, sobretudo “A Uma Criança Longe”: “Escrevo-te estas palavras/ sabendo que as não lerás” ou ainda: “A morte é isso, é acabar/ simplesmente, não acontecer mais.” Este é um dos poemas que mais remotamente recordo, um poema dolorosamente biográfico.
Rui Knopfli: “Nada me auxiliam as lágrimas/ que me salgam a face/ e o muito que tenho blasfemado/ de borco, rente ao teu silêncio gelado. / Esta a lógica prosaica dos factos: / Continuamos a viver, dolorida/ a consciência/ da tua cada vez maior ausência. / E teu pequeno corpo moreno, / que nem todo o meu amor aquece, / é um palmo de ternura/ que apodrece.”
Este livro dedicado à memória da filha é atravessado por esse tom pungente de versos elegíacos. O poema “Pequena Elegia” termina com estes versos que nunca me esqueci: “Inteira, a tua morte/ viaja dentro de mim.” O livro tem outras elegias, como aquela dedicada ao poeta Reinaldo Ferreira, que morreu em 1959: “O que na vida repartiu seu poema/ por alados guardanapos de papel, / o criador de sonhos logo perdidos/ na berma dos caminhos, / o mago que pressentia o segredo/ da beleza perene”. Este ano, pleno de efemérides literárias, foi também o ano do centenário de Reinaldo.
Deste livro destaco ainda o poema “Adeus Xico”, uma dolorida memória da juventude, poema que eu declamei inúmeras vezes. O poema é uma longa homenagem a um companheiro da juventude morto aos trinta anos. Ainda hoje quando recordo este texto oiço os acordes da “Patética” que o poeta cita profusamente neste texto. Seria, porém, “Winds of change” e “Velho Colono”, dois dos mais reveladores poemas deste impressivo “Reino Submarino”, que me acompanhariam, mais frequentemente, ao longo destas quatro décadas de convívio apertado com a poesia de Rui Knopfli.
Rui Knopfli: “Sentado no banco cinzento/ entre as alamedas sombreadas do parque. / Ali sentado só, àquela hora da tardinha, / ele e o tempo. O passado certamente, / que o futuro causa arrepios de inquietação. / Pois se tem o ar de ser e o passado, / os dois ali sentados no banco de cimento. // Há pássaros chilreando no arvoredo, / certamente. E, nas sombras mais densas/ e frescas, namorados que se beijam/ e se acariciam febrilmente. E crianças/ rolando na relva e rindo tontamente. // Em redor há todo o mundo e a vida. / Ali, está ele, ele e o passado, / sentados os dois no banco de frio cimento. / Ele, a sombra e a névoa do olhar. / Ele, a bronquite e o latejar cansado/ das artérias. Em volta os beijos húmidos, / as frescas gargalhadas, tintas de outono/ próximo na folhagem e o tempo. // O tempo que cada qual, a seu modo, / vai aproveitando.”
Citei o poema na íntegra. Aqui está já o grande poeta que se iria revelar, na plenitude, no livro “Mangas Verdes com Sal” (1969), depois de “Máquina de Areia” (1964). Apetecia-me citar na íntegra também o “Winds of change”. Li-o até à exaustão. Há outros poemas extraordinários neste livro. Como “Fim de tarde no café”. Como tantos outros. Não há aqui espaço para os acolher. A segunda obra de Rui Knopfli que eu li foi esse inigualável “Mangas Verdes com Sal”, o livro da sua completude. Tinha um sulfuroso prefácio do Eugénio Lisboa. Recordo-me de poemas e versos que me ficariam para sempre na memória. Do poema “Não obstante”: “nunca escrevi versos que não fossem de amor”. Ou “o meu Paris é Joanesburgo”, do poema “À Paris”. O poema aforístico “Progresso”: “Estamos nus como os gregos na Acrópole/ e o sol que nos mira também os fitou. / Mas fazemos amor de relógio no pulso”. Livro sardónico, como sempre, pungente, dolorido, profundo. Ali se amplia o estro que fala do seu quotidiano, do seu profundo humanismo. Ali está o poeta erudito e, sobretudo, a mestria do seu labor limae. O seu depurado labor oficinal.
Durante anos impressionou-me o poema “Aparição”, li e reli “Hackensack”, que cito no frontispício do “Maputo Blues” e como o título revela é uma referência a Thelonious Monk. Citei abundantemente o poema “Velasquez”: “Só de perto te apercebemos: é de baixo/ que os gigantes te miram”, li e reli “A Descoberta da Rosa”, declamei “Mangas Verdes com Sal”, glosei “Lembranças do futuro”: “só os poetas têm lembranças do futuro”, comovi-me com “Praça Sete de Março”, exultei com “Disparates seus no Índico”, pilhei versos como em “Contrição” ou consignei ao futuro a minha escolha da melhor poesia moçambicana do século XX o título “Nunca Mais é Sábado”.
A mitologia da Ilha como tema central da poesia moçambicana devemo-lo a Rui Knopfli e ao seu roteiro belíssimo sobre a “A Ilha de Próspero” (1972): “Ilha, velha ilha, metal remanchado, / minha paixão adolescente, / que doloridas lembranças do tempo/ em que, do alto do minarete, / Alá – o grande saca! – sorria/ aos tímidos versos bem comportados/ que eu te fazia”. Este livro é notável, uma alquimia perfeita entre texto e imagem, com fotografias belíssimas do poeta e fotógrafo. O livro tem uma origem remota - o poema “Ilha Dourada” -, que vem no seu livro de estreia O País dos Outros.
Rui Knopfli: “A fortaleza mergulha no mar/ os cansados flancos/ e sonha com impossíveis/ naves moiras. /Tudo mais são ruas prisioneiras/ e casas velhas a mirar o tédio. / As gentes calam na / voz/ uma vontade antiga de lágrimas/ e um riquexó de sono/ desce a Travessa da Amizade. / Em pleno dia claro/ vejo-te adormecer na distância, / Ilha de Moçambique, / e faço-te estes versos/ de sal e esquecimento”.
Se “Mangas Verdes com Sal” era, indubitavelmente, o seu alto canto, a plenitude, a maturidade, “O Escriba Acocorado” (1978), publicado depois de o poeta abandonar “a capital da memória”, coagido pelos ventos da História, seria aquele que haveria de me parecer o seu livro mais conseguido. Aliás, tanto este titulo, como “Máquina de Areia”, “A Ilha de Próspero”, ou, mais tarde, “O Corpo de Atena (1984) são poemas únicos em vários cantos.
