Por Catarina de Albuquerque, CEO da parceria Global Sanitation and Water for All, sediada na UNICEF, e primeira Relatora Especial das Nações Unidas para o Direito Humano à Água Potável e Saneamento Seguro.
Para alcançar água limpa e saneamento para todos até 2030, África precisará quase triplicar os seus investimentos actuais e mobilizar um adicional de 30 mil milhões de dólares anualmente. Pode parecer uma quantia considerável, mas corresponde a menos de dois por cento do Produto Interno Bruto (PIB) actual do continente. Além disso, é muito menos do que os estimados 170 mil milhões de dólares perdidos anualmente devido à escassez de água, saneamento precário e doenças na África Subsaariana.
Historicamente, os ministros das Finanças têm sido apáticos na alocação de fundos para água e saneamento, porque esses serviços são vistos como um fardo para os orçamentos públicos. Já se ouviu dizer que proporcionar acesso é "muito caro" e "menos urgente do que enfrentar as mudanças climáticas, uma pandemia ou uma emergência humanitária."
Infelizmente, muitos decisores são frequentemente tentados a perseguir um objectivo à exclusão de outros. Não podemos alcançar metas climáticas se os países enfrentam escassez de água. Não podemos melhorar a saúde quando mais crianças com menos de cinco anos morrem de água contaminada do que de balas na guerra.
Mas existem maneiras de pagar pela água e saneamento que podem ajudar os líderes a alcançar os seus objectivos de desenvolvimento. Então, como triplicamos o investimento?
Primeiro, precisamos começar com a priorização política. Quem aumenta ou diminui os orçamentos? Quem decide metas ambiciosas para aumentar o acesso à água e saneamento? São decisões políticas, e acredito que, quando a vontade política é mobilizada para priorizar a água e saneamento, o financiamento segue.
Por exemplo, no início deste ano, nove governos africanos anunciaram que estão a trabalhar em Pactos Presidenciais sobre Água e Saneamento. Essas iniciativas incluem aumentos nas alocações orçamentárias, fontes inovadoras de financiamento e planos para construir novas infraestruturas. Esperamos que outros países do continente - e além - sigam o exemplo.
Em segundo lugar, precisamos convencer os ministros das Finanças de que a água e saneamento geram altos retornos económicos e financeiros. Cada dólar investido em água e saneamento resilientes às mudanças climáticas em África retorna pelo menos 7 dólares.
A seguir, os governos e os seus parceiros podem utilizar de forma mais eficaz os recursos financeiros que já têm, incluindo tarifas de água doméstica, impostos e empréstimos micro e macro.
Por exemplo, os funcionários do governo podem pensar que estão a tornar a água e saneamento mais acessíveis para os agregados familiares mais pobres ao instituir tarifas baixas para todos os clientes. No entanto, isso frequentemente cria uma falta de receita para cobrir os custos operacionais básicos das empresas de água, que então precisam de apoio financeiro adicional do governo para sobreviver. Isso também pode subsidiar involuntariamente agregados familiares e empresas mais ricos que podem pagar mais.
Alternativamente, Burkina Faso instituiu tarifas mais altas para o comércio e a indústria para compensar os custos de fornecer conexões domésticas e fontes públicas dentro de comunidades mais pobres.
O dinheiro de impostos destinados é mais uma maneira de pagar pela água e saneamento. A Europa e a América do Norte historicamente usaram impostos sobre propriedades para financiar investimentos de capital nesses serviços, enquanto a Coreia do Sul usou o dinheiro de impostos sobre a venda de álcool.
A base de um clima de investimento saudável também exige uma regulamentação mais forte do sector: padrões bem documentados com metas de desempenho, linhas claras de responsabilidade, incentivos e penalidades. Por exemplo, o Quénia uniu forças com o Banco Mundial para avaliar a solvência das suas empresas de água a fim de atrair financiamento doméstico e internacional.
Por fim, a comunidade internacional precisa construir relacionamentos com ministros das Finanças, trazendo os exemplos certos de políticas que podem alcançar objectivos de desenvolvimento. Esse é o objectivo da nossa próxima Reunião dos Ministros das Finanças de África, que será realizada em 31 de outubro de 2023, organizada pelo Sanitation and Water for All, UNICEF e pelo Conselho de Ministros Africanos para a Água.
