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sexta-feira, 08 dezembro 2023 09:46

Um panegírico ao Daniel Cuambe

Escrever várias histórias sobre o mesmo homem, jamais será redundante, e as mesmas histórias podem ser contadas de formas diferentes até que não se atinja a exaustão. É como ir ao rio e ver na ilusão do sentimento e da óptica, as mesmas águas que nos vão banhar o corpo e deixarem-nos frescos. Todos os dias. Então, Daniel Cuambe era isso, como o rio permanente. Que nunca seca, nem que venham as estiagens mais devastadoras.

 

Na Redacção do jornal Notícias onde o conheci melhor, o mano Dany, como era tratado pelos colegas e pessoas mais próximas, destacava-se pela predisposição de articular a palavra sem fim, suportada por um sentido de humor contagiante. Era homem de olhar discreto, mas muito atento. E esse detalhe avisava-nos da presença de um ser inteligente, preparado para todos os momentos e todas adversidades.

 

Mano Dany nunca escondeu a sua paixão pelo jornalismo. Era nesse campo onde a sua vida encontrava suporte e fazia sentido, actuando como um grande jogador de reagueby, sempre a correr com a bola nas mãos ao encontro da luz. O futuro para ele não tinha importância, era preciso viver como o tecelão das redes de emalhar, que trabalha com entusiamo todos os dias sem cansar. É por isso que a euforia do mano Dany não acabava.

 

Há momentos, muitos momentos em que o mano Dany dispensava as palavras, que adorava libertá-las como aos pássaros, para deixar que seja a gargalhada sonora a troar, impregnando o ambiente com alegria inefável. Era um actor seguro. Sabia que as pessoas esperam sempre dele algum gesto, talvez uma frase improvisada, porém suficientemente temperada, e ele sabia disso. Mas nunca teve medo que alguém o aguardasse, pois confiava na sua espontaneidade, na sua capacidade de estar em todos os lugares, em qualquer circunstância.

 

Vestia-se com simplicidade, a camisa e as calças estão sempre bem engomadas. Barba infalivelmente feita e cabelo aparado rente, e também não vai faltar na sua companhia, uma garrafa de água de 1,5 litros que vai bebendo a gargalo nos intervalos do tempo, em particular quando está na Redacção produzindo as prosas que vão marcar a sua vida.

 

E um homem destes, promovido a personagem, ficará sempre na memória pela forma como encarou a vida, tal como ela é, sem acrescentar absolutamente nada. Mano Dany via graça em tudo à sua volta. Trazia a alegria onde estivesse com os amigos,  destacando-se pela gargalhada descomprometida e pelas lembranças que partilhava, muitas delas que nos faziam recordavam a máxima: quem conta um conto, aumenta um ponto. Era assim, o mano Dany: tudo para ele tinha mais um ponto, e isso é próprio de actores livres de tabus.

quinta-feira, 07 dezembro 2023 14:08

Saudades dos meus três amores

A subida de Jacob Zuma como presidente da África do Sul apanhou desprevenida a constituição deste país. Esta não estava preparada (e creio que ainda não) para um presidente polígamo. Tenho consciência de que não fora fácil para a constituição sul-africana. Quem diz isto não é gago. Falo em causa própria (risos), pois… (conto abaixo).

 

Já com uma cara de adulto tive uma experiência similar a da constituição sul-africana. E tal como esta, eu também não estava preparado para gerir mais do que um amor em simultâneo, e no meu caso eram três amores. Por sinal irmãs gémeas. Para piorar, ainda nem conhecia a escriba Paulina Chiziane, senão a teria aproximado para aconselhamento. 

 

Foram tempos difíceis de gestão tripartida, mas interessantes. Elas eram inseparáveis: a Mãe Grande, a Escurinha e a Caçula. Nas casas de pasto era normal que conhecidos, e não conhecidos, sempre que nos vissem juntos e felizes, se dirigissem a nós com vénia e as infalíveis palavras: “Sempre bem acompanhado”. Gestos que agradecia e em seguida beijava, profundo e demorado, os meus amores. 

 

De todas, o meu grande amor era a Mãe Grande. Infelizmente fiquei viúvo dela. Desde a sua partida, tenho passado temporadas de banzo (nostalgia mortal). Até que na altura da sua partida eu fora avisado que lhe restavam poucos meses de vida, mas nunca as causas. Nos exames médicos e na certidão de óbito nada consta.    

 

Desde então saio com a Escurinha e a Caçula. E como antes, se juntam duas primas. Uma até agora aparece e a outra anda desaparecida. Não é igual, pois não preenchem na plenitude a ausência da mana e primosa.

 

A Caçula é mais uma acompanhante, sempre presente, inculta e bela. A Escurinha é louca, desvarada e provocadora. As primas gostam de estrangeiros. A Mãe Grande, de origem helénica, era única, a última flor da “Varanda do Índico”: madura, leve e recatada.

