Carlos Cardoso foi um jornalista cujo percurso, enquanto profissional, é obra para as novas gerações. As suas lutas, mormente contra depredação do bem público, inspiraram, no passado, e, até hoje, são fonte para quem olha para o jornalismo como fonte para gerar mudança e garantir o bem-estar social. No seu portefólio, contabilizam-se várias frentes, mas, desta vez, é da marcha para a legalização do consumo da cannabis sativa e da luta para salvar a indústria do caju que nos vamos centrar. E, para o efeito, nada melhor que Abdul Carimo Issá, o “Buda”, que viveu, de perto, para contar como tudo aconteceu. Buda é categórico quanto ao desfecho que a empreitada conheceu: ainda era demasiado cedo para o que ele e Carlos Cardoso sonharam à data.
Sem mágoas, Abdul Carimo Issá diz que depois de ver frustrada a pretensão de ver aprovada uma lei que legalizava a produção de cannabis sativa para o consumo, concluíram que estavam a anos-luz para a realidade que país vivia em meados da década 90, pese embora outros países já haviam avançado nesse sentido. Aliás, reconhece que não conseguiram convencer os parlamentares, apesar da enorme campanha que fizeram à boca da sessão que, praticamente, chumbou o propósito que perseguiam. Na altura, Buda era deputado e vice-presidente da Assembleia República.
Sobre o Caju, Buda diz que Carlos Cardoso bateu-se com garra e determinação para que a indústria não afundasse. Conta que Cardoso chegou a preparar-se para entrar em greve de fome contra as políticas do caju, em Moçambique, que na verdade era consequência das imposições do Banco Mundial. Acrescenta que Cardoso, ainda em jeito de protesto contra o que entendia ser destruição da indústria do caju, ponderou montar acampamento no Gabinete do Primeiro-Ministro, realidade que espevitou a elaboração da lei para proibir a exportação da castanha de caju como matéria-prima, um processo em que participaram activamente Kekobad Patel, Sérgio Mondlane e próprio Cardoso.
Encontre, a seguir, excertos da conversa com Abdul Carimo Issá, que nasce a propósito da passagem do 20º aniversário do desaparecimento físico de Carlos Cardoso, uma referência obrigatória no jornalismo moçambicano.
Como conhece Carlos Cardoso e como era a convivência?
“Eu creio que conheci primeiro a esposa de Carlos Cardoso do que o Carlos Cardoso. Conhecia já o Carlos Cardoso, mas não convivia com ele. Praticamente, a minha conivência com ele começa a partir do momento em que começou a viver com a Nina Berg, porque ela dirigia um projecto da Danida de apoio do sistema de administração da justiça em Moçambique, em particular, uma comissão que existia na altura de reforma da lei da Família e mais tarde evoluiu para Unidade Técnica de Reforma Legal. Então, a Nina é que dirigia este projecto e aí estabelecemos relações. Conheci a Nina porque ela veio a Moçambique com mais uma colega para estudar a experiência dos Tribunais Populares e eu era Juiz na altura. Foi nestes encontros que a gente passou a conviver e a Nina ficou em Moçambique e passou a viver com Carlos Cardoso e tornamo-nos amigos nestas circunstâncias, fundamentalmente porque tínhamos valores e princípios comuns. Portanto, eu, Carlos Cardoso, Dr. João Carlos Trindade e Dr. José Norberto Carilho éramos um grupo e convivíamos muito próximos. Era habitual Cardoso passar refeições na minha casa, passar refeição em casa do Carilho, passar refeição em casa do Trindade. A defesa do património público e o combate à corrupção eram valores que a gente cultivava. E quando ele sai do mediaFAX e decide montar o Metical, eu e mais outros fomos as pessoas que ajudamos. Cada um deu um ar condicionado, uma máquina de escrever e montamos o Metical naquela garagem que toda a gente conhecia. E era habitual sempre que eu saía, nessa altura já estava na Assembleia da República (AR), era deputado e vice-presidente, passava para ir apanhar o Carlos Cardoso porque ele não conduzia, não sei porquê. Passava pela minha casa ou pela casa do Trindade, ou seja, estávamos sempre juntos. E, normalmente, ia para lá, juntamente, com Marcelo Mosse, para fechar a redacção. Para ver o editorial daquele dia, sugerir alguma coisa. Era esse o nosso dia-a-dia e naquele momento estavam a acontecer muitas coisas ao mesmo tempo. Havia a fraude no Banco Comercial de Moçambique, apropriação de terras na cidade de Maputo e o Cardoso estava nesse combate”.
