Desde a morte do famoso rapper Moçambicano, Edson Lopes ou simplesmente, Azagaia, o protesto tem sido das palavras mais frequentes das esquinas dos centros urbanos de Moçambique. É que o malogrado deixou uma expressão pouco habitual, no seu significado, mas forte, principalmente entre seus fãs, como também para aqueles que pouco ou nada sabiam sobre Azagaia: Povo no poder! Esta expressão não é literalmente de ânimo leve, leva consigo um conteúdo revolucionário. Sucede que nos principais centros urbanos, fãs e populares decidiram organizar marchas, também pouco comuns, em homenagem ao músico, mas com reacção brutal da Polícia da República de Moçambique. Afinal, por que razão as marchas em memória a Azagaia foram alvo de repúdio dos gestores do poder do Estado, recorrendo ao monopólio do uso da força? Por que razão a Frelimo e/ou seu governo inviabilizaram as marchas?
A reacção da Polícia sugere explicações diversas e adversas apresentadas por políticos, analistas, jornalistas e fãs do finado Azagaia. Povo no poder, não é expressão politicamente bem-vinda, e para o político no poder, todo o cuidado é pouco. Parece que os políticos foram aos dicionários e livros de história da palavra RAP para perceber a sua origem. É que, etimologicamente, rap significa “soltar um golpe rápido, repentino e certeiro”. Como género musical, o rap é de origem afro-americana, como bem sabido, minoria por muito tempo subjugada nos Estados Unidos da América. Do lado Moçambicano, Azagaia é instrumento de caça e guerra que lembra figuras de resistência ao coloniallismo como Ngungunyane, Maguiguane no Império de Gaza, e a batalha de Coolela em Fevereiro de 1895. Eis, também, o Gwaza Mthine, Batalha de Marracuene entre as forças de Zixaxa e os colonos portugueses.
No percurso da democratização, entre finais de 2010 e inícios de 2011, ocorreu um evento que levou à emergência de democracia e reformas políticas: a Primavera Árabe. A onda iniciou na Tunísia, quando um jovem de 26 anos de idade optou por emulação-própria. Num suicídio raro, um jovem vendedor de rua, Mohamed Bouazizi, protestando contra o tratamento da polícia local, decidiu incendiar-se, o que foi culminar em demonstrações populares e numa adesão massiva dos tunisinos contra o regime ditatorial do então Presidente Zine al-Abidine Bel Ali. Os protestos decorreram também com mobilização massiva via redes sociais. Tratou-se de um evento que pôs termo ao regime ditatorial, no que se chamou de “Revolução de Jasmim” em Janeiro de 2011.
Povo no poder! Literalmente interpretado, é que o povo procuraria tomar o poder contra um regime ditactorial ou autoritário. Contudo, golpe de Estado num país não se avisa, eis a razão da aprovação ou aceitação das edilidades para a realização de marchas, supondo-se que a Polícia estaria presente para acompanhar a marcha. Indubitavelmente, não se poderia procurar pelo poder do povo se a democracia estivesse em vida. Na altura da Primavera Árabe, a região era liderada por ditadores, partindo pelo regime da Tunísia e passando pela Líbia, Marrocos, Argélia e Egipto, em África, mas também se estendendo para Síria, Bahrain, Jordânia e Oman. De todos os protestos, a Primavera Árabe teve sucesso apenas na Tunísia e no Egipto, onde Osni Mubarak foi deposto após quase 3 décadas de ditadura.
Se da Primavera Árabe houve concessões em vários países, por que razão alguma ala da Frelimo não teria receio de um possível ‘Verão Negro’ Azagaia, ou mesmo se estendendo, ocorreram protestos no Kenya e África do Sul em curto espaço de tempo. Não porque os três países sejam exemplos de ditadura, mas porque golpe de Estado não ocorre apenas em países não-democráticos. Mesmo que assim fosse, Moçambique, no ranking da Economist Inteligence Unit, é país de regime autoritário. Mesmo com a realização de eleições periódicas, nos últimos 4 anos, Moçambique foi sucessivamente classificado como país autoritário. Seria uma Onda de Verão Negro possível?