Esta é uma oportunidade única para o nosso sector se posicionar não como um dreno de recursos nacionais, mas sim como um investimento no desenvolvimento humano e económico. Além disso, muitos ministros das Finanças já estão a tomar medidas positivas para financiar a água e saneamento nos seus países, e estamos empolgados para partilharem a sua experiência.
Existem poucas oportunidades em que um único investimento pode melhorar a saúde pública e a qualidade de vida, estimular o crescimento económico e reduzir as desigualdades, mas investir em água faz tudo isso e mais.
É hora de colher os benefícios.
“Fale agora ou cale-se para sempre!”. Depois que o conservador lera esta frase, o fotógrafo da cerimónia nupcial decidira fazer umas fotos do lado oposto e frontal para os convidados. E enquanto caminhava, o que parecia apenas o som da batida dos seus sapatos era também o da batida cardíaca do noivo, que para se manter com algum aprumo tivera que segurar, com as duas mãos, a mesa do conservador.
No dia da leitura dos resultados eleitorais de 11 de Outubro esperava que o presidente da Comissão Nacional de Eleições (CNE), que por ser religioso e da igreja em que esta frase fora cunhada, introduzisse a mesma na leitura dos resultados, perguntando: “Alguém dos presentes, que nos assiste ou que nos ouve, terá alguma razão contra os resultados anunciados, fale agora ou cale-se para sempre!”
Assim não foi. E se assim tivesse sido? Certamente que o vice-presidente da CNE teria sido o primeiro a levantar a mão, avaliando o seu pronunciamento à imprensa logo após a leitura dos resultados oficiais. E qual teria sido o acolhimento caso ele tivesse tido tal oportunidade?
Na cerimónia do casamento acima, a pergunta também fora feita amiúde pelos presentes e ninguém sabia que procedimentos seriam tomados caso tivesse aparecido um protestante, pois, até então, ninguém tivera presenciado. Por hipótese aventara-se a possibilidade de que todas as questões eram ultrapassadas antes da cerimónia, mantendo-se a pergunta por mero costume e sem consequências, incluindo as de ordem legal.
No contexto da divulgação dos resultados oficiais a possibilidade de que todas as questões seriam ultrapassadas antes da cerimónia de divulgação não cola e nem decola, e tal decorre, ao que parece, da promiscuidade entre os nubentes/jogadores e o conservador/árbitro da peleja.
Ainda assim, ou talvez por isso, a sociedade está a responder ao “Fale agora ou cale-se para sempre!” como atestam os protestos dos protagonistas directos, sobretudo dos que se sentem lesados, e também de diferentes figuras públicas, organizações sociais e de diferentes instituições que se posicionam sobre os acontecimentos em torno destas eleições.
Por outro lado, e na senda da mesma pergunta, a sociedade questiona o profundo silêncio ensurdecedor de determinadas personalidades e de instituições de relevo que a luz das suas responsabilidades com a ética e a moral públicas, e independentemente das respectivas posições ou filiações partidárias, já deviam ter vindo a público
Por ora, e do ponto de vista formal, a sociedade aguarda pelo punho do Conselho Constitucional em sede da deliberação sobre a validação dos resultados anunciados pela CNE. Até lá, e tal como o momento de suspense ao som da batida dos passos do fotógrafo nupcial, soam alto o da batida do coração de toda a nação moçambicana que firme segura a mesa do conservador face a um potencial AVC.
Ainda por ora, lembrar Fidel Castro, o falecido líder revolucionário cubano, que no decurso de um seu julgamento, na sequência da sua participação numa tentativa de insurreição, culmina a sua própria defesa com a frase “A História me absolverá”.
E para fechar: o que fará a História aos que no país, em contramão com as suas responsabilidades no espaço público, se calam diante dos preocupantes acontecimentos em torno das eleições autárquicas de 11 de Outubro de 2023.