Rui Knopfli: “Servidor incorruptível da verdade e da memória, / escrevo sentado e obscuro palavras terríveis/ de ignomínia e acusação” – começa assim o poema “Proposição”, que termina: “A História que há-de ler-se é por mim escrita. / Anonimato igual nos cobrirá. A estas palavras não.”. O poema seguinte chama-se “Pátria” e foi glosado por outros tantos poetas, entre os quais Heliodoro Baptista ou Luís Carlos Patraquim. “As árvores chamavam-se casuarina, / eucalipto, chanfuta. Plácidos os rios também/ tinham nomes por que era costume designá-los”.
O poema que mais me impressionou deste livro – “As Imagens Quebradas” – um diálogo intertextual com Eliot: “Uma última vez percorro a cidade no dia / em que começa a minha morte. Reconheço/ estes lugares apesar da mudança e a sua / esquiva familiaridade roça-me as tolhidas/ asas da memória. Aqui escrevi. Naquela // sombra imaginei. Entre uma e outra coisa, / vivi. (...) // Caminho// pelos lugares queridos, sem tristeza, nem mágoa, / altas, condoídas árvores, lagos serenos escorrendo/ de meus olhos, hálito azul da tarde que, por cair, / de sombras vai tranquilizando o horizonte. Só, / meu coração, bate contra a pedra e o silêncio.”
Publicaria antes, como aludi o livro “O Corpo de Atena”, em 1984, no qual recupera um belíssimo poema – “Notas para a regulamentação do discurso próprio”, inicialmente dado a conhecer nos cadernos Caliban, que promoveu com o poeta João Pedro Grabato Dias. Há depois um longo interregno, um ínterim poético que dura treze anos. “O Monhé das Cobras” (1997), a sua derradeira obra, é publicada meses antes do seu falecimento, que ocorre no dia de Natal desse ano.
Rui Knopfli dizia-me, numa remota entrevista, quando lhe perguntei como via a questão da nacionalidade literária, o seguinte: “A nacionalidade literária é aquela que é proclamada pelos livros que nós escrevemos, pela conjuntura cultural, pela inteligência social que os produziram. Os meus livros – mesmo aqueles que eu escrevi desde que saí daqui – o seu referente é sempre, obrigatoriamente, moçambicano”. Nessa mesma conversa, nobilitava Craveirinha: “Ele é o maior de todos nós, com a Noémia ao lado e eu. Honra minha.”
O poeta, que retornaria a Moçambique, numa comovida visita em 1989, não ficou apenas na “exclusividade da memória privada”. Encontrou-se, num jubiloso convívio, com uma nova geração, que o reivindicava. Vivia então em Londres, o seu “exílio doirado”. Haveria só de ir a Portugal para, no final da vida, se entrevistar com os deuses. No poema “As Origens”: “Paro diante do jazigo de família, / Vila Viçosa, Alentejo profundo. Afinal tudo/ principiou aqui. O apelido seria, / puramente como outros, alentejano, / não fora a incursão oportunista// do estrangeiro, que perturbaria o resto, / confundido o futuro e as interpretações.”
Seria despiciendo, nesta homenagem, referir-me, com exaustão, à extensa polêmica sobre a nacionalidade literária e a dificuldade que sempre houve em enquadrar a obra de Rui Knopfli, sobretudo em Portugal. Isso caberia numa outra circunstância, não sendo o escopo desta breve evocação neste dia em que celebramos os seus 90 anos. Regozijo-me, a esta distância, por verificar que há uma geração, muito mais nova que a minha, que o reivindica, cultua e mitifica. (Rui Knopfli: “Chamais-me europeu? Pronto, calo-me. / Mas dentro de mim há savanas de aridez/ e planuras sem fim/ com longos rios langues e sinuosos, / uma fita de fumo vertical, / um negro e uma viola estalando.”)
Quando o descobri, há quarenta anos, estava de certo modo proscrito. O tempo, esse grande escultor, devolveu-o ao nosso convívio. O tempo, que é a matéria primordial da sua fecunda poesia, uma das mais altas expressões líricas deste país. Felizmente, remido: lemo-lo, cultivamo-lo, amamo-lo. Citamo-lo e glosamos a sua obra. Há teses universitárias, há livros evocativos, os poemas circulam, na medida do possível. Esta recidiva acontece apenas dentro da tribo literária? Não importa. Ele está tão esquecido e deslembrado como estão tantos outros poetas. Coisas desta pátria, que é nossa, esta pátria que também é sua. Mesmo quando ele quer, como Fernando Pessoa”: “pátria é só a língua em que me digo”, Rui Knopfli é também, ou sobretudo, poeta moçambicano. Um grande poeta moçambicano.
Rui Knopfli: “Porque eu teimo, / recuso e não alinho. Sou só. / (…) / Não entro na forma, não acerto o passo, / não submeto a dureza agreste do que escrevo / ao sabor da maioria. / Prefiro as minorias. / De alguns. De poucos. De um só se necessário/ for. Tenho esperança porém: um dia / compreendereis o profundo significado da minha / originalidade: I am really the Underground.”
KaMpfumo, 10 de Agosto de 2022
Quando a notícia do Nobel surpreendeu o mundo literário com o nome ínclito do nigeriano Wole Soyinka, em 1986, eu tinha lido “Os Intérpretes”, um dos poucos romances da sua extensa bibliografia, na qual avultavam, sobretudo, obras de dramaturgia e livros de poesia. Não havia nenhum mérito pessoal nessa minha entrevista improvável com a obra deste escritor. Dava-se a circunstância de que um professor de português, José Seifane, de grata memória, praticava, com indulgente generosidade, o acto de emprestar livros e tinha uma breve e suculenta biblioteca de autores africanos.
Foi pela mão do professor Seifane que li o senegalês Sembène Ousmane (“O Harmatão”), o nigeriano Chinua Achebe (“Um Homem Popular”), o queniano Ngugi Wa Thiong`o (“Um Grão de Trigo” e “Pétalas de Sangue”). Li também escritores sul-africanos como Alex La Guma (“País de Pedra” ou “Tempo da Morte Cruel”) ou Alan Paton (“Chora Terra Bem Amada”). Mais tarde haveria de ler o egípcio Naguib Mahfouz, ou os sul-africanos Nadine Gordimer e J.M. Coetzee, outros laureados com o Nobel.
