Hoje é dia de reflexão. Dia de pensar o que queremos para o nosso futuro e, principalmente para o dos nossos filhos. Já dizia Samora Machel que “as crianças são as flores que nunca murcham”. E é verdade. Há 44 anos, quando Moçambique ficou independente, a par com outros países de expressão portuguesa, muitos de nós éramos essas crianças. Hoje, depois de já termos uma história para contar às nossas crias, somos nós que decidimos. E decidir votar é a melhor opção. É participar numa sociedade que queremos mais justa, mais ecológica e mais transparente.
Lembro-me de uma campanha publicitária, há 10 anos atrás, que incentivava os moçambicanos a irem às urnas. Fazia uma paródia em relação àquilo que chamamos: mais do mesmo. O comer peixe com legumes e estar sempre a reclamar. Essa campanha foi um dos motores que me levou a votar com mais afinco nesse outubro de 2009. Estávamos a viver uma nova era, com o aparecimento de uma terceira força política e a esperança de que tudo ia mudar. Que os partidos se iriam esforçar para um futuro melhor para nós todos. Hoje temos quatro candidatos à presidência. E que mais?
Agora, sem o poder da clarividência, mas com as marcas da experiência, olho para trás e vejo que tudo piorou. Temos um país na banca rota, altos níveis de corrupção e os raptos e a violência agudizaram na Pérola do Índico. Decidiu, quem pode, evacuar as suas crianças para fora do país. E o nosso sonho em 2009?
Tudo bem que agora temos um novo cartão postal, a ponte. Temos mais marcas de cerveja, o pandza juntou-se à política e o tseke ficou na moda. Mas acredito que ninguém queria que o metical desvalorizasse vertiginosamente, que milhares de crianças continuem sem escola, porque Moçambique não é Maputo. Ya. Ninguém queria que inocentes continuem a ser assassinados, porque estão a “incomodar”. Que as fake news “matem” o Azagaia na véspera das eleições, como que um sinal de que temos de andar na linha. Ninguém quer ter medo de se expressar e lutar por um país melhor e viver, aos 40 anos, sem opção.
Por isso, e por tudo mais, vamos votar manas e manos. Vestir a camisola do poder de decisão e contribuir para que o nosso futuro, as crianças, aprendam a cuidar do nosso país e cresçam com sentido de justiça.
Nada de ficar em casa. Lembrem-se como foi há dez anos.
Esta campanha eleitoral mostrou que Moçambique tem espaço para um quarto partido de dimensão nacional. O MDM vai consolidar-se como a terceira força nacional e este é o grande mérito dos Simangos. Depois de derivas de estômago, de desafectos localizados, de tiques despóticos e nuances de nepotismo, Daviz consegue carregar a máquina no dorso da sua férrea ambição, não necessariamente pela Ponta Vermelha, mas pelo acesso às rendas que o negócio da politica proporciona em Moçambique.
Mas o país precisa de uma alternativa à Frelimo e à Renamo. E o MDM já provou que não é. O PODEMOS foi um lapso no tempo e a Nova Democracia uma efêmera proposta tachista do Salomão Muchanga. Há tambem o AMUSI, que decidiu confinar-se em Nampula.
Samora Machel Júnior era a esperança dessa quarta força pois ela deve necessariamente ter origem num certo "breakaway" na Frelimo, tal como o MDM resultou duma certa dissidência na Renamo. Ele se recusou a avançar e muitos eleitores ficaram órfãos de uma proposta política mais moralizante, mais responsável para com o bém público e que, em vez de passeatas com promessas com sexos dos anjos, apresentasse medidas de política comcretas para viabilizar Moçambique, dentro de um marco ideológico de esquerda.
Essa ausência vai certamente explicar a grande taxa de abstenção que prevejo, beliscando a legitimidade dos que forem eleitos. Até quando?
O assassinato bárbaro do activista social Anastâcio Matavel pelas mãos de membros do Grupo de Oprações Especiais confirmou a existência dos famigerados esquadrões da morte no seio das próprias Forças de Defesa e Segurança.
Vai daí que a hierarquia policial decidiu criar uma Comissão de Inquérito para apurar a verdade dos factos. À partida, parece ser essa uma medida louvável mas seria tamanha ingenuidade da minha parte chegar a essa conclusão.