Lobby para legalização da Cannabis sativa?
“Eu havia feito um estudo sobre a Cannabis. Eu fiz um estudo sobre a cannabis porque ainda na faculdade tive um professor chamado Geraldes de Carvalho, isto em 1976, que nos deu um trabalho prático em grupo que se resumia no seguinte: um velho camponês lá na sua aldeia sem acesso à comunicação, à rádio e sem a televisão e jornal e o mesmo cultivava a cannabis (vulgo soruma) para o seu consumo pessoal. Ele não sabia que era crime, Quid Juris? E foi mais ou menos nesse sentido. Há um princípio na lei, em que a ignorância não aproveita a ninguém. Você não pode invocar que não sabe. Era um professor interessante. Ele punha algumas questões porque tinha sido professor em Chókwè. Aquilo marcou-me muito e eu como era Juiz e recebia casos de consumo de soruma. Nem era de tráfico. Então, resolvi estudar o problema da soruma, através de um estudo que a União Europeia fez durante 10 anos para demonstrar que, afinal, a soruma não era tão viciante ou aditivo como era o tabaco, o chocolate ou café. Eu resolvi escrever, semanalmente, um artigo com base neste livro que se chamava «Droga e Direito». Fui escrevendo e os artigos saíam no jornal Domingo, uma vez por semana. Por causa disso, esta matéria aproximou-me do Cardoso. Outras matérias já me haviam aproximado do Cardoso, mas esta, ainda mais. Então, iniciamos, os dois, uma campanha para liberalizar o consumo. Não estávamos a falar do tráfico. Estávamos a falar de liberalizar o consumo. As pessoas não podiam ser presas pelo facto de estarem a consumir uma certa quantidade de soruma. As pessoas deveriam poder produzir soruma para o seu consumo. Essa era a ideia central. Mas, acompanhávamos aquilo que estava a acontecer em todo o mundo. Em todo o mundo, a planta da soruma estava a ser usada não só para produzir a substância alucinogénia que é a cannabis, mas, fundamentalmente, estava a ser usada para a indústria de produção de cerveja, batom, pasta dentífrica, blue jeans. Eu e o Cardoso fizemos um estudo e conseguimos trazer, de fora, produtos feitos de cannabis, onde um blue jeans era o dobro de umas normais. A fibra era muito mais apreciada que a de algodão. Então, começamos a desenvolver isso e a defender que Moçambique deveria aproveitar. Cardoso tinha uma informação que eu não tinha. Que na África do Sul, apesar de que não tivesse sido liberalizada, junto à Suazilândia, havia uma área de produção do Governo-sul-africano do Apartheid que produzia e que era exportado para Holanda. Eu, em 1995, comecei a fazer a lei de tráfico de drogas que é a lei que está hoje em vigor, a 3/97. Começo a fazer esta lei e, inclusivamente, estava a trabalhar com DEA (Drug Enforcement Administration) dos EUA. Eu, Cardoso e Mia Couto (escreveu artigos, como biólogo no Metical)”.