Nando Menete publica às segundas-feiras
“Moçambique realizou as VI eleições Autárquicas a 11 de Outubro de 2023. São eleições contestadas, em particular, pelo partido Renamo, que diz ter provas materiais de as ter ganho, em alguns Municípios. Ora, a recontagem desses votos não me parece que seja tão problemática, seria de todo justo, fazer-se a recontagem, com a participação dos interessados, os concorrentes da Renamo, da Frelimo ou de outro partido qualquer. São todos elegíveis a dirigirem as autarquias, somos todos moçambicanos, por isso julgo pertinente que a posição do Conselho Constitucional, para além de observar os aspectos estritamente jurídicos, deve ter em consciência que a sua decisão pode salvar ou precipitar o País ao abismo. Tudo está nas vossas mãos, senhores Juízes do Conselho Constitucional. A alínea d) do nr. 1 do artigo 244 da Constituição da República outorga-vos esse poder.”
AB
“O Conselho Constitucional Moçambicano é materialmente um órgão jurisdicional, desempenhando as funções de um TC. É titular da jurisdição constitucional, embora não tenha sido formalmente qualificado como um TC ou como um órgão jurisdicional, pois: - É um órgão constitucional de soberania que exerce uma função jurisdicional que consiste em aplicar a lei geral para julgar casos concretos da esfera da sua competência e no quadro da jurisdição constitucional; - É o órgão de administração da justiça titular da jurisdição constitucional, isto é, que aprecia e declara a inconstitucionalidade das leis e ilegalidade dos actos normativos dos órgãos do Estado; - É o órgão de recurso das decisões dos tribunais _630________RJLB, Ano 7 (2021), nº 3 em sede do controlo concreto da constitucionalidade; - É um órgão deliberativo, as suas decisões não são passíveis de recurso, são de cumprimento obrigatório e prevalecem sobre as dos tribunais e demais autoridades; - Os titulares do CC são juízes; - Os Juízes-conselheiros do CC gozam de garantia de independência, inamovibilidade, imparcialidade e irresponsabilidade; - Exerce a fiscalização concreta, sucessiva, abstracta e preventiva da constitucionalidade; - Fixa jurisprudência com força obrigatória geral; - Julga os processos contenciosos relativos aos conflitos de competências entre os órgãos de soberania e relativos aos processos eleitorais, ao mandato dos deputados, deliberações dos órgãos dos partidos políticos e as incompatibilidades previstas na Constituição e na lei; - Fiscaliza a legalidade dos processos eleitorais; -Verifica previamente a constitucionalidade dos referendos; - Tem iniciativa processual passiva; - O critério que serve de base para as suas decisões é o da legalidade”.
In: NATUREZA JURÍDICA DO CONSELHO CONSTITUCIONAL MOÇAMBICANO. Edson da Graça Francisco Macuácua*
Competências do Conselho Constitucional
“d) Apreciar, em última instância, os recursos e as reclamações eleitorais, validar e proclamar os resultados eleitorais nos termos da lei;
g) Julgar as acções de impugnação de eleições e de deliberação dos órgãos dos partidos políticos;”
In Artigo nº 244 da Constituição da República de Moçambique
Depois de fazer o exercício de consulta legislativa face aos acontecimentos resultantes da comunicação da CNE – Comissão Nacional de Eleições, sobre os resultados das eleições Autárquicas de 11 de Outubro de 2023, notei com satisfação que ainda temos uma janela de esperança para que Moçambique não resvale num Estado desgovernado. A nossa última esperança, neste momento, está depositada no Conselho Constitucional que exerce, simultaneamente, as funções de um Tribunal Eleitoral.
Compete ao Conselho Constitucional – segundo a alínea d) do nº 1 do artigo 244, da CR, apreciar, em última instância, os recursos e as reclamações eleitorais, validar e proclamar os resultados eleitorais nos termos da Lei, competindo, também, a este órgão de soberania “julgar as acções de impugnação de eleições e de deliberação dos órgãos políticos”, sendo que: É um órgão deliberativo, as suas decisões não são passíveis de recurso, são de cumprimento obrigatório e prevalecem sobre as dos tribunais e demais autoridade.