Marchar em homenagem ao jovem de “Povo no Poder” não nos pode garantir que um golpe de Estado ocorresse. Porém, somente a realização da marcha ganharia algum significado ‘inédito’. Está claro das mensagens de alguns participantes que viram sua expectativa de marcha frustrada pelo uso excessivo da força da polícia. Aliás, mesmo citadinos que não pretendiam marchar, foram vítimas de ‘inédita brutalidade’ da polícia em zonas urbanas. Diga-se realmente, brutalidade pelas imagens passadas pelas redes sociais, canais televisivos e fotos de outras fontes, para além do pânico gerado, principalmente na cidade de Maputo, onde se localiza a Ponta Vermelha, o centro do poder do Estado Moçambicano.
Quelimane foi dos exemplos de marcha violência visível, quiçá pela visível imagem do Edil Manuel de Araújo, sendo, simultaneamente, fã do Azagaia e membro da Renamo. Nampula registou casos de violência da Polícia, como confere o espancamento de Gamito dos Santos, organizador da marcha. Tantas cidades em Marcha soltando ‘povo no poder’ sugerem significativa expressão de protesto contra algo que não vai bem na sociedade Moçambicana. E as marchas pacíficas, como esclarecem alguns juristas, não carecem de autorização, apenas informação aos órgãos locais. Mas, por que razão autorizar para depois recuar recorrendo à brutalidade da Polícia em Maputo? Nesta memória a Azagaia, poder-se-ia antever uma reivindicação contra o alto custo de vida no País, mas qual é o problema, o clamor nestas circunstâncias faz parte da liberdade de opinião e expressão previsto na Constituição.
Alguma justificação oficialmente apresentada e em momento pontual poderia sugerir algo detectado pelos Serviços de Inteligência Secretos do Estado (SISE), mas tal não aconteceu. A verdade é que menos de 2 dias antes das marchas, o presidente da Frelimo, Filipe Nyusi, afirmou que no seio da Frelimo havia infiltrados que tentam criar divisões no seio do Partido. Conforme o reportado no Jornal o País de 16 de Março de 2023, Nyusi afirma que “há organizações da sociedade civil que querem destruir a Frelimo”. Não é difícil especular que algum serviço secreto tivesse encontrado sinais ou informação sensível para o regime do dia. Povo no poder pode vir de ‘infiltrados’ da causa considerada uníssona no Partido Frelimo.
Não é de falso alarme que alguém do topo do poder ordenasse a Polícia a fazer o uso da força contra as almejadas marchas pacíficas. A Polícia é instituição do Estado e não de um Partido, assim sendo, a Polícia da República de Moçambique não devia ser politizada, mas sim cumpridora da Constituição da República, garantido apenas a segurança, manutenção a lei e ordem e não criar desordem brutal contra cidadãos que pretendiam marchar pacificamente. Ngungunyane, Maguiguane, Mahazule, Matibzane (Matibejane), Zixaxa não fizeram marchas pacíficas, usaram suas Forças de Defesa contra claros e declarados ataques dos portugueses contra o Estado de Gaza e seus satélites. Em que momento terão os fãs de Azagaia declarado usar Azagaias contra o Estado e governo?
A Primavera Árabe fracassou em regimes muito intolerantes e violentos. Poucas concessões, se é que assim podemos entender, ocorreram em muitos países árabes, a resposta foi de forte repressão por parte da polícia e militares subservientes aos regimes ditatoriais. Podemos equiparar isso à brutalidade da Polícia num hipotético ‘Verão Negro’ fracassado num país não-democrático? Talvez sim, talvez não. Mas esta pode ser uma das explicações do abuso do poder para fins político-partidários, em detrimento da legal marcha legal em homenagem ao finado músico Azagaia.