A criação dessa Comissão do Inquérito parece-me problemática. Acho ser crucial questionar a sua composição: todos os integrantes dela são membros da Polícia da República de Moçambique. A pergunta que não cala é como é que a Polícia se pode auto-investigar, sobretudo, porque membros da corporação praticaram um crime hediondo.
Neste sentido, parece-me que uma saída seria ou de se constituír uma Comissão de Inquérito mista ou um Comissão de Inquérito independente. A PRM não tem credibilidade para ser árbitra onde já é jogadora. Até porque há muito que ela é sistematicamente acusada de abrigar esquadrões de morte no seu seio, sem que houvesse uma resposta célere e transparente para abordar as acusações. Se desta vez ela decidiu agir, é provavelmente porque foi apanhada com a mão na botija.
Sendo assim, como é que ela pode ser objectiva, ou melhor, como é que a Polícia pensa que poderá convencer a sociedade moçambicana de que o inquérito será conduzido de forma objectiva? É que se ela já foi acusada de abrigar esquadrões de morte e nunca se pronunciou sobre isso, ou se fê-lo, foi para desmentir as alegações, vai ser difícil convencer os moçambicanos de que fará uma investigação rigorosa e pormenorizada.
A razão disso é que não parece que os assassinos estivessem a agir fora de uma sub-cultura de abuso de autoridade, corrupção e impunidade. Esta não é uma percepção da realidade, mas aparentemente é a própria realidade no seio da Polícia. É verdade que não se pode acusar toda a polícia de corrupta e criminosa, mas os corruptos e criminosos dentro dela têm tanta influência sobre como a sociedade a vê, que a inferência é de que ela é corrupta e criminosa.
Sendo que, para a corporação afastar qualquer suspeita de que o inquérito resultará num encobrimento e impunidade para os mandantes do crime, seja necessário ou adiconarem-se juizes e criminologistas ou criar-se uma totalmente independente da corporação.
A termos uma opção enquanto sociedade, a segunda seria melhor para garantir independência visto que não haveria uma ligação hierárquica entre os investigadores e a Polícia; seria adequada porque teria o potenticial de juntar todas as evidências para determinar quem mais esteve envolvido e quais foram as motivações e sugerir recomendações; também seria transparente porque os procedimentos e a tomada de decisões seriam conhecidas; entre outros. Crucialmente, essa Comissão de Inquérito independente devia ter o poder legal de forçar a corporação a cooperar com a investigação.
Este seria um primeiro passo para se expurgar as maçãs podres da corporação – o ideal é que tal Comissão fosse percurssora de uma instituição independente para investigar os abusos e cultura de impunidade no seio da Polícia. A PRM já teve tempo mais do que o suficiente para se reformar e já é altura de se lhe dar uma ajudinha nesse sentido: precisamos de um organismo independente similar ao Provedor de Justiça, mas com dentes para morder, de modo a que monitorar as actividades da nossa Polícia.
A longo termo, a medida seria benéfica para a própria corporação porque melhoraria os padrões de desempenho dos agentes, levaria a Polícia a agir com maior transparência e accountability. Afinal, a nação quer ver uma PRM mais protectora dos direitos humanos dos cidadãos, mais próxima ao povo, e mais firme e implacável no combate ao crime.
Só uma Polícia que é responsabilizada, respeita e protege os direitos humanos será capaz de construir boas relações com as comunidades, e posicionar-se melhor na prevenção e combate ao crime. Sendo que, os esquadrões de morte não caberiam nessa Polícia.
Conheci Anastácio Matavel num seminário na província de Gaza em Outubro de 2001. Na sala de conferências do munícipio de Xai-Xai ele estava sentado numa das cadeiras da frente. A partida pensei que estivesse diante de um descendente de Ngungunhana (ou mesmo do próprio), o último imperador de Gaza, tal o porte e o jeito de sentar. Também chamou-me atenção - durante as apresentações dos temas e no debate - a sua notável concentração e a exposição das suas dúvidas, questionamentos e comentários. Uma característica, incluindo sentar a frente, que lhe era congénita conforme e desde então fui certificando.