A esperança neste órgão deve-se ao facto de os partidos políticos terem interposto recursos junto dos Tribunais de Distrito, local onde ocorreram os “ilícitos” eleitorais e estes Tribunais, em alguns casos, terem indeferido esses recursos e, noutros, apesar de haver recursos em curso, a CNE ter já apresentado aquilo que designou de resultados das eleições de 2023 e atribuído mandatos aos concorrentes, quando, na verdade, existem recursos correndo os trâmites legais, pois, há casos em que os Tribunais decidiram pela recontagem de votos e outros ainda pela anulação de todos os actos, por divergências graves entre os editais de uns e outros.
A instabilidade que se criou com o anúncio dos resultados eleitorais, fazendo fé à liderança do maior partido da oposição e sua liderança, vai continuar, por via de manifestações e o meu receio é que estas manifestações degenerem em caos, devido à “fúria” popular, como se viu na manifestação de 26 de Outubro de 2023. Alguns cidadãos recorreram a arrombamento de estabelecimentos comerciais, vandalização de bens públicos e privados, de cujos danos, certamente, não serão ressarcidos.
Há o princípio, segundo o qual, os juízes decidem com base na Lei e sua consciência, independentemente daquilo que a Lei determina, sem violar as normas. Nesta senda, os juízes do Conselho Constitucional devem chamar a sua consciência para a tomada de decisão destes casos, tendo em conta que as suas decisões não são recorríveis. O Conselho Constitucional deve, na minha opinião, trabalhar para evitar que o pior aconteça em solo pátrio. Aqui, não é somente a legalidade que está em causa, é também a justiça, o que parece contraditório, mas não é. A Lei pode determinar uma coisa, mas aquilo que é justo de se fazer ser outra.
Adelino Buque
Hoje, a nossa campeoníssima faz anos. A Lurdes Mutola é uma das grandes personalidades ímpares da Pérola do Indico. O seu trabalho fê-la conquistar um lugar na história do desporto do planeta terra. Ela tem um lugar na glória. Em condições normais, numa sociedade sedenta de referências e verdadeiros símbolos, ela merece uma estátua similar a de Eusébio da Silva Ferreira. Já é tempo de se colocar, pelo menos, um busto dela (pode ser de gesso, o mais barato) no Parque dos Continuadores na Cidade de Maputo. Com esse mínimo gesto de reconhecimento público ganharia a capital, o País e o mundo.
O antigo juiz-conselheiro do Tribunal Constitucional, Teodato Hunguana, insurge-se contra o legalismo eleitoral, que remete para os tribunais a aferição do sufrágio universal, e sai em defesa de Samora Machel Júnior e de Mulweli Rebelo contra os seus detratores internos na Frelimo. Num texto escrito no quadro do actual contexto de crise eleitoral em Moçambique, e partilhado com “Carta”, Hunguana abre aquele que deverá ser, a nosso ver, o debate central nos próximos temos em matéria de gestão eleitoral: como reverter a actual judicializacão do voto e devolver a sua soberania perdida (a soberania do voto)?
Eis o texto integral:
As eleições autárquicas, cujo desfecho definitivo só irá acontecer com as decisões do Conselho Constitucional, e enquanto não acontece, vão dando espaço, não só para o que é mais visível, que são as manifestações de repúdio ou de celebração, de uns e de outros, como de revelações sobre como elas foram realmente organizadas e decorreram, e também de ulteriores desenvolvimentos que vêm ocorrendo á volta e por causa das mesmas. Tudo isso abre, amplia e alimenta, o espaço para análises e comentários nas redes sociais, nos órgãos de comunicação social, públicos e privados, e em conversas a todos os níveis. Pode-se afirmar, sem grande margem de erro, que este é o assunto dominante da vida nacional, desde a família, célula base da sociedade, até ao espaço público mais amplo, de forma contínua e ininterrupta, desde o dia 11 de Outubro.