Contra simples hipóteses, a verdade é que a Frelimo repudiou a realização das marchas. O impedimento, no entanto, não carecia da intervenção da polícia da República de Moçambique, a menos que tal tivesse sido solicitado pelos Concelhos Autárquicos em questão. Mas este não foi o caso. A pronta e brutal reacção da Polícia foi em momento cujas justificações pouco podem ser aplicadas. Aos fins-de-semana, o consumo de álcool é comum ao cair da tarde e período nocturno. A questão que se pode colocar é: em que momento da manhã os participantes das marchas teriam consumido álcool para irem às marchas em estados de embriaguez? Se estivessem sob efeito de estupefacientes, em que momento e local o teriam feito? Se considerarmos o consumo de estupefacientes, por que razão os usuários de droga não foram flagrados e/ou detidos contra tal acusação?
Outrossim, a Polícia veio, dias depois, justificar sua brutalidade dada a participação de membros de organizações da sociedade civil e de partidos políticos. E que dispositivo legal os inibe de participarem? Dos membros de organizações da sociedade civil, serão os infiltrados no Partido Frelimo? A verdade é que a lei, a meu ver, não inibe qualquer pessoa com tal vontade de participar de marchas deste género. Serão os políticos e membros das organizações da sociedade civil como Manuel de Araújo, Venâncio Mondlane, Quitéria Gueringane, Fátima Mimbire entre outros cidadãos proibidas de ser fãs de determinados músicos? Será que entre os participantes das marchas não havia membros da Frelimo fãs da música do finado Azagaia?
Muitos políticos do Partido Frelimo, incluindo o Presidente Nyusi acham que “os Moçambicanos são um Povo de paz” e membros de alto nível do Partido Frelimo. Será verdade ou tratar-se-á de antagonismo de perspectivas no seio da Frelimo? Recuemos às palavras do Presidente Armando Guebuza aquando do incêndio às instalações do Jornal Canal de Moçambique, cuja história, segundo Presidente Guebuza “é terrível. Não faz sentido! Não faz sentido! Nós defendemos a liberdade e trabalhemos para que essa liberdade permaneça, porque de contrário, é voltar! É aquilo que nós tínhamos no tempo colonial. Não podíamos escrever nos jornais; dos outros sequer. E quando podemos escrever, então tira-se o jornal? Vamos escrever aonde? No chão?” No fenómeno Azagaia, poder-se-ia dizer: nós lutámos pela liberdade, lutamos pela democracia! Não lutámos pela violação da Constituição da República e fazer uso abusivo da força. Não faz sentido! Se não podemos marchar legal e pacificamente, como é que vamos marchar?
Há tempos, neste espaço, apelei para que se integrasse o “barman” e o taxista no Sistema Nacional de Saúde (SNS) por mérito da contribuição destas profissões na saúde pública, concretamente na prevenção e mitigação de algum tipo de mal-estar ou mesmo de doenças como a depressão e o AVC (Acidente Vascular Cerebral) que possam ocorrer com os seus clientes.
Hoje o apelo é para a integração dos “Mambas”, a selecção nacional de futebol de Moçambique, no Instituto Nacional de Gestão e Redução do Risco de Desastres (INGD) dado que os efeitos da sua prestação, cada vez que entra em acção, em campo ou fora dele, assemelham-se aos dos ciclones e depressões que regularmente assolam o país.
Uma vez integrado, a possibilidade de prevenção e gestão dos seus efeitos terão uma outra performance, sobretudo na melhoria do alerta sobre o risco de ocorrência de desastres. Por exemplo, para o jogo de Moçambique desta terça-feira já estaria a circular nas redes sociais os avisos/alertas do INGD e do Instituto Nacional de Meteorologia, INAM.