O seminario foi no âmbito de um programa de divulgação de assuntos sobre a dívida externa de Moçambique e do Plano de Acção para a Redução da Pobreza Absoluta (PARPA). Eu fazia parte de uma equipe de activistas do Grupo Moçambicano da Dívida (GMD) que se deslocou à Gaza para orientar um seminário e dai a instalação de um Núcleo Provincial do GMD. Deste núcleo seriam eleitos 03 representantes a fim de participarem - no mês seguinte - num seminário nacional na cidade da Beira, província de Sofala. No ano anterior (2000) o mesmo tipo de seminário tinha decorrido nas outras províncias e que por conta das cheias do mesmo ano não foi possível em Gaza.
O propósito do programa era a disseminação dos resultados positivos da campanha internacional para o cancelamento da dívida externa (Jubileu 2000) e do principal condicionalismo imposto pelos credores - capitaneados pelo Banco Mundial - aos países beneficiários do alívio reforçado da dívida, os ditos países pobres e altamente endividados e que incluía Moçambique na lista. Estes países deviam possuir uma estratégia de redução da pobreza (o nosso PARPA) de médio prazo (5 anos) e que contasse com a participação da sociedade civil na sua elaboração, implementação, monitoria e avaliação. Um condicionalismo que a sociedade civil recebeu com simpatia, pois constituía uma oportunidade efectiva para participar e influenciar o rumo dos processos e políticas de governação em Moçambique.
Na altura e era estratégico que depois de apresentado o tema era recolhido o feedback e só depois do intervalo é que se debruçava sobre os dados colhidos. Assim e durante o “lobby” do intervalo, dava tempo para esfriar os ânimos dos mais críticos e até dos hostis com uma dose de empatia, fora a do frango do almoço. E nesse dia, no intervalo do almoço, sentei-me com o Anastácio Matavel. Foi o nosso primeiro encontro de tantos que se seguiram.
Em Novembro de 2001 voltaria a ver o meu amigo Matavel no evento da Beira. No encontro nacional em seguimento das sessões provinciais de divulgação. De todas as províncias participaram representantes e o encontro resultou na consolidação da implantação dos Núcleos Provinciais do GMD e da estratégia nacional de participação da sociedade civil nos processos de governação, sendo o PARPA a porta de entrada.
Desse evento retenho um momento que aos olhos de hoje classifico de grande alcance estratégico e que teve influência significativa no trabalho que a sociedade civil moçambicana viria a desenvolver. No primeiro dia, depois da apresentação sobre o PARPA - na verdade sobre o que devia ser um PRSP (Poverty Reduction Estrategy Paper), na linguagem do Banco Mundial - a sessão termina com a pergunta: de onde começar para monitorar o PARPA?
Uma vez que a participação na elaboração do PRSP/PARPA não seria possível pois o documento já havia sido elaborado e submetido ao Banco Mundial no âmbito do alívio da dívida, a leitura foi de que a participação não se esgotava no processo de elaboração. Aliás, um dos requisitos de um PRSP/PARPA era de que fosse um documento rolante e dinâmico o que abria espaço para novos “inputs” no seu processo de implementação.
Na noite desse dia e porque teria que apresentar no dia seguinte a proposta da estratégia do GMD para a participação em todas as fases do PRSP/PARPA compulsei um dos documentos do Governo e nele estava escrito que para a implementação e monitoria do PRSP/PARPA não se produziria nenhum documento adicional e que para o efeito seriam usados os documentos operacionais anuais do Governo: o Orçamento do Estado (e o seu relatório anual de execução) e o Plano Economico e Social (e o respectivo balanço anual). Adicionei este item na apresentação da estratégia do GMD e pouco antes de terminar uma mão já estava no ar: era o suspeito do costume, Anastácio Matavel.
Em poucas palavras e no seu tom de imperador, Matavel disse que doravante tudo passava por nos concentrar nos documentos anuais de governação e de que urgia conhecer profundamente tais documentos. No final da sua intervenção foi ovacionado em cadeia nacional. Foi algo como o primeiro tiro para o início efectivo da participação da sociedade civil na monitoria da governação. Um momento histórico que recorda um outro: o do tiro de Alberto Chipande que deu inicio a luta de libertação nacional.