Por isso, quer se queira quer não, este é um assunto que não precisamos de o procurar, porque ele vem a nós, nos persegue, nos entra em casa, nos inquieta, interpela e questiona, não deixa ninguém indiferente. Obriga a preocuparmo-nos, a reflectir seriamente. Tanto que não é lícito presumir que o silêncio de quem quer que seja, só possa ter um significado, qual seja…de assentimento, concordância ou cumplicidade. Esse não é o único significado, longe disso. E não é por várias razões objectivas, já devidamente identificadas por quem se esforçou por analisar as razões de um silêncio que é institucional e organizado como componente essencial de um sistema de poder. A partir de certos partidos, que não careço de nomear, e, depois, na sociedade e no Estado. Portanto, além das vozes em silêncio, de que se tem falado, temos vozes silenciadas, inúmeras, e para ouvir estas vozes basta ter ouvidos de ouvir e curar em ouvi-las. Mas deixemos este intróito sobre o silêncio e vamos adiante ao que interessa, até porque, no que me diz respeito, trata-se, uma vez mais, de romper esse silêncio. Então vejamos:
Não obstante as questões que envolvem este processo eleitoral, e o tornam problemático, não sejam de todo novas, por causa das mesmas, vemo-nos de repente na emergência de um momento decisivo e de grande perigo sobre o nosso futuro colectivo, sobre o destino do nosso País, na pendência de decisão sobre essas questões.
Não pretendo abordar aqui as questões de ordem estritamente constitucional ou legal, de foro criminal, meramente policial, organizacional ou procedimental. Importantes que são, essas questões têm merecido muita atenção, abordagem e discussão, e esperemos que do Conselho Constitucional nos venha finalmente a mais elevada e profunda consideração, ponderação e decisão sobre as mesmas. E não apenas de um ponto de vista estritamente legal ou legalista, como veremos adiante.
O que pretendo aqui reter, e relevar, é a abordagem de um ponto de vista e de um ângulo que, salvo poucas excepções, não tem sido privilegiado, sendo no entanto, a meu ver, o que é de maior relevância, visto que deve preceder todo o processo, deve acompanhá-lo em todo o decurso, e deve ser preponderante e determinante em todas as decisões que se tomem, até ao seu desfecho. Refiro-me ao fundamental ponto de vista ético e moral.
Deste ponto de vista, quero reportar-me em primeiro lugar ao Comunicado da CEM, pela inquestionável respeitabilidade e credibilidade dessa instituição na sociedade moçambicana.
Antes de mais a Igreja Católica não se limitou ao papel de simples espectador do desenrolar do processo. Tal como em eleições anteriores, como faz questão de nos lembrar, a Igreja Católica fez parte do grupo de observadores eleitorais da Comissão de Justiça e Paz, que, por sua vez integra o Consórcio Eleitoral «Mais Integridade».
E é nessa condição que o Comunicado da CEM, além dos «ilícitos e irregularidades eleitorais, uns mais graves que outros, aqueles reportados oficiosamente e difundidos pelos Mídias sociais, e outros reportados pontualmente pelos observadores eleitorais», nesse contexto, acolheu relatos essencialmente sobre o seguinte:
- destruição de materiais de campanha, confrontos violentos, pessoas presas injustamente;
- actuação questionável dos que deveriam garantir a ordem e segurança das pessoas;
- diversidades de irregularidades na votação, contagem e justeza dos resultados pronunciados;
Neste cenário, constata, com muita preocupação, o crescimento dos níveis de incompreensão e de expressões de descontentamento no povo, sobretudo dos que se sentem trapaceados.