O alerta/aviso do INAM:
“A partir da noite desta terça-feira, o INAM prevê a ocorrência de ventos com rajadas fortes que poderão alcançar cifras já mais vistas, ocasionando agitações cardíacas e a queda de ondas lacrimantes com alta densidade e intensidade. Segundo o INAM, os efeitos serão sentidos em todo o país e na diáspora moçambicana”
O alerta/aviso do INGD:
“O INGC pediu ao governo e este activou o alerta vermelho em todo o país na sequência da aproximação do fenómeno tropical “Mambas” cuja entrada está prevista para esta terça-feira, 28 de Março, no Estádio Nacional do Zimpeto, arredores da Cidade de Maputo. Segundo o INAM o fenómeno “Mambas” traz consigo um alto risco de ocorrência de agitações cardíacas, prevendo-se inundações, particularmente em zonas urbanas. Face a este cenário, O INGD já pré-posicionou meios de busca e salvamentos, bens alimentares e tem em prontidão um centro de acomodação na Vila Olímpica, nas imediações do epicentro”.
Por sua vez, na sequência destes alertas/avisos, iniciativas da sociedade civil nacional e internacional já estariam a mobilizar recursos adicionais para acções de sensibilização, participação em operações de resgate e no apoio material às vítimas do fenómeno tropical “Mambas”.
“Roubei” este título ao Areosa Pena, cronista de proa irresistível de ler em todos os momentos. Passam décadas após a sua morte, mas o cheiro da lavra deste personagem de ascendência judia, vai continuar a gotejar na memória em determinadas circunstâncias da vida, como nos dias em que o vento sopra com intensidade e os barcos não podem fazer a travessia entre Inhambane Maxixe, deixando por terra, consequentemente, a necessidade urgente das pessoas chegarem aos seus destinos.
Se houvesse a ponte teríamos maior fluidez de tráfego, os ventos não seriam condicionante, mas nunca será redundante dizer isso embora haja quem pense de forma diferente. Quer dizer, a cidade de Inhambane é um lugar particular, é uma península, tornando-se portanto a única capital provincial de Moçambique por onde não se passa. À esta urbe só se chega e se sai da mesma porta. Daí a pacatez, o silêncio que alguns inergúmenos teimam em vituperar com estúpidos decibéis em todos os bairros, perante a incapacidade das autoridades municipais e dos próprios líderes comunitários.
Então, se houvesse a ponte a cidade seria escangalhada, diferentemente do pensamento de Areosa Pena que defendia essa infraestrurura. Ou seja, o movimento de viaturas e pessoas iria crescer sem controle, matando toda a calmia dos tempos. Mesmo assim há aqueles que dizem que a economia da cidade ganharia outra dinâmica, uma pujança que nunca teve. Há outros ainda que vão pela linha de que Inhambane como cidade não tem mercado para grandes esfervescências, uma postura que nem a construção da ponte mudaria.
Se os próprios moradores da Maxixe e negociantes locais nunca se interessaram por Inhambane, não serão os grandes emperesários que rasgam a EN1 em demanda de outras províncias para fazer dinheiro, que irão desviar suas atenções para uma cidade sonolenta, é perca de tempo. A ponte se calhar vai beneficiar a pequenos comerciantes e reduzir o sofrimento das pessoas sobretudo em dias de mau tempo. De resto pode ser um gigantesco investimento com poucas possibilidades de retorno.
O governo provincial de Inhambane já ensaiou em tempos um projecto de construção desta infraestrutura que merece debate. Até porque chegou a haver uma aproximação a empresários chineses nesse sentido, cujos resultados não são conhecidos. E enquanto não se toma alguma decisão, permanece o dilema: é viável a construção da ponte Inhambane-Maxixe?
Não nos parece ser contraditório afirmar que o espaço digital veio ‘revolucionar’ a maneira como comunicamos. No campo das mobilizações sociais, Manuel Castells (2012) já havia designado tal realidade com o que chamou de ‘’redes de indignação e esperança’’ [Networks of Outrage and Hope], onde examinava o papel das redes sociais da Internet na formação do activismo social e político. Concentrando-se na Primavera Árabe e no Movimento Ocupar, Castells argumenta que tais movimentos foram organizados através de tecnologias de comunicação em rede, que permitiram aos activistas partilhar informação e coordenar as suas acções de forma rápida e eficiente.