Soyinka acaba de publicar novo e porfiado romance: “Chronicles from the Happiest People on Earth” (2021). Considerou-o, aliás, uma homenagem à Nigéria. Estes tempos e estes problemas (corrupção, por exemplo) que assolam o continente são as suas personagens. Desde 1973, quando deu a conhecer “Season of Anomy”, que não publicava ficção narrativa. “Os Intérpretes” (1965) é considerada a sua magnum opus. Na sua vasta obra, sobressaem títulos como “A Dance of the Forests” (peça encenada em 1960 e, posteriormente, publicada em 1963) pensada para as comemorações da independência do seu país. Neste domínio tem uma vastíssima produção, sendo usualmente considerado o mais importante dramaturgo africano. No território da poesia: “Idanre and Other Poems” (1967), “Poems from the Prison” (1969), que seria reeditado com o título “A Shuttle in the Crypt” (1972), ou “Mandela´s Earth and Other Poems (1988). A editora britânica Methuen publicou-lhe uma antologia com estes três prévios títulos: “Selected Poems”.
A sua biografia regista, com dureza, as suas passagens nas prisões nigerianas e longos períodos de exílio. Há legendários anúncios em que é procurado vivo ou morto pelos regimes ditatoriais da Nigéria. Quando esteve vinte e dois meses preso (entre 1967 e 1969) registou essa experiência em “The Man Died” (1972). É também um exímio ensaísta e um dos mais proeminentes intelectuais africanos. Destaco, neste domínio, duas obras seminais: “Art, Dialogue and Outrage” e “Myth, Literature and the African Word”. Também é um memorialista inexpugnável. “You Must Set Forth at Dawn” (2006) é um volumoso livro de suas memórias.
Num dia de Março do longínquo ano de 1995 fui ao seu encontro, na companhia do Pedro Rosa Mendes, para o entrevistar para o jornal “Público”, onde ambos éramos jornalistas. Ele estava de visita a Lisboa para compromissos literários. Recordo-me sobretudo da sua figura hierática, da sua legendária cabeleira afro, da sua barba aparadíssima e da sua voz poderosíssima. Lembro-me, por aqueles dias, de ouvi-lo dizer o poema “´No´ He Said” (for Nelson Mandela): “In and out of time warp, I am that rock / I the black hole of the sky”. Lembro da sua voz e da sua majestade. Da sua voz que ainda reverbera. E de duas coisas que ele nos disse, entre várias, naquele encontro irrepetível.
A primeira: que os africanos deveriam ter tido coragem de desfazer as fronteiras que eram a herança da Conferência de Berlim e que estavam origem de intermináveis guerras étnicas e fratricidas: “Os políticos traíram África”, di-lo desassombradamente. Escolhemos, aliás, esta frase indomável para título da entrevista. A segunda: “Eu não sou neo-tarzanista”. Era, por conseguinte, contra a ideia de que o homem africano deveria retornar ao tempo místico da tanga e da floresta (palavras minhas) – ao tempo do mito selvagem. Afirmava-se como um homem moderno e não tinha pejo nem se coibia quando reclamava dos avatares da modernidade. Para além disto, não esqueço as suas intrépidas posições sobre as ditaduras africanas, de que era um opositor visceral.
Vi-o, muitos anos depois, num comum voo entre a Cidade do Cabo e Joanesburgo, mas não tive o arrojo suficientemente juvenil de me dirigir a ele. Admirei-o de longe: a sua elegante figura, o seu olhar fixo no que lia, a sua silhueta e o cabelo todo branco como um belo ancião. Africano que é. Estava longe do homem de 52 anos que dera o primeiro Nobel da Literatura à África. O seu indubitável nome esplendia há muito sem equívoco nos lustres literários africanos ou ocidentais, onde actua como professor em diversas universidades. Fiquei empolgado quando o vi e tive o sobressalto de todos os que se entrevistam com os seus ídolos. Mesmo quando a sua devoção é pudica ou acanhada.
Wole Soyinka nasceu em Abeokuta, na Nigéria, a 13 de Julho de 1934. Por vezes, muitas vezes, oiço notícias sobre ele. Sempre o leio com alento de um africano digno, de um intelectual probo, de um modelo exemplar, sempre inspirador, não só pela sua lucidez e coragem, mas também pelo quilate das suas ideias e obras, cujo jaez é indubitavelmente singular e esplendorosamente distinto.
88 anos é uma idade catita para o celebrar!
Cidade do Cabo, 13 de Julho de 2022
“A África que o mundo necessita é um continente capaz de ficar de pé, de andar com seus próprios pés. É uma África consciente do seu próprio passado e capaz de continuar reinvestindo este passado no seu presente e seu futuro.”
Joseph Ki-Zerbo
Joseph Ki-Zerbo, que nasceu a 21 de Junho de 1922, em Toma, no Burkina Faso, há precisamente 100 anos, é, indubitavelmente, o mais importante autor da História de África e um dos mais proeminentes intelectuais africanos. Era lendária a sua verve, a sua transbordante retórica e as suas inesquecíveis alegorias. Mas isso não o afastava do rigor científico no seu mister. Antes pelo contrário. O seu empenhamento político não estorvava a cientificidade dos seus trabalhos, que são fundadores da historiografia africana. Foi um dos primeiros africanos de grande craveira a refutar a ideia de que o continente não tinha história nem cultura.
A sua “Histoire de I´Afrique Noire” (Paris, Hatier, 1972) é um livro cardinal. Este livro, que foi sucessivamente actualizado, teria uma tradução em português em dois volumes: “História da África Negra”. Ki-Zerbo estudou inicialmente em Bamako, no Mali, onde ganhou uma bolsa para frequentar a universidade em Paris, tendo-se formado na Sorbonne com distinção. Nos anos 50 encontra-se de volta ao continente de nascimento, contudo instala-se em Dakar, no Senegal, onde cria o Movimento de Libertação Nacional. Este foi essencial para o apoio dos movimentos libertários da África Ocidental. Tem depois uma longa e brilhante trajectória, que se reparte entre a sua demanda política e a sua curial incursão intelectual.