Face a esta situação, os Bispos Católicos de Moçambique fazem um veemente apelo «a todos os homens e mulheres de boa vontade para manter a PAZ, como valor supremo da nossa convivência e cidadania”, o que deve, segundo eles, compreender necessariamente:
1-Diálogo entre o Governo, os órgãos de gestão eleitoral, os Partidos políticos, a sociedade civil, o Conselho Constitucional, o Conselho de Estado;
2- Reposição da legalidade, sabendo que não há legalidade sem verdade, fazendo com que a força da lei seja a que dirima e ajude a superar toda a possível manipulação de resultados ou fraude eleitoral;
3-Busca da justiça, que é o maior caminho para a paz e para a convivência saudável e fraterna de todos os moçambicanos;
4-Respeito da razão e da ética para que se evite por todos os meios qualquer possibilidade de derramamento de sangue entre irmãos;
5- Oração, uns pelos outros, que nos une como criaturas do mesmo Deus nas diferentes religiões existentes no país;
6- Aos órgãos eleitorais, a reverem com responsabilidade e justiça todo o processo de apuramento dos resultados, garantindo que os resultados sejam o reflexo verdadeiro dos votos depositados nas urnas, e, portanto, da vontade do povo;
7- Às lideranças do partido beneficiário desta crise eleitoral que chamem à razão os seus membros e simpatizantes para aceitarem a contestação dos resultados como parte do jogo democrático, multipartidário e inclusivo, e colocarem a viabilidade política, social e económica do país acima dos interesses partidários de uma mera vitória eleitoral questionável;
8-Às lideranças dos partidos que protestam os resultados eleitorais, a que chamem à razão os seus membros e simpatizantes a fazerem-no de forma pacífica, seguindo os princípios consagrados na Constituição da República e os trâmites legais, sem violência;
9-As Forças de Segurança assumam o seu papel de protecção do cidadão, independentemente da sua filiação partidária e zelem pela manutenção da lei e ordem, sem extremismos, não intimidando nem favorecendo ninguém;
10-Que não falte a ninguém a coragem de fazer presente a justiça que conduza os moçambicanos à concórdia e convivência saudável como nação.
Transcrevi, no que julgo serem todos os seus pontos essenciais, este posicionamento dos Bispos Católicos, por duas razões: por um lado, a consciência que tenho de que nos encontramos a caminho do pico de uma crise, que não cessou de se agravar, num crescendo que agudiza a iminência de um perigo catastrófico sobre nós; por outro lado a consciência de que é justamente nesse posicionamento dos Bispos Católicos que está a chave para que o perigoso curso dos acontecimentos não se torne irreversível, e retomemos rapidamente o caminho conducente à normalidade e à paz.
Com efeito, a complexidade e os perigos desta crise não se compadecem com atitudes de surdez e cegueira, de obstinação, arrogância e soberba, hostis ao diálogo profícuo e necessário.
Ainda menos se compadecem com o refúgio em tecnicidades de ordem legal, ignorando ou violando o princípio de que a legalidade tem que assentar na verdade, e que não há legalidade sem a verdade. A legalidade que nos impede o caminho da verdade pode ser legalismo mas não é legalidade.
Assim como não haverá justiça sem a verdade. Donde, a paz só será paz verdadeira se for o fruto da justiça.
Todos sabemos que não existe senão uma ética, essa que tem na verdade o alicerce fundacional. Neste sentido a ética confunde-se com o Bem, e tudo o mais que não se identifica com ela, ou lhe é contrário, não é outra coisa senão o Mal, as forças do mal, as forças negativas, da destruição, contrárias à sociedade, ao homem, à Humanidade.
Ninguém está acima ou à margem da ética, como quem possa dispensar a luz do sol para ter como suficiente a luz da sua própria lanterna ou candeeiro.
No curso cego de uma continuação da guerra por todos os outros meios, perdemo-nos da razão e da ética que nos ditam que não há pior vitória do que aquela que se alcança, ou se arranca, contra o seu irmão ou compatriota. Porque ela só nos pode votar à desgraça da continuação da guerra.
Por isso este ponto de vista dos Bispos Católicos tem carácter ecuménico, e está virado para todos os cidadãos, independentemente da sua filiação religiosa, política ou partidária, da sua etnia ou nacionalidade.
Esta é a ética fundamental que vincula a Sociedade e o Estado, de tal sorte que é imperativo que todos, cidadãos, instituições, partidos e Estado, a tenham como ponto de partida para enfrentar e responder aos desafios que o presente processo eleitoral nos coloca.