Castells também explora os contextos culturais e políticos que deram origem a estes movimentos, argumentando que foram alimentados por um sentimento de frustração com os sistemas políticos existentes e por um desejo de maior justiça social. O autor enfatiza, por fim, a importância do horizontalismo e da organização sem líderes nestes movimentos, bem como o papel dos jovens na condução da mudança social.
Numa outra dimensão, encontramos o anglicismo « cancel culture » ou então ‘’cancela a cultura’’, um acto que designa um conjunto de factos relacionados com a ‘’nova censura’’ no espaço digital, cujo campo privilegiado de manifestação diz respeito à universidade e à cultura. Este fenómeno surgiu acoplado ao movimento Me Too, em 2017, e nessa altura a intenção primordial era não mais do que ostracizar os agressores, ora denunciados pelas vítimas, exigindo que exibissem comportamentos de reparação e de arrependimento para com as mesmas. Teoricamente, diga-se, a ‘’cultura do cancelamento’’ pode ser descrita como a tentativa activa de silenciar uma pessoa que expressou uma opinião que ofendeu alguém quer tenha sido intencional ou não.
No campo político, o historial remonta para Junho de 2020, quando a revista americana Harper’s publicou uma carta aberta intitulada ‘’A Letter on Justice and Open Debate”. Na mesma carta, era referido que a resistência ao então Presidente Donald Trump não devia conduzir os cidadãos ao dogmatismo ou à coerção. Tal carta foi co-assinada por 150 escritores, artistas e jornalistas, sendo que entre eles estavam várias figuras históricas da esquerda americana, como Noam Chomsky, Gloria Steinem e Michael Walzer. A carta apontava, assim, um clima intelectual de ameaças, denúncias e até o medo que os americanos chamam ‘’cancelar a cultura’’ ou a cultura da censura. Nascido nas universidades mais prestigiadas, centrado em questões de raça e género, este clima é semelhante ao McCarthyismo de esquerda, que infestou os meios de comunicação social, o mundo da cultura e até mesmo a vida empresarial.
Voltando para Castells, para o caso de Moçambique propomos o que entendemos por ‘escapatória juvenil’, um mecanismo de contornar a impossibilidade da presença física através da mobilização de rua no país. Assim, os cidadãos no geral, os jovens de forma particular, encontram nas redes sociais da Internet, uma forma de escapar aos actos de sevícia de suas liberdades que não são garantidas no espaço físico (offline). Adicionalmente, as redes sociais da Internet fornecem uma aparente segurança que não pode ser garantida em sede de uma demonstração popular por meio da manifestação ou da associação colectiva directa. Dessa forma, o espaço digital é transformado num verdadeiro ‘tubo de escape’, para, por via dele, expor diferentes opiniões.
Por conseguinte, como ilustra o título do presente texto, o termo ‘cidadania de fúria’ é nossa invenção para designar o exercício de actos cívicos, tidos como resposta à ocorrência de um evento ou realidade que viola os direitos cívicos e participativos de uma certa franja populacional, no caso em apreço os jovens, bem ‘’o mutismo dos bons’’ perante tais violações. Para nós, a ‘cidadania de fúria’ é manifestada por meio de escritos, imagens (memes, sobretudo) e palavras codificadas, que induzem para o posicionamento que deve ser entendido como repúdio social e político diante de uma ‘irritação colectiva’. Ou seja, os já conhecidos actos de ‘cancelamento’ e ‘banimento’ de artistas, fazedores de cultura, academia e alguns órgãos de comunicação são disso um exemplo.
Porém, para nós, tais ocorrências não são necessariamente uma mensagem contra os cancelados ou banidos. São, na verdade, contra um modo de vida em sociedade que ao longo do tempo foi tido como aceitável por uns, enquanto outros viviam em situação de deploração social, económica e governativa, tendo como maiores afectados os jovens. Assim, em sociedades menos tolerantes e abertas ao pensar contrário como Moçambique, é nosso entendimento que as tecnologias digitais têm se mostrado como uma poderosa ferramenta para a mobilização social e política, permitindo que os jovens possam se organizar e expressar suas demandas e reivindicações. E, mais do que diminuir, tal realidade se espera que aumente nos tempos próximos.
