É normal pensar que já que uma vez que a ciência produz conhecimento todo o ramo da ciência necessariamente se define pela coisa sobre a qual ele produz conhecimento. Nessa ordem de ideias, a sociologia seria a produção de conhecimento sobre a sociedade. É assim que os sociólogos com falta de tempo – ou imaginação – para explicarem o que fazem descrevem a sua disciplina para os leigos. Mas não é bem assim. Para além de que essa definição seria circular – a sociologia é o estudo das coisas da sociologia... – ela retira à disciplina o mérito de ter tornado visível, através de palavras, algo imanente e que por isso resiste à visibilização. Sociedade não é uma coisa que se pegue com as mãos ou que se sinta duma ou doutra forma. Sociedade é um exercício de imaginação ao qual nos entregamos todos os dias sem disso nos darmos conta, mas sem o qual a nossa existência seria ontologicamente difícil. É uma ficção real.
Quando instituições como o mercado, a política, o judiciário, religião, etc. funcionam de forma estável – como é o caso em países que podemos chamar de “desenvolvidos” – a realidade dessa ficção torna-se mais forte e, curiosamente, permite que as pessoas convivam melhor com essa coisa imanente que se furta à visibilização. Onde as coisas não são assim, a realidade da ficção é mais ténue e, curiosamente, leva as pessoas a investirem mais numa ideia de sociedade concreta que não é o caso. Em Moz, por exemplo, o pressuposto de que a sociedade é algo bem concreto é forte e tem nos privado do recurso à imaginação tão necessária à recuperação da certeza ontológica que precisamos de ter para agirmos com maior segurança dando as coisas por adquirido. Em contextos como os nossos – peço desculpas pela imodéstia – precisamos da sociologia. Precisamos dela não para definir a sociedade, mas sim para a produzir. Sim, a sociologia é que “produz” a sociedade, ela não a estuda.
Há um homem que “produziu” a sociedade moçambicana. Carlos Serra, o primeiro e, se não estiver mal informado, único catedrático de sociologia no País. Devemos a ele a sociedade moçambicana. Ele produziu a sociedade na sua “oficina de sociologia” no Centro de Estudos Africanos como parte duma agenda intelectual alicerçada na descrição minuciosa e aturada daquilo que ele chamou de “crenças anómicas de massas”. Não é possível entender o País que somos sem prestar atenção à maneira criativa como nos apoiamos em crenças, não importa que crença, para constituirmos relações entre nós, incluindo e excluíndo. Parece um espectáculo improvisado em que o director artístico apenas diz algo como “ok, vocês foram enganados por um indivíduo mau, reajam” e logo aí cada um de nós se posiciona, assume o seu papel ao ponto de com ele se confundir e em tudo o que faz ou diz vai construíndo uma teia de relações que se concretiza na reaçcão dos outros. A verdade, a ética ou a moral não são os alicerces dessa teia, pelo menos não no sentido em que eles seriam anteriores à acção, mas sim coisas negociadas no momento pelos intervenientes.
Carlos Serra começou por articular isto em torno da figura de Samora Machel na base do fenómeno ao qual ele deu o nome de “Samorismo”. Prosseguiu com as igrejas pentecostais, os linchamentos, a cólera e os raptos de menores. O pressuposto teórico desta etnografia do quotidiano não foi apenas o prazer de descrever as coisas, mas sim de encontrar um ponto de articulação daquilo que faz de nós moçambicanos e, portanto, diferentes de quem não é. É uma agenda intelectual sem igual em muitos outros países, o que faz com que o tipo de sociologia que Carlos Serra faz seja muito mais do que a simples reprodução e imitação do que os outros lá nas Europas fazem para ser, na verdade, um momento fundador. Há algo de “pós-colonial” nisso, um pós-colonialismo com discernimento e saudável, pois ele não proclama apenas servindo-se dos mesmos recursos retóricos usados pelo “colonial”, no processo homogenizando a Europa e “sua” epistemologia. Ele faz uma sociologia de raiz. Temos sorte, nós os moçambicanos, sobretudo nós os sociólogos, porque temos a oportunidade de nos referirmos a uma sociologia concreta, de nos inspirarmos nela para continuarmos a “produzir” Moçambique. O nome da sociologia moçambicana é Carlos Serra, mas quem a quer conhecer de verdade tem que ler para além das entrelinhas e ter o arrojo de descer às notas de rodapé para onde ele sempre convida os seus leitores a apreciarem como ele raciocina.