«A César o que é de César, ao Povo o que é do Povo»
Chegados a este ponto, lancemos mão daquele ensinamento segundo o qual se deve «Dar a César o que é de César», significando isso que os cidadãos têm obrigações para com o Estado, cujo cumprimento é irrecusável. Os cidadãos pagam impostos, taxas e outras contribuições ao Estado. Porém esta não é uma relação unilateral mas contratual. É que, sendo eles cidadãos e não meros súbditos, o Estado tem em contrapartida obrigações incontornáveis para com eles. Donde que seja imperativo que «César dê ao povo o que é do povo». E entre o que «é do povo» avulta, em lugar cimeiro, respeitar e fazer respeitar a Constituição e fazer justiça aos cidadãos. E nisto se resume toda a ética, razão e justiça, e toda a lei.
Na situação com que nos confrontamos, a das eleições, isso significa garantir que prevaleça a vontade do povo expressa nas urnas, e não qualquer outra coisa, fruto de manipulações, de fraudes, ou de decisões tomadas por quem se refugie e enfie a cabeça nos labirintos, ou nos becos e impasses legalistas, criados para impedir ou dificultar o caminho da verdade. Com o fim de não se confrontar com a verdade da vontade expressa nas urnas, e assim passar por cima ou à margem da mesma.
Assumindo que «a vontade do povo é a vontade de Deus», é imperdoável agir ou interferir, a qualquer nível que seja, institucional ou pessoal, para a perverter! Ou não agir para a fazer prevalecer!
Assim, se César não der ao povo o que é do povo, César estará a provocar o tumulto e a revolta daqueles cidadãos, que não mais são súbditos, e que, eventualmente, em algum momento, podem reivindicar e chamar a si a soberania, de que são donos, para decidir sobre César, e para decidir sobre o seu próprio futuro. Portanto, ao fim do dia, terá sido César quem terá criado este estado de coisas, e não os cidadãos.
Alguns outros pronunciamentos
Apesar de o pronunciamento dos Bispos Católicos merecer a especial atenção que eu dei, não é o único a assinalar, deste ponto de vista ético. Com efeito, e deste ponto de vista, são para mim de destacar ainda os pronunciamentos que lemos ou ouvimos de Samora Machel Jr, de Mulweli Rebelo, e de Brazão Mazula. Qualquer deles pronuncia-se assente fundamentalmente no imperativo ético que é, essencialmente, o dos Bispos Católicos. Senão vejamos:
Samora Machel Jr, depois de reconhecer que «por todo Moçambique o clamor do povo é de desacordo perante os atropelos flagrantes à integridade das escolhas feitas pelos eleitores», e de declarar o seu «total desacordo e desdém aos actos antipatrióticos, profundamente antidemocráticos» que «…comprometem a paz que se deseja para todo o povo Moçambicano, independentemente das opções partidárias», e de lamentar que que «em momentos cruciais da nossa vida, como são as eleições, interesses pessoais e de grupo se sobreponham ao desiderato colectivo, pondo em causa o nome do Partido Frelimo e da nação que um dia ousamos edificar», conclui que: 1- porque aquelas «acções e comportamentos minam a confiança que os cidadãos depositam nas instituições «…é fundamental que se esclareça, antecedido de uma exaustiva investigação para identificar os responsáveis» e que «Sem excepções os culpados devem ser levados à barra da justiça..»; 2- que para «..o Partido Frelimo, é imperativo do momento a educação e qualificação de seus membros sobre a importância do respeito aos princípios democráticos, do estado de direito e a vontade do povo expressa nas urnas.»; 3-que «A nossa postura em relação aos futuros processos eleitorais deve ser guiada pela ética e integridade, em vez de sentimentos meramente partidários»; 4- que «Não podemos, nem devemos tolerar nas nossas fileiras, indivíduos que cometeram actos condenáveis, pois a nossa conduta não se coaduna com este tipo de postura»; 5-que «Devemos continuar a trabalhar incansavelmente para assegurar que a visão e os princípios fundamentais do partido sejam restaurados e protegidos».