Embora aparentemente funcionais, alguma atenção deve ser recordada sobre as actuais demonstrações de ‘’cancelamento’’, dado que em teoria os activistas são cidadãos que possuem uma opinião formada sobre algo e as suas acções tendem a ir no sentido do benefício último da sociedade. Tendo como base a análise feita em outros contextos [Observador, 2022], a ‘’cultura do cancelamento’’, bem como tudo que lhe está associado, assemelha-se mais a um linchamento social, uma forma pejorativa de justiça privada, de fazer cumprir a função jurisdicional sem a necessidade de esta estar adstrita a determinados órgãos de um dado Estado, através de um sistema organizado de justiça e, sendo assim, perante esta evidência, a ‘cultura do cancelamento’ pode facilmente ser sinónimo de abuso e excessos.
Considerados os elementos acima, uma pergunta permanece sem esclarecimento: se não fosse a escapatória juvenil no espaço digital e a ‘cidadania de fúria’, que opção resta aos cidadãos num contexto de fechamento das suas liberdades em Moçambique?
FIM!
Nelson Saúte
O Poeta Luís Carlos Patraquim nasceu, em Maputo, a 26 de Março de 1953. Cresceu na periferia da cidade. O pai – a família era oriunda de Lagos, no Algarve, em Portugal – foi funcionário dos Caminhos de Ferro e trabalharia, como mecânico de aviões, na DETA, que era a Divisão de Exploração dos Transportes Aéreos dos CFM: “E o teu silêncio, o teu silêncio, onde / Florescem, sangrentas, as acácias da Rua de Lidemburgo / E Lagos estremece em azul e punge” - escreverá numa pungente evocação ao pai: “Pela tarde onde caminho, / E a pedra se inscreve no sol que neva”. A mãe era uma leitora omnívora. Dos franceses Balzac ou Victor Hugo, passando pelo russo Fiódor Dostoiévski, aos portugueses Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco ou Antero de Quental serão os autores mais frequentados. Aos seis anos já lia. A escrita, a inquietude e a rebeldia tomam-no muito novo. Escreve sonetos à Antero e à Camões. Com 16 anos colaborava numa página juvenil no “Notícias”. No liceu integrou um grupo que tentou fazer um jornal – “Progresso”. Do malogro desse projecto até à “Voz de Moçambique” é um salto. Ali estavam alguns dos intelectuais considerados progressistas naquele tempo. Contacta com Eugénio Lisboa, Rui Knopfli, Homero Branco. O contacto com José Craveirinha é decisivo. Começa a conhecer outros nomes importantes. Um deles, Fonseca Amaral, que, na época, estava em Portugal.
O afã do jornalismo, que lhe surge precocemente, será também a expressão da sua “liberdade livre” (como queria Rimbaud), que não se isenta da sua intuição poética. Reconhecerá, anos mais tarde, influências indesmentíveis de José Craveirinha e Rui Knopfli nas suas primícias literárias: a realidade e a arte da palavra. Aliás, a sua poesia, não muito tempo depois, será uma simbiose poética, uma espécie de osmose. Fonseca Amaral é outra referência importante. A língua portuguesa, sabe-se, tem uma importante tradição poética. Patraquim beberá sobretudo de Herberto Helder e António Ramos Rosa (ambos portugueses). Carlos Drummond de Andrade será também essencial. Uma referência irrefutável.