 

Por ser verão, as saudades das três juntas são imensas. Fico banzo. A Escurinha, que é a do meio, sempre que me vê assim, sugere que eu preencha o vazio da mana com uma outra, uma expatriada e cidadã do mundo. Ela vive pelas cercanias da área metropolitana de Maputo, um pouco depois da nova casa dos pais e primas dos meus três amores.

 

No próximo dia 10 de Dezembro, a data de celebração do Dia Internacional dos Direitos Humanos, será realizada uma missa privada em memória da Mãe Grande, Sua Majestade, pois o amor dela era também um direito fundamental. Outrossim, o seu desaparecimento físico, e o silêncio de quem de direto sobre as respectivas razões, representam uma flagrante violação da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

 

Para celebrar a data, e em sua homenagem, mandei fazer uma lápide doirada, contorno avermelhado, com a seguinte inscrição cravada: “Eternas saudades meus três amores: Laura, Tina e Clara (a Mãe Grande). Saravá!  

 

PS: Este texto é dedicado a todos os lesados pelo desaparecimento físico da cerveja Laurentina Clara sem consulta pública. Urge uma agremiação dos lesados (vendedores, consumidores e simpatizantes) que advogue pela informação dos motivos do seu desaparecimento, responsabilização dos autores e mandantes bem como para o seu resgate.  

quarta-feira, 06 dezembro 2023 12:59

VIRGÍLIO DE LEMOS

Quando o infortúnio lhe sobreveio, aos 84 anos, a 6 de Dezembro de 2013, nos arredores de Paris, avultavam, a favor de França, na biografia do poeta Virgílio de Lemos, 50 anos do seu porfiado exílio. Nascera na Ilha do Ibo, a 29 de Novembro de 1929, e pertencera ao escol dos poetas que se afirmaram nos anos ulteriores à Segunda Guerra Mundial em Moçambique, alguns dos quais, como Noémia de Sousa, José Craveirinha, Fonseca Amaral, Rui Knopfli, Orlando Mendes ou Rui Nogar, são responsáveis por intuir e instituir aquilo seria uma poesia de raiz marcadamente moçambicana. Apesar disso, o seu percurso e a sua poesia fazem-se por meios e características diversas daqueles.

 

Fátima Mendonça, num instigante ensaio de 1987 que estabelece uma periodização da literatura moçambicana, recolhido em Literatura Moçambicana – A História e as Escritas (1989), identifica-lhe proximidades ao surrealismo. Américo Nunes, num texto que antecede A Dimensão do Desejo (2009), fala de “uma experiência simultaneamente lúdica e trágica, erótica e profundamente desassossegada” da sua poesia: “Virgílio de Lemos é um lírico desdobrado de um metafísico.” Reconhece-lhe a “militância” anti-colonial e anti-fascista, mas “não é isso que traduz a essência da sua poesia”. Creio que Poemas do Tempo Presente (1960) não declina um espírito irreverente, contudo, não prossegue o que uma poesia como a de José Craveirinha ou Noémia de Sousa propugnam.

 

Craveirinha, numa remota entrevista a Michel Laban (Moçambique – Encontro com Escritores, I vol, 1998), não tergiversou quanto a dúvidas que chegou a ter sobre o papel e a personagem de Virgílio de Lemos: “Eram simplesmente dúvidas: de que lado é que o tipo está? E depois aquela coisa de ele pedir-me originais para pôr no jornal da Mocidade Portuguesa…” Aliás, Craveirinha declina quando este lhe propõe colaboração nas folhas “Msaho”, em 1952. Queria ver primeiro, contudo, “Msaho” soçobrou no primeiro número. Colaboram Noémia de Sousa, Reinaldo Ferreira ou Ruy Guerra. Reinaldo pertencia, com Domingos de Azevedo e Virgílio, à coordenação da publicação. Da sua amizade com Reinaldo Ferreira, da sua cumplicidade, há um testemunho afectivo e poético de Virgílio.

 

Virgílio de Lemos foi preso duas vezes. Foi absolvido no caso da “capulana vermelha e verde” e condenado a 16 meses (o tempo que expendera na prisão) no caso de subversão. O seu ideário (chamou-lhe “crioulismo” ou “barroco estético dos moçambicanos”) passava, a seu ver, por uma amálgama cultural e uma vivência urbana que incluía “brancos, mistos, indianos, chineses e os pretos que dormiam no fundo dos quintais”. Casou com a artista Bertina Lopes (pai português e mãe moçambicana) e teve dois filhos. Contudo, em 1963, desfeito o laço matrimonial e cansado dos imbróglios com os esbirros e as impugnações destes, parte para o exílio. A África do Sul, onde estudara e vivera algum tempo, não lhe parece lugar auspicioso para tal desiderato. Aterra em Paris em Dezembro desse ano longínquo.