Mulweli Rebelo, no mesmo espírito, diz-nos na sua carta: 1-«Estamos actualmente num processo de eleições, em que está claro que o partido está envolvido em actividades questionáveis, talvez por saber que está prestes a perder. Isto não é algo que pode ser ignorado ou justificado»; 2- «Pessoalmente, sinto vergonha por fazer parte de um grupo elitista que continua a apoiar cegamente um partido ignorante e arrogante, sem uma avaliação crítica das suas acções, mas pelos benefícios pessoais e vantagens…»; 3-«Não foi para isto que nossos pais lutaram»; 4- «Que legado queremos deixar para os nossos filhos? De lambebotismo? Covardia de pais que seguiram a direcção de corrupção e da bajulação em benefício próprio? Como jovens podemos questionar juntos e tomar acções que busquem mudanças, escolhas que estejam alinhadas com a justiça, a transparência e o bem-estar não apenas deste grupo»
Estes são dois exemplos dos jovens da geração seguinte à minha geração, a geração dos seus pais. Sem dúvida que eles se situam na continuação, e reivindicam a restauração e preservação, dos valores e princípios pelos quais os seus pais tanto lutaram e se sacrificaram. O seu posicionamento significa a sobrevivência e perenidade desses princípios e valores fundamentais e é à luz dos mesmos que analisam e avaliam a situação que vivemos. Construindo e argumentando com solidez e elevada consciência cívica e patriótica, com maturidade.
O ponto de convergência entre o pronunciamento dos Bispos Católicos, e agora também o do Conselho da Igreja Anglicana (que acabo de conhecer pelos resumos dos telejornais já depois de terminado este meu texto), e os pronunciamentos de Samora Machel Jr e Mulweli Rebelo, é justamente a razão e a ética que devem iluminar-nos e guiar-nos a todos, cidadãos, instituições, Estado, para fazer prevalecer a verdade da vontade expressa nas urnas, ou seja, a vontade do Povo.
Finalmente, e neste contexto, o posicionamento de Brazão Mazula é uma inestimável contribuição, em convergência com as que antecedem, na medida em que:1- dá-nos os instrumentos de análise que permitem compreender melhor como funciona todo o sistema, pois que se trata de um sistema e de uma engrenagem; 2- de como nada acontece acidentalmente, como se fossem actos isolados, por erro ou por iniciativa individual, mas de forma orientada, organizada, portanto premeditada.
Brazão Mazula, ao introduzir os conceitos de uma CNE formal e de uma CNE real, de um STAE formal e de um STAE real, ilustra como, na prática, funcionam os mecanismos daquilo que, no contexto da análise da separação dos poderes no nosso País (isto é, da ausência real da separação dos poderes e da não despartidarização do Estado), eu designei de «centralismo presidencialista absoluto».
E a grande vantagem de Brazão Mazula é que ele conhece bem estas instituições, esteve envolvido no momento da sua emergência, do seu problemático parto. Acompanhou depois, como nós, o seu crescimento, e constatou, também como nós outros, a forma como a cada passo, a cada alteração, seja da Constituição seja das leis pertinentes, essas instituições foram sendo ajustadas de forma útil ao sistema de «centralismo presidencialista absoluto». Para podermos entender melhor como o problema não está propriamente nelas, sem que isso signifique isentar quem quer que seja das suas responsabilidades pessoais e de cidadania.
Não encerrarei este texto que já vai longo para o que era minha intenção( infelizmente não tive tempo para ser mais breve), sem um apontamento crítico a algumas vozes que criticam Samora Machel Jr e Mulweli Rebelo, por falarem «fora das estruturas». Na realidade só por indesculpável distracção ou por declarada má-fé se pode fazer tal crítica. É que por um lado se fala de um «silêncio ensurdecedor» de dentro da Frelimo, mas por outro lado quando se fazem ouvir corajosamente estas vozes, que são bem de dentro da Frelimo, lançam-lhes essa crítica. Sejamos honestos…ou somos intelectuais, analistas, comentaristas, jornalistas, livres e independentes, ou então se é para exigir publicamente que os membros doa partidos não saiam da caixa e se mantenham no silêncio do «falar só nas estruturas», acho que se deviam candidatar a membros dos «grupos de choque» organizados nos partidos para manter essa «lei e ordem». E, para não me alongar mais, permito-me remeter esses críticos ao capítulo sobre o «Debate interrompido» do Volume I de «À sombra da Utopia», de José Luís Cabaço, e ao comentário que eu fiz sobre o mesmo em entrevista ao semanário Savana.
Teodato Hunguana
26.10.23