O exercício de rebeldia levou-o a um exílio voluntário na Suécia em 1973. A ideia era integrar a frente libertária. Contacta o movimento, escreve uma carta solicitando adesão à FRELIMO. Entretanto chega o 25 de Abril e em finais de Janeiro de 1975 retorna a Moçambique. Integra “A Tribuna”, então dirigida por Rui Knopfli. São companheiros de redacção: Mia Couto, Julius Kazembe e Ricardo Santos. Com Mia e Kazembe experimentam a crónica literária, a crónica sobre o quotidiano. Integra, depois, o núcleo fundador da AIM (Agência de Informação de Moçambique). Mais tarde, desembarca no Instituto Nacional do Cinema e participa da aventura lírica do “Kuxa Kanema”. Torna-se roteirista. Vivia-se o alvoroço da construção do “homem novo”. O cinema que se intenta no arroubo dos heróis ilustra a época. As contradições são visíveis. Mesmo as que se omitem. O Poeta experencia um tempo aziago.
Quando, em 1980, publica “Monção”, na mítica colecção Autores Moçambicanos, do INLD (Instituto Nacional do Livro e Disco), Luís Carlos Patraquim afirma-se, indubitavelmente, como uma poderosa novíssima voz da poesia moçambicana. A literatura era então dominada por uma perspectiva acirradamente ideológica. Havia, na nossa poesia, um dominante tom exaltadamente engajado ou comprometido – a chamada poesia de combate. O livro e a poesia de Luís Carlos Patraquim são um escancarado momento de disrupção. Fonseca Amaral e Machado da Graça estão no INLD. Para quem sabe das circunstâncias que então vivíamos poderá até estranhar a inclusão desta obra e a sua publicação. Ela serviria, afinal, para demonstrar que o regime era democrático, que aceitava publicar livros que não coincidiam com a retórica dominante. Nada que impedisse que os prosélitos da revolução o atacassem ferozmente. Viam naquela proposta uma poesia que não ia ao encontro do povo. Acusaram-no de hermético, questionaram para quem escrevia, como escrevia e por que escrevia.
Em Março de 2020, Luís Carlos Patraquim publicou uma antologia intitulada “Morada Nómada”, que reúne a maior parte da sua obra poética deste o seu livro primeiro. O volume, organizado por Zetho Gonçalves, inclui livros editados entre 1980 e 2020 e um volume inédito “Kilimanjaro”. Da sua vasta lavra poética avultam: “Monção” (1980), “A Inadiável Viagem” (1985), “Vinte e tal Novas Formulações e uma Elegia Carnívora” (1992), “Mariscando Luas” (com Ana Mafalda Leite e Roberto Chichorro, 1992) “Lidemburgo Blues” (1997), “O Osso Côncavo e outros poemas” (2005), “Pneuma” (2008), “Matéria Concentrada” (Antologia poética, 2011), “O Escuro Anterior” (2013), “O Cão na Margem” (2017), “Música Extensa” (2017), “O Deus Restante” (2017). Para além disso, é autor da novela “A Canção de Zefania Sforza” (2010). Publicou, outrossim, as seguintes colectâneas de crónicas: “Enganações de Boca” (2011), “Ímpia Scripta” (2011), “Manual para Incendiários” (2012) e “O Senhor Freud nunca veio a África” (2017). Escreveu “Mestiçagens do Olhar” (2007) sobre a pintura de Chichorro. No domínio do infanto-juvenil: “O Gala-Gala Cantor” (2014) e “O Coelho que Falava Latim” (2014). Estas são as efemérides literárias de Luís Carlos Patraquim, que é também dramaturgo, guionista de cinema e jornalista.
A sua poesia é eclética e escora-se no conhecimento e na exegese da tradição poética que lhe é anterior, num diálogo com os poetas que lhe antecedem e com aqueles que ele elegeu como seus precursores. É, sem dúvida, uma poesia que se articula numa arrojada investida palimpséstica. Palimpsesto significa texto que existe sob outro texto. A escrita funda-se e refunda-se neste consecutivo exercício. A escrita de Luís Carlos Patraquim é inequivocamente palimpséstica. Há sempre um texto subjacente. O texto que ele sugere dialoga sempre com um que lhe é anterior.