Como sociólogo devo muito a ele e como sociólogo moçambicano muito mais ainda. Regressei ao convívio intelectual da sociedade que a sua sociologia produziu pelas mãos de Carlos Serra que nos finais dos anos noventa me convidou a participar num dos ciclos de conferências que ele organizava e que tanto estímulo deu à reflexão académica em ciências sociais na altura. Conhecemo-nos por email debatendo os seus escritos. A sua humildade intelectual formulou o convinte que, mais tarde, me abriu as portas da academia moçambicana – também com o amparo amigo de Severino Ngoenha – e me deu a oportunidade de também contribuir para a formação dum pensamento sociológico moçambicano. O nosso contacto foi forte e intenso durante vários anos de carinho e respeito, mas foi também vítima das redes sociais, afastamo-nos um do outro e – devo confessar a minha vergonha – eu nunca tive a coragem de esclarecer os mal-entendimentos e dizer a ele que há um certo sentido em que a sua agenda intelectual tem sido uma forte fonte de inspiração para mim. Esta é uma maneira de fazer isso.
Quando penso nos desafios da sociologia em Moçambique não o consigo fazer sem articular com a urgência de continuar a pensar o fenómeno das “crenças anómicas de massas”, pois é nele onde eu julgo se esconder o logaritmo que nos permite entender melhor a nossa sociedade. Cabo Delgado, paz definitiva, dívidas ocultas, profetas, “mazameras”, “meios extra-legais”, “trabalho e golfe”, “100 dias”, etc. eu duvido que um sociólogo de verdade possa entender estas coisas todas sem começar primeiro por entender tudo o que há por entender no objecto conceitual que Carlos Serra, bom sociólogo que é, inventou. Moçambique é isso aí e, por isso, espero que os sociólogos moçambicanos, sobretudo os mais jovens, se entreguem à grande tarefa de se juntarem a ele e continuar a construir este edifício cujos alicerces ele colocou.
Nem todos os nossos heróis vão àquela cripta fria quando chega o dia. Alguns, se calhar os mais importantes porque alimentam a nossa mente, estão escondidos em notas de rodapé, algures no Centro de Estudos Africanos ou num apartamento qualquer por aí. Precisam de saber em vida que são herois".
*Este foi escrito e publicado a 20 de Fevereiro, um mês antes da morte de Carlos Serra. Uma derradeira homenagem em vida.
O título é a propósito da “Carta aberta ao Senhor COVID-19” que a escrevi na semana passada. Pelos vistos, o Sr. COVID-19, o Vidinho, como o trato na carta, é igualzinho a uma riquíssima característica da Pérola do Índico, quiçá a do leitor: detém o péssimo hábito de não ouvir instruções ou o conselho de outros. E com o Vidinho entre nós, sem convite, o que está à mão, como prevenção - fora a lavagem - é permanecer imóvel no seu imóvel. Algo que não se está a levar a sério por estas bandas da varanda do Índico.
E por falar em banda, vêem-me à memória a malta de infância da zona e das brincadeiras ou jogos desse tempo. E uma vez que o Vidinho é natural da China, quis a coincidência que a prevenção – ficar no seu imóvel – lembrasse uma das brincadeiras de infância cuja origem é chinesa, que o obriga a ficar imóvel. Estou a falar do jogo “um, dois, três, macaquinho chinês”. Quem não se lembre – e pelo que se assisti, está todo o mundo com uma catedrática amnésia - que “google”.
Contudo, em respeito a urgência sanitária nacional e mundial, vai - à título de puxão de orelha - um trecho dos benefícios desse jogo infantil: “(O jogo) trabalha de forma divertida o conceito de respeitar as regras e da importância de as cumprir”. Certamente, uma boa e recomendável brincadeira didáctica para os tempos difíceis que correm e que se seguem
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Em caso de movimento contrário, não sobrará uma outra alternativa se não o outro jogo infantil - cuja origem possa ser portuguesa, fincando o pé no tom - de nome “Lá vai o alho”. Neste jogo, um grupo de meninos - denominados burros – fica em fila e curvados com a cabeça em direcção a uma parede ou árvore. O outro grupo, e um de cada vez, em corrida, pulam e aterram, o mais distante possível, nas costas de um dos curvados. A corrida e o salto são acompanhados pelo grito de guerra “Lá vai o alho”. E o que acontece no desenrolar do jogo?
Depois do salto de todos, o grupo curvado (o país) terá que suportar – às guerrinhas como na tourada - o peso do outro grupo, o de cima ( o Vidinho). Por um lado, o país a tentar sacudir o Vidinho e este, por outro lado, envidando esforços para se manter firme. A briga termina depois que se conte até 10, na verdade, 10 fatais segundos. Perde o jogo quem não cumpre as regras ou quando a equipe curvada, o país/os burros, não consiga aguentar a equipa de cima, os que (as)saltam/o Vidinho, e vice-versa.
A minha memória (e trágica), sobre as vezes em que tomei parte do “Lá vai o alho”, assevera que os curvados nem sempre respeitam as regras e muito menos aguentam o peso dos que saltam e se acomodam nas suas costas. Das raras vezes em que foi o contrário - aguentar o peso - os curvados mal se aguentavam para a troca de posição. E assim, fica o recado: Fique em casa ou “Lá vai o Vidinho”!