 

Michel Laban fez-lhe a pergunta que se impunha: “Poderia supor-se que, saindo tu da cadeia, te juntasses ao movimento nacionalista organizado…” A resposta de Virgílio de Lemos é honesta: “Cheguei aqui e fiz um balanço para mim. Verifiquei que acima das ideias do movimento de libertação nacionalista, eu devia valorizar a minha própria liberdade de pensamento e de acção, embora denunciando o colonialismo, o salazarismo.” Nada mais lídimo. Quando, por vezes, se fazem exabundantes afirmações sobre o dissentimento de Virgílio de Lemos, creio que vale lembrar a sua liberdade como poeta que lhe divisa a franquia. E respeitar isso. Por conseguinte, a este respeito, nada de pregões.

 

Era adepto do “barroco estético”, uma demanda que se inseria numa busca de antropofagia cultural baseada numa mestiçagem identitária, o tal crioulismo que ele sempre procurou. No frontispício do livro Negra Azul (1999), que é uma espécie poética de “Cahier d´um retour au pays natal” (Aimé Césaire dixit), fica explicitado: “retratos antigos de Lourenço Marques de um poeta barroco.”

 

Se é facto que retoma versos da sua dissensão (“bayete-bayete-bayete / à Kapulana vermelha e verde, / se subsistirem no tempo / capulanas de várias cores”), o que temos neste “regresso” é uma poesia sobre uma “cidade, na alucinada posse / que supera o irreal”, na “babilónia de gozos / frágeis luzes e amores”, ou “na solidão que o Infinito / transporta”, “o despertar do fogo e da orgia”, de quem “viveu teu corpo / por dentro” –  “a erótica dimensão da noite”.

 

“O coração da cidade bate

nesta Baixa plural

Polana e Malhanga, Mafalala

e Malanga,

Zélias e Detinhas, Júlias

de grandes decotes e brincos.”

 

Ou ainda estes versos: “Olhos / de teu corpo / que deslizam dentro / da cidade / viagens pelas ancas / pelas pernas / fogos da cripta / que subvertem / o desejo.” É o retorno ao “mais feminino pôr-de-sol da minha infância”: “minhas mãos entre teus seios / tuas mãos em meus infernos / devaneios, girassóis.” Há, nesta poesia, de Negra Azul, essa “temporalidade sem tempo”, esse “espanto”, “como se adivinhasse as coisas / ávido de liberdade, corpo interior solto, sereno / face à morte, seio, exuberância, gozo em mim dos deslimites”.

 

É essa a ideia com que ficarei da sua poesia inicial, de um certo exotismo e de uma ideia erotizante de uma realidade muito mais problemática, complexa e inquietante. Provavelmente, uma ideia inexacta ou imperfeita. No livro de homenagem ao seu amigo de geração, o grande poeta Reinaldo Ferreira, Virgílio de Lemos é mais metafísico e estabelece um vasto diálogo com poetas importantes na sua formação e afirmação. Com Reinaldo e na companhia do psiquiatra Fernando Ferreira liam poetas como Rainer Maria Rilke. Mas também Goethe (Wherter), Joyce ou Proust.  

 

“Senta-te aqui Ricardo Reis entra neste jogo

e charla de café, ajuda-nos a irmos mais longe,

superar sonhos gregos e persas, e atravessar

gentes e línguas de oceanos, portos e ilhas.”

 

Este poema parece denunciar a sua ideia de “barroco estético” e aquilo que então Virgílio prossegue como ideário poético. Cito ainda do mesmo poema:

 

“Rangel meio chinês e grego, africano tal

os Nicolaus, Rui Guerra e Zé, afro-alentejanos

Cabo-Verdes e Algarves, Carlos Maria e

eu, Virgílio, vindos da malandragem, libertinos.”

 

Virgílio de Lemos irá escrever no fim do texto: “nós que vadiamos na descontracção de surrealismos, / somos lusismos, cubismos e dadaísmos das artes.” Fernando Pessoa, disse-o, mas também Cesário Verde, Sá Carneiro, Padre António Vieira, Guerra Junqueiro, Jorge de Sena, Camões – safra dos portugueses –, os brasileiros Manuel Bandeira, Cecília Meireles ou João Cabral de Melo Neto, ou poetas como Cavafy, Borges, Mallarmé ou T. S. Eliot fazem a estiva da sua busca. Mas também a música, a pintura, a poesia, a língua. E sempre a presença de Reinaldo Ferreira.