África tem hoje poucos nomes deste quilate, com um porte intelectual desta envergadura e acuidade, no entanto não nos sabemos rever em figuras como Joseph Ki-Zerbo. Onde estão os nossos pontos cardeais? As nossas universidades parecem mais taludes para tirocínios políticos e menos centros de estudos e de investigação. Não são capazes de abordar cientificamente estes intelectuais ou o seu marcante trabalho. Por isso, não se fala, entre nós, de Joseph Ki-Zerbo. Não se aperceberam os pressurosos intendentes da nossa academia deste centenário? Subscrevemos o anátema da desmemória. Somos contumazes no esquecimento, no olvido, no descaso e no vazio.
No entanto, aqui está um dos esteios do pan-africanismo, um dos homens que conceptualizou primordialmente a independência de África e dos africanos com um modelo de pensamento que se confrontava acirradamente com os preceitos coloniais e colonialistas. A matriz do seu pensamento radicava na necessidade de se observarem os processos históricos (eu diria até ontológicos) endógenos na idealização do desenvolvimento africano. Este espantoso intelectual preceituava, ainda, ou sobretudo, a união dos países e dos povos africanos.
“História da África Negra” aborda a evolução do continente africano desde a pré-história ao século XX. África era até então vista como um continente sem história. Joseph Ki-Zerbo desmentiu essa ominosa lenda num trabalho ciclópico e notável, com rigor científico irrefutável, que nos revela períodos que vão desde o esplendor à decadência de reinos e impérios, aos primeiros contactos com os europeus e a influência destes no devir do continente. Por outro lado, o autor escalpeliza os eventos que ao longo dos séculos dominaram África: os séculos, os conflitos, a pilhagem a que foi exposta, o dissídio dos que não se conformavam com a situação, a emergência das suas grandes figuras emancipadoras, sobretudo os pan-africanistas, o despertar do continente, os movimentos independentistas e, posteriormente, as independências e o seu tempo ulterior.
Joseph Ki-Zerbo, que morreu em Ouagadougou, a 4 de Dezembro de 2006, foi também um animal político obstinado, mas a sua longa e virtuosa vida foi dedicada sobretudo à investigação, à história e à escrita. Também se lhe reconhece um papel decisivo na direcção da “História Geral de África” da UNESCO. Seria distinguido no continente e fora dele, agraciado com muitas láureas e merecedor de insígnias. Por aqui, a despeito do nome na nossa toponímia, ignoramo-lo com a nossa proverbial soberba: incapazes de o estudar, de meditar sobre o que pensou e escreveu - o que poderia ser importante para discernir o presente e prospectar o porvir. Mas nós acreditamos nos prodígios da insciência, tal a nossa presunção. Talvez não nos devamos queixar. Quanto a mim, reputo e exulto africanos como este. Pelo entendimento que estabeleceu, pelo pensamento que estruturou, pela lucidez da sua abordagem, pela sua eloquência, pelo discernimento de África e pelas referências que deixou, pela sua imensa sabedoria, pela erudição e pela ampla e ilustrada cultura, pela sua mestria libertadora. Pelo passado, mas sobretudo pelo presente e futuro de África.
KaMpfumo, 21 de Junho de 2022
Não é incomum, na juventude, termos encontros decisivos. Muitos escritores conheceram, quando debutantes, os seus precursores. Eu cheguei à casa do Poeta José Craveirinha com menos de 20 anos. Tive o privilégio de ser amigo e de conviver com ele e com outros nomes - ia dizer numes e não estaria longe da verdade -, que iluminam e distinguem a literatura moçambicana desde a sua fundação. Aliás, José Saramago, único escritor de língua portuguesa, laureado com o Prémio Nobel, disse-me, um dia, ao ver a cumplicidade que tinha com José Craveirinha, Noémia de Sousa, Rui Nogar, Rui Knopfli, ou Aníbal Aleluia, que eu estava a conviver com os meus antepassados literários.
José Craveirinha era uma grande personagem antes de ser um soberbo Poeta. Tenho pensado ao longo destes anos que ele talvez fosse uma verdadeira figura de romance. Não iludo que merecesse uma empenhada biografia literária e de vida. Uma biografia de grande fôlego. Como somos um país que preza a desmemória ou a amnésia, o desconhecimento ou a desconsideração, reiteramos vacuidades e não nos detemos a estudar e conhecer os nossos grandes intérpretes. Craveirinha foi um grande tradutor do ser moçambicano. Esta minha devoção pelo passado e este culto dos mais velhos resulta, em muito, do meu convívio com este Poeta e Mestre: “Nelson: Procura ser um fiel servo da Memória de todos os tempos para que a tua voz se faça ouvir no teu tempo.”
Também por isso, por essa incumbência, recordo-o com emoção sempre. Ele era, como escreveu no poema “Auto-efígie”: “Irmão sincero dos mais fiéis amigos”. Ouvi-lo era fascinante. Tinha, ou praticava, uma fala pausada, enganosamente hesitante, com aquela sua ironia acerba, falsamente inocente. Era cortante quando abominava. Um sábio, tinha um conhecimento enciclopédico, mas era despretensioso intelectualmente. O seu arcaboiço histórico e cultural era incomensurável. Por isso, não gosto de o ver retratado como folclorista, pese embora se tenha debruçado sobre o folclore moçambicano. Era muito mais do que isso. Um verdadeiro sociólogo da cultura. Um historiador. Um grande conhecedor de Moçambique e das suas idiossincrasias. Cultivava a memória das personagens de uma época que já não existia e que tinha sido a sua ou da sua formação. Falava-me do seu ontem e das figuras desse passado. Era um intrémulo defensor da nossa identidade e da nossa história e memória histórica, longe de todos os maniqueísmos sectários e ideológicos. Tinha as suas birras, as suas zangas, as suas querelas, as suas implicâncias. Mas era um génio e tinha direito a tê-las.
É, indubitavelmente, a figura literária moçambicana mais importante de sempre. Como jornalista defendeu causas, causas nobres. Quando Samora Machel e seus colegas enfermeiros o procuraram, encontraram nele um intrépido defensor das suas lutas. Defendeu-os e denunciou a discriminação que sofriam no hospital. Chegou a ter, por essa razão, o seu posto como redactor no “Notícias” em risco, contudo Malé Vaz, filha do fundador do matutino, foi firme a defendê-lo. O amigo Samora não se esquecerá jamais desse préstimo. Mesmo nos tempos de acirrada intolerância, quando alguns dos seus companheiros foram submetidos a purgas, Craveirinha foi poupado. Rui Nogar e Malangatana cumpriram o opróbrio da reeducação e dos excessos da revolução. Lendo os seus escritos dessa época percebe-se que ele nunca deixou de ser um intelectual crítico, lúcido e arrojado. Perante a arrogância de um dirigente (“Sua Excia”) que antes “se desvertebrava” (grade mestre da ironia, Zé Craveirinha!) para o cumprimentar no Bilene e na companhia do Presidente, ele seria indómito: “É o resultado da irrevogável ausência / do meu amigo Samora.”