“Proponho, na minha lei, que as pessoas não deviam ser punidas por produzir cannabis para o seu consumo. Que se devia permitir, como em alguns países, uma certa quantidade. O problema da cannabis e toda a paranoia que foi criada à volta dela, não foi mais do que uma guerra entre as tabaqueiras contra a cannabis. Se não houvesse esse lobby das tabaqueiras junto da Organização Mundial da Saúde. Se houvesse liberdade para as pessoas produzir a cannabis, tenha a certeza absoluta que esses tabacos que se fumam hoje não se fumavam aqui. Toda a África, toda a Ásia, toda a América Latina estariam a fumar a sua cannabis. Portanto, isto não era mais do que um lobby. Eu fiz o projecto de lei e depositei na AR e no dia do debate, em plenário, fizemos uma mesa muito grande à entrada do órgão com todos esses produtos feitos de cannabis para mostrar as pessoas a utilidade que podia ser feita. Houve pessoas que, na altura, criticaram-me, mas hoje reconhecem que estavam erradas. O grande problema que sinto é que nós estávamos avançados para o contexto que vivíamos. Não tínhamos tido a capacidade para convencer, portanto, de convencer todo aquele grupo de parlamentares sobre os benefícios. Na altura, havia filhos de muitos dirigentes envolvidos na droga e alguns estavam sentados na AR. Então, falar da liberalização da cannabis era um tabu. Esse é o problema pelo qual não vingou a nossa proposta. Mas, há uma coisa que pouca gente sabe, não é proibida a produção da cannabis, em Moçambique, com base nesta lei 3/97. Não é proibido produzir. Nós, na altura, defendíamos, primeiro, que as pessoas não deviam ser punidas por produzir cannabis para o seu auto-consumo, segundo, defendíamos a produção da cannabis para indústria farmacêutica e, terceiro, para indústria de tecidos. As pessoas não estavam preparadas. O contexto era diferente, mas de qualquer das formas, tive o cuidado de pôr na lei que a produção da cannabis para efeitos medicinais não é proibida, mas carece da autorização do Ministro da Saúde, do Interior, da Indústria e Comércio. Está lá na lei. Não foram regulamentadas as condições de segurança em que se deve produzir até hoje. Mas, não há nenhuma proibição na lei para produzir para efeitos medicinais”.
Como é que Dr. Carimo, o Carlos Cardoso e outros que haviam abraçado a causa digeriram o fracasso?
“Eu e o Cardoso fizemos uma introspecção e chegamos à conclusão que estávamos muito avançados para o contexto e que não foi suficiente a nossa campanha de mobilização junto dos parlamentares, de modo a compreenderem a nossa ideia. Não ficamos assim muito incomodados. Eu lembro, numas das intervenções durante o debate, o General (Alberto) Chipande ter dito: «agora compreendo quando vou lá para o planalto (Cabo Delgado) vejo aquelas pessoas tem bicicleta, tem mota, tem rádio afinal são essas coisas que andam a vender» (risos). Ele percebeu que a produção da cannabis organizada e com segurança produz riqueza para o país. E nós temos variedades de cannabis e muito apreciadas até para o consumo. Mesmo que não seja autorizada a produção da cannabis para o consumo que seja para a exportação, assim como você produz insulina para exportação. Mas, era um tabu muito grande este assunto da cannabis”.
Não houve uma espécie de arrependimento depois que a tentativa falhou?
“Não. Eu continuei a fazer a minha luta e, até hoje, continuo, apesar de Cardoso não estar comigo. E tenho um pedido junto do Ministério da Saúde para ser autorizada a produção da cannabis para efeitos medicinais. Portanto, estou a aguardar e já fui chamado duas vezes ao Ministério para dar mais detalhes. Portanto, estou a aguardar que haja uma regularização dos sistemas de segurança para essa produção. Essa foi a luta mais intensa que eu tive com Carlos Cardoso”.
E o Caju?