 

Durban, Lisboa, Paris, Cidade do México, Alexandria, Ibo e Zanzibar. Cidades, ilhas, destinos da sua poesia, da sua metafísica e do seu incessante desassossego. Mas sobretudo esse mito chamado Ilha de Moçambique. Chega à ilha pela primeira vez em 1952, na companhia de Gilberto Freyre, com quem discute uma identidade culturalmente mestiça, crioula, apontando-lhe imperfeições no seu luso-tropicalismo.

 

“A cultura específica das ilhas é herança barroca”, declarará mais tarde. Ilha de Alberto de Lacerda (onde nasceu e escreverá versos iridescentes) e de Rui Knopfli (autor dessa belíssima A Ilha de Próspero), ilha que será de Luís Carlos Patraquim ou Eduardo White, anos mais tarde, ilha que fora de Camões ou Jorge de Sena, quatro séculos depois, sempre numa invenção poética, numa celebração da língua e da sua mitologia de exílio.

 

“ilha

que dorme na utopia

pródigo mito

da poesia.”

 

Estes versos estelares pertencem a Ilha de Moçambique – A língua é o exílio do que sonhas (1999). Ali, onde evoca “os deuses do mar à minha volta”, naquele lugar onde não foge do erotismo (“teu corpo é bruma” ou “sou erotismo / na vulcânica geografia”), onde vive um “incandescente êxtase”, uma “insondável magia”:

 

“Eu sou pássaro migrante,

das ilhas-mulheres singulares

nenhum corpo igual a outro corpo,

face ao mar o irreal navega.”

 

Ali onde o poeta viaja e se declara: “sou português swahili / sou celta judeu / não confúcio mas buda”, sempre “no erotismo entre oceanos e / palavras”, “na pátria do desejo”. Na mesma ilha onde homenageia Camões e Pessoa nestes belos versos:

 

“A ilha de amores é a casa dos mortos, a nau

habitada de infernos, tumultos, espantos, a gruta

dos fogos da alma e obsessões do corpo, culto

das rotas interiores. Solidão, medo e fim, erras

na bruma, sol e sedas do teu corpo, silêncios

e gritos, inventário de mitos, a beleza em busca

de si mesma, confiante, inquieta, fulgurante e neutra

interrogando-se acoplada ao destino em ti.”

 

Canto desse “mar tão exoticamente azul” e dessa “sensual sensação na sedução azul”, nessa “própria luz feita desejo”. “Nasceste do sonho e pelo sonho morrerás / na revolução que tu próprio estrangulaste. / Foste a Europa, o Império, o mundo foste / na mais erótica irisão do que inventaste.”

 

Se há uma poesia do Índico, se há uma tradição poética desse destino Oriental, desse Moçambique e desse Oceano, dessa viagem que inclui espaços e ilhas, destinos e espantos, que o poeta exprime nas suas várias línguas, que o poeta sagra e consagra em francês, inglês ou em português, nessa busca assombrada do mar e da sua fortuna – Para fazer um mar (2001) – , é nessa mesma poesia que Virgílio de Lemos faz a sua perquirição, na sua “osmose”, “no diálogo com os mortos”, na “luz oriental da volúpia”. Mas também o inventário das suas ilhas, dos seus mitos e duendes, da sua Ibo matricial, mas tudo o que “antropofagicamente” desencadeia a sua nostalgia poética, passional e iminentemente índica.

 

Essa nostalgia poética exprime-se e imprime-se luminosamente nesse Eroticus Moçambicanus (1999) demandado no Brasil e pelo entusiasmo de Carmen Lúcia Tindó. Ou em: Lisboa, oculto amor (2000). Do seu longo e obstinado exílio francês: Object à trouver (1988), L´obscene pensée d´Alice (1989) e L´aveugle et l´absurde (1990), livros que suspendem quase trinta anos de silêncio. Duarte Galvão, Bruno dos Reis ou Li Lee Yang, numa heterónima e numa incessante inventiva e busca de si próprio, “a cor, o traço, o som e o gesto”, da sua liberdade e da sua poesia, da sua alquimia, da sua rebeldia, da sua paixão, da sua aventura, do seu gozo e da sua solidão. “O existir feito / deserto e / caos”.

 

“Serei em tudo “barroco estético” ou nada.

Na fragilidade de palavras e silêncios,

Serei espaços de deslocação,

desconstrução, desenraizamento,

universalidade no singular e plural,

respiração no seio da tragédia

ficção e sonho.”

(Virgílio de Lemos, A Dimensão do Desejo)  

 

KaMpfumo, 6 de Dezembro de 2023

“A República de Moçambique é um Estado de Direito, baseado no pluralismo de expressão, na organização política democrática, no respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.” É o que estabelece o artigo 3 da Constituição da República de Moçambique (CRM), sob a epígrafe “Estado de Direito Democrático”, como um dos princípios fundamentais que norteia o Estado moçambicano.