E foi do tiro de Matavel a gênese de um programa nacional e ambicioso de divulgação e formação rumo a monitoria anual do PARPA 2001-2005 (PARPA I) e tendo como horizonte a participação efectiva da sociedade civil na sua revisão e elaboração do que seria o PARPA II (2006-2009) em 2005. E neste exercício e outros da sociedade civil que se seguiram contou com a mão crítica e a sabedoria de Anastácio Matavel, em particular no comando da província de Gaza, sendo o fundador e o impulsionador-mor da cidadania nesta província.
Na passada segunda-feira, dia 07 de Outubro, volvidos 18 anos do nosso primeiros encontro e por coincidência na hora do almoço e na companhia de um amigo, recebo uma chamada que me informa que o Anastácio Matevel foi baleado por volta das 11 horas na cidade de Xai-Xai e que veio a perder a vida duas horas depois no Hospital Provincial. Eu ainda permanecia em linha e o amigo que estava comigo – depois de “googlar” sobre o baleamento de Anastácio Matavele – mostrou-me o resultado: era de facto Anastácio Matavel. O “Parpa” como carinhosamente nos tratávamos em homenagem ao nosso primeiro encontro.
Da última vez que falei com o amigo Anastácio Matevel foi no mês de Junho passado. Liguei para ele depois de acompanhar uma notícia televisiva sobre assuntos internos de funcionamento do FONGA, o Fórum de ONGs de Gaza que ele liderava. Do outro lado da linha o habitual “Viva Parpa”. E porque ele sabia a razão da minha ligação tratou de dizer que tudo estava a funcionar dentro da normalidade, tendo até citado algumas actividades em curso. Era o Matavel no seu melhor.
Na despedida ele disse e repetiu que os anos de combate cívico tornara-o resiliente a intempéries internas e externas. Infelizmente a sua resiliência não cobria a resistência a uma tempestade de balas. E de balas perdemos o Imperador (da cidadania) de Gaza e um activista de dimensão nacional e além-fronteiras.
Saravá, Imperador Anastácio Matavel!
Buda pôs de castigo dois Monges que haviam cometido uma infracção. O castigo era que os dois Monges fizessem ioga durante todo o dia. Passadas algumas horas de meditação, os dois Monges tiveram vontade de fumar. Decidiram, então, pedir o consentimento do Buda que estava num cantinho do templo fumando o seu cachimbo de bamboo.
Decidiram ir um de cada vez. O primeiro chegou ao Buda e disse: Buda, posso meditar enquanto fumo um cigarro? A resposta foi negativa. Então, foi o segundo e disse: Buda, posso fumar um cigarro enquanto medito? O Buda disse que sim e ofereceu-lhe um dos seus cigarros.
Vendo a sorte do seu colega, o Monge que não foi autorizado a fumar foi ao Buda reclamar do seu azar. Foi daí que o Buda disse: cada pergunta tem a resposta que merece. Fumar enquanto medita é diferente de meditar enquanto fuma, assim como José Maria é diferente de Maria José.
Isto vem a propósito do comunicado do Comando Geral da Polícia em relação ao envolvimento dos seus Agentes no assassinato do respeitado Anastácio Matavele, Delegado do FONGA e Coordenador da SALA DA PAZ na província de Gaza, ocorrido na passada segunda-feira. Na verdade, o comunicado não está claro se o envolvimento dos quatro Agentes da Polícia foi um mero acaso ou foi um trabalho de rotina normal. Ou seja, não ficou claro se aquela emboscada era uma bolada dos Agentes ou era uma missão de serviço normal. Isto é, ainda não percebemos se matar pessoas inocentes é um "part-taimi" dos Agentes ou é o seu trabalho diário normal. Para ser mais directo, os assassinos são Agentes da Polícia ou os Agentes da Polícia são assassinos?
Parece complicado, mas não é. Uma coisa é descobrir que os assassinos do professor Matavele são Agentes da Polícia da República de Moçambique e outra, bem diferente, é revelar que, afinal de contas, os Agentes da Polícia da República de Moçambique são assassinos. Uma coisa é um Agente meter-se no crime por mero circunstancialismo da circunstância ou mero acidente e outra é um assassino meter-se na corporação policial de forma profissional, reconhecida pelo Estado e disfarçado em Agente.
Fiz-me entender? Um assassino que é Agente e um Agente que é assassino não é a mesma coisa. Um assassino Polícia é muito diferente de um Polícia assassino. Uma coisa é um Polícia ser contratado para ser assassino e outra, bem diferente, é um assassino ser contratado para ser Polícia. Assassinos na corporação e corporação de assassinos são coisas bem diferentes.