Todas as semanas eu ia vê-lo à sua casa da Mafalala. Ficava horas a escutá-lo. Falava baixinho, quase sussurrava. Como nos segredasse o mundo. Muitas vezes ali alcandorados no seu muro, fitando o final da tarde e o rumor que se encaminhava para a fronteira do asfalto, como diria o seu amigo Luandino Vieira. Outras tantas na sua sala e na companhia dos seus pintores electivos. As suas paredes estavam preenchidas de quadros: da Bertina ao Chichorro, do Malangatana a José Júlio, de António Bronze a José Pádua, entre tantos outros. As escadas com esculturas. Por vezes, subia para o seu escritório, num dos quartos, onde se atafulhavam os seus papéis, as fotografias, as suas memórias, as suas musas, os seus duendes, as suas assombrações.
O Zé nascera - num domingo, gostava de o lembrar, por isso era Sonto ou Sontinho - numa casa de madeira e zinco na Estrada do Zixaxa à entrada do Xipamanine. “Eu teu neto Sontinho ou José” escreve em “À Minha Avó”. Do ramo dos Mpfumos. Tem um poema “À Memória do meu Bisavô Pfumo” que diz: “Meu respeitável bisavô Pfumo / não sabia ler nem escrever / mas sabia que a cidade não é urinol”. Toda a sua vivência fora suburbana e eram as personagens do subúrbio que povoam as nossas conversas mansas na pacatez dos dias. Houve um interregno quando foi viver, com o pai e a madrasta que viera de Portugal, na 24 de Julho. Mas nunca deixou de pertencer ao subúrbio. Foi nesse tempo que deixou de falar a língua ronga. Proibiram-no. O pai recusava, no entanto, o epíteto “português”. Considerava-se “algarvio”. “Os algarvios estão mais perto de África, dos árabes, do que da Europa. Eu passei por Lisboa para vir para aqui”. A mãe era negra. “E fica a tua prematura beleza afro-algarvia / quase revelada nesta carta elegia para ti / meu resgatado primeiro extra-português / número UM Craveirinha moçambicano” (“Ao meu belo Pai ex-emigrante”).
O pai de Craveirinha era poeta, não publicou nenhum livro, mas era conhecido e reconhecido na cidade como poeta. Fazia parte dos repentistas. Os que faziam quadras ao desafio. Dizia de cor Camões. O Poeta leu, a partir dos 10 anos, Guerra Junqueiro, Antero do Quental, Victor Hugo ou Émile Zola. Outros autores que eram frequentes em casa: Almeida Garrett, Gil Vicente ou Ramalho Ortigão. Ele e o irmão aprenderam a dizer de cor “Os Lusíadas”.
Quando o pai se reformou, Zé não teve condições de prosseguir com os estudos no liceu. Aprendeu através dos livros e das explicações do irmão. Uma professora, Gracinda do Carmo Silva, dava-lhe aulas pro bono. O pai aprendera inglês sozinho. O irmão ensinou-lhe francês. O seu tio António também é uma figura decisiva na sua vida: “Tristes / flores na mão de minha mulher / e novamente no funeral do Tio António / consagro a tua memória ressuscitando-te / genuíno outra vez no sangue intencionalmente / ex-algarvio do teu irmão / optando como tu, meu Pai.”
A Estrada da Circunvalação separava o mundo do subúrbio e o da cidade branca. Era a linha de fronteira. Craveirinha estudava na Primeiro de Janeiro (ligada à Maçonaria) e os amigos na Paroquial, que era para os mais humildes. Mesmo quando vivia na 24 de Julho não se apartou mundividência dos subúrbios. Quando foi preso, em meados dos anos 60, a PIDE não entendia por que razão um mulato, filho de branco, tinha a predileção pelos amigos pretos. Muito menos percebiam a razão que levava Rui Nogar, branco, a atravessar a Circunvalação e mergulhar no outro lado da fronteira. Estes dois mundos irão enformar a poesia de Craveirinha: “E eis que num espasmo / de harmonia como todas as coisas / palavras rongas e algarvias ganguissam / neste satanhoco papel / e recombinam em poema”.
Escreveu sonetos inicialmente. Ricardo Rangel, amigo de então, que debutara numa casa de fotografia da então Consiglieri Pedroso e fazia uns biscates para o “Notícias” levou o caderno de sonetos para António Rosado, que também era poeta. O jornalista era igualmente desportista e foi, curiosamente, treinador de Zé Craveirinha no Desportivo, mas nunca relacionou o autor daqueles sonetos com o exímio futebolista. Quando o jornalista morreu não se recuperaram mais os versos nem as métricas do jovem poeta. Entretanto, Craveirinha desiste de fazer sonetos e começa a escrever os poemas que o tornariam célebre. Colabora no “Brado Africano”. Ao tempo, a jovem Noémia irrompia com os seus poemas e a sua voz tonitruante.
Lembra-se de ver o poeta Rui de Noronha, de o ver passar todos os dias a uma determinada hora. Lembra-se do seu ar triste. Era uma figura taciturna, melancólica. Mesmo nos ambientes de festa. Morreu aos 34 anos num dia de Natal de 1943. Mais tarde convive com Noémia de Sousa, a sua irmã Carol, que vivia ali perto, depois da família mudar-se da Catembe, a quem dedicará alguns dos seus poemas mais emblemáticos, sobretudo quando esta foi coagida a emigrar – “Dó sustenido por Daíco” é um deles. Também falava de Karel Pott, o primeiro advogado não branco em Moçambique. Contava o impacto que tivera o facto de ele reivindicar a sua identidade africana e fazer gáudio em passear, no seu carro descapotável, a sua mãe negra, vestida de capulana e com tatuagens. Era um desaforo ao regime.