 

Por seu turno, o n.º 3 do artigo 2 da CRM estabelece: “O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade.”

 

O Estado de Direito é um princípio fundamental complexo de protecção dos direitos humanos, da democracia e de realização da justiça por meios justos, com destaque para a igualdade, não discriminação e respeito pelas leis justas em contraposição com a aplicabilidade ou prevalência de condutas arbitrárias e de abuso de autoridade na administração do Estado nas suas vertentes política, social, económica e cultural.

 

Para a protecção do Estado de Direito Democrático joga papel importante a função jurisdicional, ora consagrada no artigo 211 da CRM, nos seguintes termos:

 

  1. Os tribunais têm como objectivo garantir e reforçar a legalidade como factor da estabilidade jurídica, garantir o respeito pelas leis, assegurar os direitos e liberdades dos cidadãos, assim como os interesses jurídicos dos órgãos e entidades com existência legal.
  2. Os tribunais penalizam as violações da legalidade e decidem pleitos de acordo com o estabelecido na lei.

 

No entanto, estranha e curiosamente, o Acórdão n.º 48/CC/2023, de 23 de Novembro, referente ao processo n.º 61/CC/2023 sobre a Validação dos Resultados Eleitorais Autárquicos de 2023, proferido pelo Conselho Constitucional, entanto que Instância Contenciosa Eleitoral Suprema, conforme se outorga, furta-se à sua função jurisdicional na protecção do Estado de Direito Democrático. Primeiro, na medida em que encobre ilegalidades graves praticadas no processo eleitoral, sobretudo pela Comissão Nacional de Eleições. Segundo e mais grave ainda, na medida em que o próprio Conselho Constitucional pratica actos fora das suas competências, ao proceder à recontagem dos votos de forma obscura e ao alterar os resultados eleitorais, em clara violação dos princípios da liberdade eleitoral, justiça eleitoral e da transparência eleitoral. Aliás, o Conselho Constitucional vai mais longe no seu acto de “execução sumária” do Estado de Direito Democrático ao não respeitar o princípio da fundamentação das suas decisões vertidas no Acórdão em questão e abusar do seu poder jurisdicional sob a capa de que os seus Acórdãos são irrecorríveis.

 

Por definição, nos termos do disposto no artigo 240 da CRM, “o Conselho Constitucional é o órgão de soberania, ao qual compete especialmente administrar a justiça, em matéria de natureza jurídico-constitucional.” Ora, no caso vertente, a democracia, o Estado de Direito Democrático, a liberdade e justiça eleitoral são matérias de natureza jurídico constitucional que carecem de protecção jurisdicional efectiva quando ameaçados ou violados. Infelizmente, esses princípios mostram-se violados pelo Acórdão n.º 48/CC/2023, de 23 de Novembro do Conselho Constitucional sobre a Validação dos Resultados Eleitorais Autárquicos de 2023.

 

Nessa perspectiva, a questão que se coloca é a seguinte: Quando um Acórdão do Conselho Constitucional, que é irrecorrível, viola a democracia ou o Estado de Direito Democrático, como garantir e efectivar a protecção jurisdicional da mesma democracia ou do Estado de Direito Democrático? Será esse Acórdão juridicamente válido?

 

De acordo com o n.º 1 do artigo 247 da CRM, “os Acórdãos do Conselho Constitucional são de cumprimento obrigatório para todos os cidadãos, instituições e demais pessoas jurídicas, não são passíveis de recurso e prevalecem sobre outras decisões.”

 

Em bom rigor, ainda que o Acórdão do Conselho Constitucional seja irrecorrível, para que o mesmo seja de cumprimento obrigatório deve ser válido, o que não é possível quando o conteúdo desse Acórdão viola a democracia ou o Estado de Direito Democrático e é proferido com violação das competências legais do seu autor. Doutro modo, é assumir existência de grave fragilidade na protecção jurisdicional da democracia e do Estado de Direito Democrático no ordenamento jurídico moçambicano. E, mais do que isso, é atribuir um cheque em branco ao Conselho Constitucional para, querendo, abusar do poder ou da sua função jurisdicional nas suas decisões com a alegação de que os seus Acórdãos são irrecorríveis, conforme é o caso em apreço, o que é juridicamente incoerente ou um absurdo jurídico à luz do princípio da justiça, último fim do Direito.

 

Nenhuma decisão judicial é válida, intocável, inalterável e prevalecente quando viola sobremaneira os princípios fundamentais consagrados na Constituição da República, conforme é o caso do Estado de Direito Democrático, “sumariamente executado” no Acórdão supra referido do Conselho Constitucional por razões ora desconhecidas, até porque parte significativa do mesmo Acórdão carece de fundamento legal sobre as decisões tomadas.