Fernando Manuel, cronista moçambicano vivendo nos cumes da paródia, dizia-me nos seus devaneios, estimulados pela cegueira, que “agora vivo de sons”, e a partir do dia que ouvi isso, ganhei outros pensamentos. Foi uma facada no peito, e jamais me cansarei de repetir esta crueldade sem fim à vista. É como se eu fosse ele, impedido da liberdade, depois de todas as cores contempladas numa vida ritmada ao compasso das palavras, muitas delas buriladas no burburinho dos bares, onde o crâneo dilatava e logo a seguir esvaziava-se na língua.
Eu vivo do silêncio, como se a minha respiração fosse o contraponto do Fernando. Desdenho as ruas, as praças, os delírios dos campos de futebol, a saga dos cobradores de “chapa”. Rompi os tratados com as sinagogas, e agora o meu mundo circunscreve-se à mastigação dos livros que aprendi a ler em momentos de pura levitação. Sou a própria fragilidade, pois já nada me inspira neste tédio que me atordoa.
Agora estou aqui, boiando sem capacidade de orientação. Sem leme. Perseguindo-me nos caminhos atrofiados que eu próprio inventei, para gáudio do diabo. Levo nas mãos trémulas as alfazemas trazidas da Etiópia. Rumino na solidão do meu quarto, nas manhãs e tardes e noites, essas canções que o tempo ensinou-me a ouvir em dias intermináveis de pândega, e muitas outras que eu escutava e tocava, recolhido nas cabines de locução de Rádio onde me sentia, na minha ilusão, o arauto da juventude, e tudo isso faz-me bem lembrar. É isso que fazia bater meu coração.
Hoje estou sentado na varanda, pensando na minha empregada que não veio, uma mulher rara, leve de tal forma que mete medo. Ela na verdade é a minha fortaleza, uma muralha que entretanto pode entrar em derrocada por causa das minhas eventuais palavras desprovidas de sabedoria. E como alguém já me disse que o silêncio é uma das manifestações da sabedoria, melhor é eu continuar assim, como actor de cinema mudo. Em respeito à esta grandiosidade.
Quando ela está aqui, a minha casa, toda ela, é uma harpa. Khudzi move-se em todos os cantos dos meus modestos aposentos, como as mãos que dominam esse instrumento Divino. A cozinha ganha odores de poesia. A minha casa brilha na sua pobreza. E a vida ressurge na plenitude. Mas ela hoje não veio. Há um vazio. É como se eu próprio não existisse. O silêncio que venero perde sentido. Nem o chilrear dos pássaros compensa. Nem as boas lembranças de quando eu estava no auge. Nem nada. Khudzi é o alambique do meu espírito. Embebeda-me. E quando estou bêbado de Khudzi, esqueço tudo.
O PM Carlos Agostinho do Rosário mais o Ministro da Saúde, Armindo Tiago, disseram hoje aos doadores que Moçambique precisa de 700 milhões de USD para prevenir e combater o Covid 19.
Bastou ser confirmado 1 caso de Covid 19, o governo já está de mãos estendidas pedindo 700 milhões de USD?
Será que vamos ter uma crise assim drástica? Como é que chegaram a essa cifra? Na semana passada, a Saúde falava de um plano de contingência de 23 milhões de USD, essencialmente para medicamentos e material de proteção para os trabalhadores do sector. Curiosamente, esse valor quase coincide com os 20 milhões de USD que a Saúde deve a fornecedores diversos, que estão agora relutantes em fornecer máscaras, luvas e dispensadores de álcool e gel, até que a dívida seja paga.
Hoje, no pedido de esmola, Adriano Maleiane disse que dos 700 milhões de USD, 90 seriam para um tal pacote económico mas ele quer que esse dinheiro seja dado na forma de apoio orçamental. Apoio orçamental? Mas o que é que mudou em termos de transparência na gestão das finanças públicas?
Filimone Meigos e Samito Machel partilham suas vivências em auto-isolamento devido ao Covid 19. Gostei do que li. O Filimone reflete sobre o existencialismo sartreano, sem falar de Sartre, dos temores da morte e da teatralidade da vida. Disseca o pânico geral. Filosofa sobre o sentido da vida no contexto do Novo Corona. Ele conversa com o Elisio, escrevendo para todos nós.
Samora Machel é mais intimista mas também pedagógico sobre o que significa o auto-isolamento, o tédio necessário em face de uma hipótese cruel: o receio da infecção e do contágio de quem amamos. É como que uma romaria de desamor para proteger o amor. Ele conversa com todos nós, amando sua família.
Adorei seus testemunhos. O exemplo do poeta e seus devaneios de antropologia e sociologia e a exposição de Samora e seu tom de contributo cívico, em tempos de politica errática.