Noémia de Sousa levou-me, anos mais tarde, a conhecer Cassiano Caldas. Fomos visitá-lo à sua casa e ele foi de uma grande gentileza. Os ventos da revolução açoitaram até aquele a quem muito devemos. “Sangue Negro” é dedicado a Cassiano Caldas e a João Mendes. Cassiano foi o indutor ideológico de Craveirinha e da sua geração, ministrou as primeiras aulas políticas, contribuiu para a sua afirmação ideológica, orientou-os. Era a figura tutelar desta geração. A isto acresce o facto de, no mundo suburbano, haver uma plêiade de figuras emblemáticas na afirmação da alteridade. Personagens que pareciam emergir dos romances de Jorge Amado. Daíco antes de todas. Mas também Zagueta, Vicente Langara, Xico Albasini, Brandão, Mundapana ou Fahla-Fahla.
O desaparecido Comoreano, os concursos de dança, mais tarde a distinção da culinária dita indígena que não chegava à cidade branca, o desporto, a Associação Africana, o Munhuanense Azar, o Muhafil Issilamo ou João Albasini. Os concertos de Djambo, João Domingos ou conjunto Harmonia. A afirmação, a reivindicação, não era apenas através da poesia. Aliás, José Craveirinha, Noémia de Sousa, Dolores Lopes e Ricardo Rangel, numa escadaria da Polana, fingindo um piquenique, redigiram um documento, muito antes dos movimentos libertários, a exigir a independência de Moçambique. Foi na época em que escreveu “Poema do futuro cidadão”. Entre a década 40 e 50.
A Casa dos Estudantes do Império publica, à sua revelia, “Chigubo”, em 1964. A PIDE, quando o prende, apresenta-lhe o livro como libelo acusatório. Companheiros de prisão: Rui Nogar, Malangatana Valente e Luís Bernardo Honwana são os nomes mais conhecidos. Armando Pedro Muiuane, seu compadre e mais tarde colega na Imprensa Nacional, é também companheiro de prisão. Companheiro de sempre. Uma das rusgas e consequente prisão ocorre após uma reunião na casa de Muiuane no Xipamanine. Com Honwana troca, nos calabouços, correspondência vária, que graças a guardas que eram infiltradas, não é interceptada pela PIDE. Era importante este contacto para que coincidissem nos depoimentos. Parte desta correspondência ficará à guarda do advogado Carlos Adrião Rodrigues. Em Itália, no entanto, publicam-lhe “Canto a um dio de catrame”, em 1966. Ele só vem a saber mais tarde. José Luís Cabaço, que lá estudava, será quem lhe trará o livro. Estava ele em liberdade condicional.
“Karingana ua Karingana”, provavelmente a sua magnum opus, estava para publicação antes do golpe militar que mudou o regime em Portugal. Craveirinha e Nogar, que redigira o prefácio, queriam arriscar. Mas o editor teve receio. No entanto, dá-se o 25 de Abril e o livro segue livre curso para o prelo. Sem o texto do Nogar, que viria a integrar a segunda edição como posfácio. Quando o livro é dado à estampa, o autor está na Tanzania, na companhia de Samora e da direcção da FRELIMO. Pouco antes, Costa Gomes, que fazia parte da Junta de Salvação Nacional, e que chegaria a ser presidente da República portuguesa, de visita a Moçambique, procurara Craveirinha para o convencer a formar um partido político que dialogasse com as autoridades portuguesas para a transição. Queriam obviar o movimento libertário. O Poeta recusa-se a ir ao encontro desacompanhado e só aceita encontrar-se com o futuro marechal português quando teve a companhia de Malangatana Valente e Rogério Djawana. É intransigente na posição: único partido que tem a legitimidade de assumir o poder só poderia advir da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique). Costa Gomes pede-lhe então que seja portador de uma mensagem das autoridades portuguesas para conversações sobre a transmissão de poder.
“Cela 1”, publicado em 1980, são escritos de prisão ou sobre a prisão. “Poema do alfinete mágico”: “Com um inofensivo alfinete mágico / nós os miseráveis sonhadores moçambicanos / de cerrados maxilares invocamos os desejos / e suspendemos os corações nas janelas / donde a lua e o sol quando entram / entram gradeados.” É o testemunho de uma “vida a injúrias engolidas a seco”. O belíssimo poema “Reflexões no dia dos meus anos”, que poderia ser a epígrafe deste texto, é publicado neste volume: “Faço anos. / Quantos já não interessa. / Por uma questão de glândulas / infalivelmente na barba e nas têmporas / aos poucos e poucos envelheço”. Este livro é o primeiro inédito que edita após à independência.
Entre a edição desta obra e a reedição de “Xigubo” (mudou-lhe a grafia) e “Karingana ua Karingana” avulta a aparição de “Maria”, em 1988. Rui Knopfli aplaude, no prefácio, “o grande poema do amor conjugal”. Maria é personagem central na vida do Poeta. Há poemas belíssimos não só de evocação mas sobretudo de admiração. “Santa / minha esposa Maria de Lurdes / mãe dos meus filhos” (em “Karingana ua Karingana”). “Maria. Salmo Inteiro”: “Minha tão bela esposa Maria / cinquentenária jovem isenta de frívolos aniversários. / Minha mais amada por mim do que as frívolas / raparigas de provocantes fémures desnudos”.
“Maria”, que haveria de ter uma nova edição, é um poema pungente. Belo e pungente. Digo poema porque o conjunto tem esse condão de ser uma espécie de poema único. Tem momentos cintilantes, outros tantos arrebatados. Muitas vezes denuncia a dureza da solidão e o frio da ausência. Mas sempre a beleza na evocação: “Esposa Maria / a cada minha veleidade / sabendo-se nunca preterida. // E com meus defeitos e suas qualidades / compúnhamos o mais incongruente invejado casal perfeito”.
Zé Craveirinha era um homem só. Aliás, proclamava-o. Não posso afirmar que ele amasse a solidão, mas posso dizer que ele era um homem solitário. Sobretudo quando foi vítima do descaso ou hostilizado. Comovia-lhe a lembrança dos outros, mas sabia que não podia partilhar com ninguém o que quer que fosse. Apenas com Maria. Daí esse insulamento ao qual estava mergulhado: “o mais mudo sotaque do último chão”. Isto é de uma beleza dilacerante. Só um poeta eleito é capaz de um verso como este. Encontrei-o muitas vezes nesse estado de prostração e ficava a ouvi-lo numa espécie de solilóquio. Muitas vezes ficávamos em silêncio e assim nos entendíamos.