 

O princípio da irrecorribilidade dos Acórdãos do Conselho Constitucional ou de qualquer outro órgão jurisdicional não se sobrepõe aos alicerces constitucionais da República de Moçambique, entanto que Estado independente, soberano, democrático e de justiça social, sob pena de legalização da hipoteca do Estado moçambicano. A título de exemplo, não há, pois, como o Conselho Constitucional proferir um Acórdão na língua inglesa e o mesmo prevalecer como válido, porque irrecorrível, uma vez estar em causa a violação do princípio fundamental previsto no artigo 10 da CRM que estabelece: “Na República de Moçambique, a língua portuguesa é a língua oficial.”

 

Em jeito de conclusão, vale aqui deixar a seguinte citação adaptada: “Quando tudo isto falhar, então já não há Estado de Direito. Ter-se-ão posto em causa todos os fundamentos do Estado de Direito. Na verdade, num Estado de Direito não é admissível, seja por que motivo for, que o judiciário se recuse a respeitar os princípios fundamentais da República. O judiciário não pode nem se deve colocar acima ou fora do Direito e isto acontece quando se recusa a materializar o Estado de Direito Democrático. Nos Estados de Direito modernos, isto é tido como uma aberração, um atavismo que a História se recusa a repetir. Ao se atingir este estádio patológico de nada servirão os discursos políticos de ocasião nem a existência de pseudo-instituições democráticas e jurisdicionais porque todos os alicerces do Estado, da sociedade civil e política estarão minados e destruídos. Os tempos de “L’ État c’est moi” servem apenas como exemplos de História, não se admitindo a existência de esclarecidos ou déspotas que a tudo comandam e dirigem a seu bel-prazer e situados acima ou fora das balizas do Direito.” Adaptado do livro de Alfredo Chambule, As garantias dos Particulares, Volume I, Imprensa Universitária, 2002, pag. 209.

 

Por: João Nhampossa

 

Human Rights Lawyer

 

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

O n.º 1 do artigo 144 da Lei n.º 14/2018 de 18 de Novembro, que altera e republica a Lei n.º 7/2018, de 3 de Agosto  (Lei Eleitoral) estabelece:

 

“A votação em qualquer mesa da assembleia de voto e a votação em toda a área da autarquia local só são julgadas nulas, desde que se haja verificado ilegalidades que possam influir substancialmente no resultado geral da eleição.”

 

Da análise minuciosa do Acórdão n.º 48/CC/2023, de 23 de Novembro, referente ao processo n.º 61/CC/2023 sobre a Validação dos Resultados Eleitorais Autárquicos de 2023, é fácil perceber uma série de ilegalidades e/ou irregularidades que caracterizam este processo eleitoral, até mesmo praticado pelo próprio Conselho Constitucional, em certa medida. Na verdade, deste órgão de soberania de natureza jurisdicional, que se intitula de Instância Contenciosa Eleitoral Suprema em matéria eleitoral, o povo muito esperava que materializasse o desiderato do Estado de Direito Democrático, pelo respeito e aplicação dos principais princípios que norteiam as eleições em Moçambique, com cunho constitucional, mormente: Liberdade, justeza e transparência – eleições livres, justas e transparentes.

 

Quanto à deliberação da Comissão Nacional de Eleições (CNE) de 26 de Outubro

 

O Acórdão do Conselho Constitucional sobre a validação dos resultados eleitorais em questão, de entre outros aspectos relevantes, teve por base a deliberação da CNE de 26 de Outubro atinente à Centralização Nacional e Apuramento Geral dos Resultados Eleitorais das Sextas Eleições Autárquicas de 11 de Outubro de 2023.

 

No entanto, esta deliberação da CNE é deveras contestada por várias razões, incluindo o facto de ser emanada num contexto tanto de pendência de processos judiciais de contestação dos resultados eleitorais em determinadas assembleias de votos ou autarquias, como de falta de editais originais e em certas situações não assinadas, o que põe em causa a integridade das eleições, particularmente a liberdade, justeza e transparência das mesmas. Não há, pois, dúvidas sobre a gravidade da CNE proceder ao apuramento geral dos resultados sem a totalidade dos editais originais, nos termos da Lei Eleitoral.

 

Era mister que o Conselho Constitucional se pronunciasse, detalhadamente, sobre a consequência jurídica, senão a validade da deliberação da CNE submetida ao Conselho Constitucional com uma série de irregularidades desde a falta de editais originais e desconsideração de processos judiciais pendentes sobre estas eleições. Um autêntico abuso ao poder judicial.