“Havia um grande debate ao nível da sociedade e o sector empresarial estava dividido. Havia uma CTA que tinha uma posição muito ambígua, mas muito favorável em defesa dos seus associados (comerciantes) muito favorável à exportação do caju como matéria-prima. E havia a associação dos industriais, na altura, dirigida por Kekobad Patel, que defendia a industrialização da castanha de Caju. O debate estava todos os dias no Metical e o Cardoso estava contra as políticas do Banco Mundial (BM), que não eram mais do que uma imposição. Eu próprio recebi o director do Banco Mundial na Assembleia da República e disse-lhe que iria fazer uma lei que proibia a exportação da castanha de caju como matéria-prima e ele, claramente, opôs-se. Eu disse-lhe que iria exercer a iniciativa de lei como deputado. Pouca gente sabe, talvez a única pessoa que saiba seja o Patel, o Cardoso pouco tempo antes de eu fazer a lei, no calor do debate do Caju, tinha estado adoentado e eu nem cheguei a saber. Mas, ele um dia aparece junto a mim, ele sabia que eu era defensor, e diz: «olha fui fazer um check up com a Dra. Paula Perdigão e ela disse-me que estou bem e eu estou a preparar-me para entrar em greve de fome contra a política de caju em Moçambique». Eu disse: Meu Deus do céu. Cardoso vivia intensamente este problema. Achava que estávamos a ser roubados e que a nossa indústria estava a ser destruída e emprego estava a desaparecer. O Cardoso sentia isso. Cardoso dizia que iria entrar em greve e que sentar-se-ia no Gabinete do Primeiro-ministro. Entro em contacto com Patel e falo com Boaventura Mondlane (Secretário-Geral do Sindicato do Caju na altura) e, de seguida, decidi que a melhor coisa era fazer uma lei para proibir a exportação da castanha de caju como matéria-prima. Juntamo-nos no meu gabinete, eu, Carlos Cardoso, Kekobad Patel e Carlos Mondlane e preparamos a lei do caju que está em vigor até hoje. Quando depositamos na AR (Sérgio Vieira também subscreveu) a discussão ficou muito dividida porque havia muitos lobistas no parlamento e defensores da exportação da castanha, inclusivamente, ganhavam comissões com isso. Industriais não havia quase nenhum. Então, foi preciso encontrar um compromisso e não proibir a exportação da castanha, mas criar uma sobretaxa para limitar a exportação da castanha e é assim que esta lei foi feita nesta altura. Transformou-se numa lei onde foi introduzida uma sobretaxa para reduzir aquela apetência para exportar a castanha de caju. Creio que a taxa deve ter começado com 18% na altura. Não é por acaso que ali onde o Cardoso foi assassinado há ali um cajueiro. É pela luta dele que nós plantamos ali um cajueiro”.
Como foi para o Cardoso ver que aquilo pelo que lutavam tinha produzido alguns resultados?
“Queria mais. Mas, ele sentiu que valeu a pena a luta que ele fez. Valeu a pena. Porque sabe, Ilódio, houve uma grande traição nesse processo. Moçambique inicia, em 1991, o processo de privatização do sector empresarial do Estado e muitas dessas fábricas que tinham sido abandonadas tornam-se empresas estatais e os nossos empresários candidataram-se e compraram. E o Banco Mundial, a seguir, faz uma política de liberalização. Foi um golpe. Isto é que magoou mais o Cardoso, e para além de que ele defendia que se devia incorporar mais-valia na castanha e que havia mais benefício para Moçambique com a industrialização da castanha do que propriamente exportando. Ele desmontou todo o lobby que havia no Banco Mundial com especialistas indianos”.
E a convivência nos últimos anos da sua vida?
“Cardoso era um indivíduo muito teimoso. Era uma pessoa de convicções muito fortes e procurava o conhecimento. Se não soubesse de um assunto porque envolvia equações económicas ele procurava a quem soubesse. Quem lhe explicasse o assunto. Se não soubesse algo relacionado com Biologia, ele procurava o Mia Couto. Cardoso até morrer nunca deixou de investigar a morte de Samora Machel. Nunca deixou de investigar a morte de Samora Machel. Cardoso estava em tudo aquilo que dissesse respeito à integridade. Tudo que dissesse respeito à honestidade. Cardoso, para mim, era o Jornalista sem medo, tal como General Sem Medo, e ele não admitia em circunstância nenhuma ter de ficar calado quando a obrigação dele era falar”.
De que momentos marcantes das lutas o Dr. Carimo tem em memória e nos pode contar?
“A luta contra o gangsterismo que havia tomado o Estado. A primeira vez que ouvi que o Estado estava gangsterizado foi com Carlos Cardoso, dois ou três anos antes da sua morte. Cardoso era visionário. A primeira vez que alguém falou do Estado capturado foi Cardoso, mas é verdade que o Marcelo (Mosse) depois devolveu um trabalho com os sul-africanos sobre o Estado Capturado. A luta contra o abuso do bem público, contra a corrupção, a favor da cannabis, a favor do caju, tudo aquilo em que Cardoso acreditava que era benéfico para o país. Ele fazia daquilo uma causa. Uma vez eu estava na AR e Cardoso foi buscar-me lá porque descobriu que estavam a fazer exame na hoje Universidade São Tomás, do secundário, e ele tinha em mãos o exame vendido. Fui tirado da AR para ir falar com o director para dizer está aqui o exame (risos). Cardoso era irreverente. (Ilódio Bata)