Quando fui estudar a Portugal, em 90, continuei a vê-lo, sobretudo quando ele ia a Lisboa. Ou nas viagens que fizemos para Londres ou Sevilha na companhia de Rui Nogar, Rui Knopfli, Noémia de Sousa ou Eugénio Lisboa. Acompanhei-o nos dias jubilosos em que recebeu o Prémio Camões. Recordo-me da tristeza e da solidão quando se encontrava só no hotel. O Zé Craveirinha era um homem taciturno. Extremamente elegante no trato, sardónico muitas vezes, mefistofélico quase sempre. Nunca vi alguém melhor do que ele a zombar daqueles que desdenhava. Apoucava-os com cortante sarcasmo. Era o mestre do deboche. Quanto aos amigos, era indefectível.
Craveirinha foi um poeta avaro. Não foi sequer um poeta bissexto. Publicou muito pouco. Um dia pediu-me para eu lhe apresentar uma obra. Fiquei perplexo, aturdido, estupefacto. Era o “Babalaze das Hienas” e foi em 1997. O Mestre está com 75 anos, o discípulo tem 30. O livro é um cortante testemunho sobre a guerra. Eu tentei cumprir a missão o melhor que podia. Estou certo da imperfeição do texto ou da improficiência do meu discurso na ocasião, contudo, não obstante, a minha admiração inequívoca e a minha afeição e estima pelo poeta foram indubitáveis.
Este foi o seu último título de poesia. Muitos dos seus poemas inéditos circulam, no entanto, de mão e mão e são ditos em saraus de poesia. Anabela Adrianopoulos, Calane da Silva, Gulamo Khan, Tomás Viera Mário, entre outros, emprestam as suas vozes à inconfundível dicção do Poeta. Gulamo celebriza as “Saborosas Tanjarinas d´Inhambane”, um poema anti-épico. Mas também ainda reverbera na memória as “Rumbas de violas no Comoreano” ditas por ele: “Ah é bom nascer assim mulato? / Ah nascer negro assim é bom?” Naquele tempo, e digo isto com nostalgia, a palavra ditava o nosso destino. A palavra poética presidia o sonho moçambicano.
Craveirinha é um poeta de belíssimas imagens, de inesperadas imagens, de poderosas imagens. Poeta da insurreição, poeta nunca agrilhoado, poeta solitário, poeta solidário, poeta que canta o seu tempo e os homens do seu tempo, poeta condoído muitas vezes, poeta que vaticina o futuro, poeta que canta os momentos sombrios como os da guerra, poeta do mundo, poeta da boémia intelectual, poeta da língua que esplende, poema do amor, sempre. Como escreveu, em “O Arco e a Lira”, o poeta mexicano e Prémio Nobel Octavio Paz: “voz do povo, língua dos escolhidos, palavra do solitário”.
Os investigadores
em nome da verdade histórica
inventarão virtudes que nunca tive.
E com irretorquíveis teses
irão ao exaustivo pormenor freudiano
de misturar minha vocação pelas raparigas
com a liberdade dos povos oprimidos.
(José Craveirinha)
Hoje passam 100 anos sobre o dia em que nasceu José Craveirinha. A Pátria deu-lhe o préstito da praça e uma ominosa rua. Execráveis ditadores estrangeiros nomeiam largas avenidas. Quase não o lemos, citamo-lo sem o ler. Exilamo-lo na pátria do olvido. Agora o lembramos nestas efemérides, mas acto contínuo virá a nossa amnésia, a nossa desatenção, a nossa negligência e o nosso desprezo vibrar sobre ele e o devir moçambicano com todo o seu esplendor. Quanto a mim, cabia-me hoje este tributo, devolvendo-lhe a honra da láurea que me concedeu com a sua amizade, o seu exemplo e a sua poesia. “Bom têto! Sia-Vuma! Bayete mufana!” – escrevia-me. Aqui fica o meu penhor. Também lhe devo muito, ou quase tudo, do que sou.
Bayete, Zé Craveirinha!
SIA-VUMA!
KaMpfumo, 28 de Maio de 2022
O Gulamo Khan faria hoje, 11 de Maio, 70 anos. Morreu aos 34 anos a 19 de Outubro de 1986. Quando entrei para a redacção da Rádio Moçambique, em 1984, onde debutaria como repórter, o seu nome constava na pauta dos jornalistas, mas ele estava destacado na Presidência, como adido de imprensa. A despeito, por vezes, via-o nos corredores da Rádio. Via-o sempre sorridente, afectuoso, acolhedor. Era uma das mais esplendorosas vozes de Moçambique. Os seus trabalhos como jornalista são documentos históricos. Entrevistas como as que fez a Fany Mpfumo ou Noémia de Sousa são certidões da nossa nacionalidade.
Mais tarde, na AEMO, primeiro, e nos Msahos, que eram memoráveis encontros de poesia no coreto do Tunduru, de que foi um dos fundadores, depois, conhecer-nos-íamos. O seu activismo cultural, não obstante as funções que tinha, era indúctil. O Msaho, a “Gazeta de Artes de Letras”, na vetusta revista TEMPO, com Luís Carlos Patraquim e Calane da Silva, ao tempo em que o Mestre Albino Magaia era director, a promoção da literatura, a Associação dos Escritores, quando Rui Nogar era Secretário Geral, entre outras actividades, fazem parte do seu intrépido activismo cultural.
O Gulamo era um belo tribuno, um exímio declamador. Creio que José Craveirinha, seu amigo, não teve um outro de semelhante quilate a dizer-lhe a poesia. Para além de a dizer, o Gulamo foi responsável por divulgar poemas de Craveirinha que de outro modo seriam desconhecidos ou estariam perdidos. Vivíamos um tempo em que acreditávamos nas palavras e a poesia era o viático das nossas vidas e dos nossos sonhos. Hoje estamos, desfortunadamente, nos antípodas desse tempo.
Num comovido e comovente texto (“Missiva póstuma para o Gulamo”), que serve de prólogo ao livro único (“Moçambicanto”) que se fez publicar, em Maio de 1990, há 32 anos, José Craveirinha, sem se arredar do tom pessoal e da pessoa próxima que o Gulamo era, escreve: “Trágico sarcasmo do Destino é ser eu, precisamente eu, o incumbido para falar de ti, Gulamo na edição do teu livro, o único: tu, Gulamo que, tão jovem, ligado à casa do Zé e da tua mamã Maria como a tratavas, por laços afectivos que te tornavam mais um filho, não escondias o porquê das tuas diligentes buscas e irreverentes “extravios” de quanto papel solto, rascunhos e escritos inéditos enferrujavam nas gavetas do descuidado Zé, correndo o risco fácil de se perderem de vez, o que seria – teu exagero afectuoso – um crime e uma perda. Autor dos “extravios” reclamavas a intenção de ser o fiel depositário que te caberia divulgar no “depois” do descuidado autor.”