Faltou este esclarecimento no comunicado. Não ficou claro. Aguardemos que o Comandante em Chefe faça esta 'esclaração'.
- Co'licença!
- Não levas o guarda-chuva?
- Para quê!
Lá fora já se começam a ouvir as primeiras notas daquilo que daqui a pouco pode vir a ser o descer da música da chuva. Há um prenúncio. De longe os trovões ribombam, lembrando enormes tambores metálicos vazios rolando por sobre o asfalto, empurrados pelos operários exaltados por Samora Machel.
- Viva a classe operário-camponesa!
- Vivaaaaaaaa!
Os relâmpagos são o sinal do maestro, e logo a seguir entra em acção a orquestra. Sustentada nos trovões. É bela esta canção. Indepedentemente da tragédia que pode vir depois de todas as claves. Mas enquanto não vem o dilúvio, deixem-me dançar por dentro este rugido de Deus.
O céu está negro. Enclausurado em si mesmo. De quando em quando rasgado em longas fendas pelos raios que depois caem por entre os coqueiros que também dançam como eu, no palco do vento, sem perceberem que toda aquela exuberância pode vir cá abaixo, em derrocada. Eu também, posso sucumbir aqui mesmo. Como todos aqueles que não obedeceram ao Noa. Mas eu quero sair.
- Amor, leva o guarda-chuva!
Sou relutante. Já aconteceram muitas vezes estes sinais, em dias sem memória, e nenhuma gota de chuva caíu. Hoje também pode-se repetir isso. E seria uma grande maçada andar com esse acessório num dia sem chuva. Posso parecer um maluco. Não, eu não levo o guarda-chuva. Não vai chover!
Por causa da baixa temperatura (22 graus de máxima e 15 de mínima em Inhambane), visto uma gabardina de ganga, forrada por dentro. Na cabeça trago um chapéu, não propriamente à Tomaz Salomão, mas provavelmente à Pablo Neruda, ou à um italiano qualquer da máfia siciliana. Meus pés estão enfiados confortavelmente em duas sapatilhas de marca, que ainda matêm o ritmo. Tudo isso adquirido nas xicalamidade, e a sensação que tenho, vestido assim, é de leveza.
Dou um beijo à minha companheira, que traz um guarda-chuva na mão, insistIndo, e eu volto a recusar amavelmente.
- Não se preocupe, amor, não vai chover.
Voltei a beijá-la, e desta vez não resisti ao impulso de abraçá-la profundamente. Ela também abraçou-me profundamente, no mesmo instante em que trovejava fortemente, agora muito perto de nós, por cima da nossa casa. Senti o amor verdadeiro que vem da parte dela. Dado a um sabujo que sou, que não aceita o protector que vem do carinho de uma mulher mansa.
Largo suavemente o corpo quente de uma criatura cândida, e sinto que ela deseja ainda manter-me no seus braços. Mas eu tenho que ir. Saio sem olhar uma única vez para trás. Meto as mãos nos bolsos do casaco e recebo em retorno uma imensa paz de espírito. Caminho despreocupado. Nem os relâmpagos, nem os trovões me impedem de andar. Livre. Nem o céu negro, que não me assusta, mesmo sabendo que posso ser executado pelo mínimo sopro.
Passo pela licheira da Mafurreira e vejo um homem na gandaia, também desinteressado como eu. Quer lá saber dos relâmpagos e dos trovões! Mesmo que chova, qual é o problema? Deixa chover. A chuva não vem de Deus? E eu, não venho de Deus? Então, eu e a chuva somos irmãos do mesmo sangue. Vamos nos abraçar.
Não passam cinco minutos desde que saí de casa e lá está a descarga. Forte. O céu negro liberta em catadupa todo aquele vapor cumulado. Sou apanhado em cheio. Nem para trás, nem para frente. E em menos de trinta segundos já estou ensopado. Danado. E não me resta mais nada senão voltar para casa, onde a minha mulher, vendo-me entrar no quintal como um pintainho por demais molhado, vem a correr ao meu encontro, sem o guarda-chuva. Abraçou-me, ali mesmo, debaixo das fortes bátegas, e disse-me assim, és maluco, meu amor!