 

Mais do que isso, é que a deliberação da CNE atinente à Centralização Nacional e Apuramento Geral dos Resultados Eleitorais das Sextas Eleições Autárquicas de 11 de Outubro de 2023 foi proclamada num contexto de alegações fundamentadas de aparecimento de boletins de voto (às vezes pré-votados), provenientes de entidades estranhas ao pessoal da administração eleitoral, conforme faz referência o Conselho Constitucional no seu Acórdão de Validação dos Resultados Eleitorais Autárquicos de 2023. Aliás, casos houve em que as actas e os respectivos editais não foram imediatamente publicados no local de funcionamento, através da cópia original, devidamente assinada e carimbada pelos membros das mesas, conforme manda a Lei Eleitoral, aquando do apuramento parcial nas mesas das assembleias de voto.

 

Ora, a deliberação da CNE em questão foi feita num contexto de ilegalidades, de falta de transparência e de desrespeito ao interesse público que é o norte do Estado de Direito Democrático que caracteriza Moçambique. Mesmo o processo de subscrição da deliberação e acta do apuramento geral dos resultados destas eleições autárquicas foi problemático e obscuro, deixando a CNE em total descrédito aos olhos dos cidadãos.

 

Em bom rigor, a CNE furtou-se ao apuramento geral das irregularidades e ilegalidades eleitorais e à avaliação da gravidade das mesmas com vista a proferir uma deliberação sobre a Centralização Nacional e Apuramento Geral dos Resultados Eleitorais das Sextas Eleições Autárquicas de 11 de Outubro de 2023 que espelha a justiça eleitoral, a transparência eleitoral e a liberdade eleitoral.

 

Quanto à relevância das constatações dos Observadores Eleitorais

 

O Acórdão em referência reconhece que “os observadores eleitorais são um mecanismo que ajuda a aumentar a confiança da comunidade nacional e internacional nos processos eleitorais, promovendo a transparência, a participação cidadã e a condução democrática das eleições...” No entanto, não se refere em que medida os relatórios dos 133 observadores, dos quais 76 estrangeiros e 57 nacionais, informaram e influenciaram o Conselho Constitucional a validar os resultados das eleições autárquicas de 11 de Outubro de 2023 nos termos em que o fez.

 

Aliás, vale aqui lembrar que alguns desses observadores denunciaram situações de irregularidades e ilegalidades eleitorais graves no processo da votação e de apuramento da votação, para além de terem procedido à contagem paralela dos votos que mostra tendência diversa da Comissão Nacional de Eleições (CNE) e do próprio Conselho Constitucional. Assim, era desejável e obrigatório que o Conselho Constitucional se pronunciasse sobre essas irregularidades e contagem paralela se de facto os Observadores Eleitorais ajudam na promoção da transparência, participação cidadã e condução democrática das eleições conforme refere, expressa e inequivocamente, no seu Acórdão supra indicado.

 

Atendendo aos princípios da transparência, liberdade e justeza que norteiam todo o processo eleitoral, o Conselho Constitucional  tinha a obrigação legal de se pronunciar sobre a veracidade e/ou sustentabilidade das alegações de irregularidades e ilegalidades trazidas pelos Observadores Eleitorais, tomando posição sobre em que medida as mesmas preenchem o requisito de ilegalidades que possam influir substancialmente no resultado geral da eleição, conforme previsto no n.º 1 do artigo 144 da Lei Eleitoral.

 

Quanto à recontagem de votos pelo Conselho Constitucional

 

Da análise do Acórdão de Validação dos Resultados Eleitorais Autárquicos de 2023 proferido pelo Conselho Constitucional, nota-se que este órgão de soberania procedeu à recontagem dos votos em determinadas autarquias, na medida em que concluiu, alegadamente, com base em elementos probatórios suficientes, alterar os resultados do apuramento geral dos municípios da Matola-Rio, de Quelimane, de Chiúre, de Alto-Molócuè, de Xai-Xai, da Matola, de Marracuene, de Vilankulo e da Cidade de Maputo. Curiosamente, não são do domínio público tais elementos probatórios suficientes.

 

No entanto, por uma questão de materialização da transparência e justiça eleitoral, é estranho e inaceitável que o Conselho Constitucional não faça referência à base legal da competência para alteração dos resultados do apuramento geral, mesmo sabendo que as suas competências devem resultar expressa e inequivocamente da lei, sem qualquer espaço para presunção de competências.

 

A alteração dos resultados na medida feita pelo Conselho Constitucional,  nos municípios supra referidos, não deixa margem de dúvidas de existência de irregularidades e ilegalidades graves no processo do apuramento dos resultados que influíram substancialmente  no resultado geral da eleição e que devia dar lugar à nulidade das eleições e a consequente repetição, em respeito ao artigo 144 da Lei Eleitoral, uma vez haver elementos objectivos para o efeito. A alteração de mandatos eleitorais nos termos, ilegalmente, feitos pelo Conselho Constitucional é reveladora de cometimento de ilegalidades graves que alteram substancialmente o resultado geral da eleição.