O Destino, como lhe grafa Craveirinha, com maiúscula, zombou do “descuidado autor” e seria ele, na companhia do Albino Magaia, Calane da Silva e Júlio Navarro – todos desabrigados deste reino -, que cuidaram de organizar os papéis, encontrar ordem e fazer publicar a poesia de Gulamo Khan, quando este, no infortúnio colectivo que seria Mbuzini, não regressou de uma breve viagem à Mbala, na Zâmbia, onde fora acompanhar o Presidente.
Neste “Moçambicanto” houve por bem incluir uma mensagem da Mãe do Gulamo, Hawa Mulla. Mensagem lancinante esta, que termina dizendo: “Levaste as palavras da tua linda voz contigo, mas connosco ficou para sempre esta tua mensagem amiga.” Não há exagero de progenitora no adjectivo: Gulamo tinha das mais belas vozes que a nossa Rádio teve.
A voz era a extensão da sua personalidade. Leio-lhe, de novo, os poemas, da sua breve produção, reunida neste magro volume, com capa de Chichorro, ilustrações do Malangatana e do próprio Chichorro, e reavivo, na sua dicção, a sua belíssima voz. O livro inicia com o poema que lhe dá o título e é absolutamente encantador:
céleres as águas
zambezeiam pela memória
das almadias do silêncio
nem o zumbido da cigarra
me entontece
nem o troar do tambor
me ensurdece
as vozes que são
sulcos das nossas esperanças
Oh pátria
moçambiquero-te
neste alumbramento
e amar-te
devo-o à carne e ao nervo
deglutidos em revolta.
Poeta com timbre próprio, poeta com dicção própria, poeta com sintaxe própria, pese embora a sua obra tivesse sido um projecto inacabado, que a morte, abrupta, interromperia para sempre. Não sei se há aqui alguma premonição, mas não deixo de notar, nestes versos que cito a seguir, uma outra ironia trágica: “Sento-me na carlinga e fecho os olhos/ cheira a velho este Tupolev/ na penumbra”. A 19 de Outubro de 1986 estavam todos eles também num infausto Tupolev.
Poesia que se arrima indisfarçadamente num ideário, dela temos que assacar a circunstância temporal e histórica na qual é escrita: “Há uma lança lançada em Setembro”. Ou estes versos acutilantes: “assim exilados/ no ventre da Pátria/ lambemos o chão/ e o musgo ressequido”. Poderiam ser, estes últimos versos, sobre os tempos agoirentos de hoje.
Poeta em diálogo com a poesia de Craveirinha também (“Carta para José Craveirinha feita num 42º andar de Nova Iorque”: “Atenção irmãos/ Billy The Kid era um fanfarrão/ nem o whisky lhe aguentava a coragem/ tanta cagufa/ hoje sabemos que o grande chefe índio/ se suicidou com uma poção venenosa” (...) “E Langston Hughes não é parvo nenhum/ quando diz que é belo e que é a América/ Deviam tê-lo deixado na cozinha a/ comer os restos para ter juízo/ e não se meter com brancos// Também não é verdade que Joe Louis/ despenhou aos 2 minutos Max Schmeling/ pondo knock-ou Max Schmeling”).
Há, nisto, nestes versos, um claro diálogo, uma ineludível intertextualidade com o poema “Quando o José pensa na América” de Craveirinha. “E Agora, Zé? Agora, já, todos os membros/ da K. K. Klan sabem/ o que pensamos/ quando pensamos na América” (Gulamo Khan).
José Craveirinha: “E além do mais o José também se lembra que Joe Louis na desforra/ pôs Max Schmeling K. O. logo ao primeiro round/ que Armstrong quando assopra o trompete/ os agudos dão resposta concludente/ às dúvidas sentimentais da Ku-Klux-Klan/ e o retórico par de Botas de Charlot”.
O poema de José Craveirinha é longuíssimo e não caberia aqui todo, mas é um daqueles arroubos que fizeram a sua fortuna como poeta. Nesta “Carta” de Gulamo, eivada de ironia, aliás à boa maneira do Mestre, há ainda versos que esplenderiam à luz dos tempos ulteriores à sua escrita: “Sabes que mais? / É mentira o que dizem de Michael Jackson/ O puto não é negro é branco só que os / racistas”.
Muito haveria a dizer, não fosse esta uma breve nota evocativa, do Gulamo Khan, no dia em que ele faria 70 anos. Releio o livro, perpassam pela minha memória as imagens que guardo dele, lembro-o afectuosamente, recordo-me da última vez que o vi, sentado no banco do Jardim Tunduru, antes de um Msaho; lembro-o, ali, no coreto declamando as ínclitas “Saborosas Tanjarinas d´Inhambane”, do José Craveirinha (numa dedicatória este escreveria: “Homenagem póstuma ao muito Amigo Gulamo que as descobriu e divulgou”); mas sobretudo ainda me empolga a lembrança do Gulamo a dizer o poema “Rumbas de violas no Comoreano” do nosso comum amigo e grande Poeta José Craveirinha.
Que mais posso dizer e que não subscreva o lugar comum? Gulamo Khan foi outro dos nossos grandes intérpretes e hoje está exilado no território do esquecimento. Foi um tradutor do ser moçambicano e dos nossos anseios. Fê-lo com a sua voz quando a palavra exprimia assertivamente o nosso sonho individual e colectivo. Agora que vivemos o refluxo desse tempo e experimentamos a distopia desse encantamento e dessa aspiração comum, o seu nome subscreve o anátema da desatenção, do desapreço e da nossa endémica negligência. A Pátria é fecunda na arte da desmemória. A despeito, a voz de um poeta nunca se deixa obliterar.
“Seremos amor o chão fértil”, escreveu Gulamo Khan num poema de verso único. Este brevíssimo poema poderia ser a súmula da sua vida e do seu destino indubitavelmente poético e do seu imperecível e pungente hino - “Moçambicanto”.
Zagaia forte e aguerrida
adeus malume.
(Gulamo Khan)