 

Mais grave ainda é o facto de o Conselho Constitucional vir declarar o Partido RENAMO como vencedor de determinadas autarquias e não justificar a razão pela qual não declarou a nulidade das eleições nesses municípios ao abrigo do artigo 144 da Lei Eleitoral, uma vez que as ilegalidades constatadas influem substancialmente no resultado geral da eleição, chegando ao ponto de se declarar um novo vencedor!

 

Afinal, os requisitos previstos no artigo 144 da Lei Eleitoral para a nulidade e repetição das eleições devem ser analisados com base em critérios objectivos ou subjectivos?  O Conselho Constitucional dá a entender que se trata de critérios subjectivos ao optar pela via subjectiva de forma atabalhoada e ilegal?

 

Concluindo

 

O Acórdão n.º 48/CC/2023, de 23 de Novembro referente ao processo n.º 61/CC/2023 sobre a Validação dos Resultados Eleitorais Autárquicos de 2023 do Conselho Constitucional, mais do que violar os princípios da liberdade, justeza e transparência eleitoral de forma gravosa, não materializou do desiderato constitucional do Estado de Direito Democrático e não assegurou que os resultados espelhem a vontade do eleitorado.Ademais, o Acórdão em causa violou o disposto no artigo 144 da Lei Eleitoral que determina:

  1. A votação em qualquer mesa da assembleia de voto e a votação em toda a área da autarquia local só são julgadas nulas, desde que se haja verificado ilegalidades que possam influir substancialmente no resultado geral da eleição.
  2. Declarada nula a eleição de uma ou mais mesas da assembleia de voto, os actos eleitorais correspondentes são repetidos até ao segundo Domingo posterior à decisão, em data a fixar pelo Conselho de Ministros, sob proposta da Comissão Nacional de Eleições.

 

Há, pois, elementos bastantes que justificam a invalidade do Acórdão do Conselho Constitucional em ataque por estar inquinado de vício de nulidade ou de inexistência jurídica, com as devidas consequências. Trata-se na verdade de um Acórdão que envergonha as escolas de Direito, descredibiliza o judiciário e o sistema de justiça e dá sérios golpes ao princípio do Estado de Direito Democrático ao premiar abusos ao processo eleitoral e à democracia.

 

Infelizmente, trata-se de um assunto sensível e que por estar ligado a questões de Poder num contexto político violento que é Moçambique dá lugar à violação de direitos humanos, incluindo intimidações e morte por assassinato. Mas o debate civilizado, sereno e abrangente sobre o Estado de Direito Democrático e justiça eleitoral não deve parar de modo que os objectivos fundamentais do Estado constante do artigo 11 da Constituição da República sejam materializado, designadamente:  

 

a) a defesa da independência e da soberania;

 

b) a consolidação da unidade nacional;

 

c) a edificação de uma sociedade de justiça social e a criação do bem-estar material, espiritual e de qualidade de vida dos cidadãos;

 

d) a promoção do desenvolvimento equilibrado, económico, social e regional do país;

 

e) a defesa e a promoção dos direitos humanos e da igualdade dos cidadãos perante a lei;

 

f) o reforço da democracia, da liberdade, da estabilidade social e da harmonia social e individual;

 

g) a promoção de uma sociedade de pluralismo, tolerância e cultura de paz;

 

h) o desenvolvimento da economia e o progresso da ciência e da técnica;

 

i) a afirmação da identidade moçambicana, das suas tradições e demais valores sócio- culturais;

 

j) o estabelecimento e desenvolvimento de relações de amizade e cooperação com outros povos e Estados.

 

Por: João Nhampossa

 

Human Rights Lawyer

 

Advogado e Defensor dos Direitos Humanos

segunda-feira, 04 dezembro 2023 11:20

Uma vitória igual, não se recomenda

Certamente que o leitor esteja a pensar que o título tem a ver com o vencedor das sextas eleições autárquicas de 11 de Outubro. É possível, mas o que me ocorre é a vitória de um certo general da história universal que eu lera, salvo erro, em um escrito do sociólogo Elísio Macamo.

 

No citado escrito, que já não me lembro com detalhe o conteúdo, é relatado que algures no mundo, e em tempos idos, um chefe militar quis oferecer uma vitória ao seu rei, conquistando a ferro e fogo a terra de um homólogo e arqui-inimigo do seu rei.

 

Quando do reporte (fatídico) da vitória, que se saldara na perca de mais de ¾ do efectivo do exército, incluindo reservistas, e na incapacidade do grosso que restara, o rei disse ao seu general: “Mais uma vitória igual a esta será o nosso fim”.

 

No lugar da celebração, um aviso à navegação. Por sinal, um aviso que atesta que a suspeita inicial do leitor não fora por mera coincidência. 

 

Nando Menete publica às segundas-feiras

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