Patraquim é um poeta de conhecimento, um poeta glosador de poetas, um poeta leitor de poemas. Um poeta de uma proeminente erudição. O seu léxico poético é depurado. Para muitos um poeta hermético, críptico, ininteligível, impenetrável. Quando se consegue adentrar no seu universo, porém, somos capazes de experimentar o assombro da técnica, da imagética nela emprestada, da beleza inesperada das suas metáforas. A poesia é sobretudo isso: a imagem, a alegoria, o tropo.
Luís Carlos Patraquim é um poeta que reflecte sobre o ofício e tem poemas que são a incessante busca e compreensão do idioma, da linguagem, da expressão, do código ou do sistema poético. Para além disso, a interlocução com os outros poetas, o que acontece nas epígrafes, nas citações, nas alusões ou nas dedicatórias, é também uma espécie de estabelecimento de dicção própria, de uma gramática própria, de uma voz própria.
Não caberia aqui falar de toda a sua vastíssima obra. Entre os seus livros, concita-me “A Inadiável Viagem,” que ele publica em 1985 – justamente quando o conheci e tive a láurea da sua amizade - e que retoma os traços distintivos de uma linguagem poética instituída no livro precedente (“Monção”), e anuncia, por assim dizer, aquela que virá nas “Vinte e tal Novas Formulações de uma Elegia Carnívora”, a obra com que culmina a trilogia iniciática. Creio, aliás, situar-se, aqui, precisamente, a importância capital desta obra estelar, e residir aí, justamente, a minha predilecção por ela.
Herberto Hélder, José Craveirinha, Carlos Drummond de Andrade, Paul Éluard, Fernando Pessoa (Ricardo Reis), Jorge de Sena, Jorge Guillén, Henri Michaux, Pablo Neruda acompanham-no nesse exercício palimpséstico. Para além dos textos citados destes autores, encontramos aqui um diálogo abundante e inteligível com poetas como Heliodoro Baptista, Rui Nogar, Sebastião Alba, Noémia de Sousa. Diria que em “A Inadiável Viagem” se amplia, sem logro, este exercício iniciado em “Monção” e que prosseguirá nas subsequentes formulações poéticas.
Escreve Luís Carlos Patraquim no poema “Elegia de Sábado”: “em coro te exigimos o sábado/ nós que ferimos o pensamento da carne/ e a quem deslumbra o hierático inútil pranto/ dos mortos habitantes de nós/ repetida barra fixa até à lâmpada do desejo/ e somos o cansaço desta espera nos jornais de domingo/ ilegíveis ainda de alguma letra/ de nós o fôlego obstinado da rua/ para que a descoberta da língua amanhã senhor/ nasça da fornicação do sábado”.
Aqui se pode intuir a desafeição em relação a uma realidade social dissemelhante do “tempo do canto / conquistado a sangue” exaltado, indiscutivelmente, na obra inaugural. Pouco depois de publicar este livro (“A Inadiável Viagem”) escreveu dois poemas violentíssimos sobre o tempo que nele, de alguma forma, anunciara: um deles, sem título, sobre os mutilados de guerra e outro – a duríssima “Elegia Carnívora”. Os textos em causa iriam integrar o livro subsecutivo.
Patraquim: “e somos o cansaço desta espera nos jornais de domingo”. Aqui está a chave e a expressão inequívoca do desalento, do cansaço, da astenia. Este verso denuncia um poeta distante daquele que, num poema em homenagem a Craveirinha, a dado passo, escrevera: “chama-se Junho desde um dia de há muito com meia dúzia / de satanhocos moçambicanos todos poetas gizando/ a natureza e o chão no parnaso das balas”. Alusão não só à “primavera de balas” (Craveirinha), mas uma manifesta sagração do tempo que então vivíamos.
Se em “Monção” encontramos o lirismo amoroso, encontramos textos que aludem a um diálogo intertextual com outros poetas, numa linguagem que se distancia da voz colectiva e colectivizadora, sem, no entanto, se exonerar de apostrofar a realidade social – Patraquim é um poeta que assume uma intervenção social –, em “A Inadiável Viagem”, temos isso e muito mais: temos o amor, o corpo celebrado da mulher (“a dicção do teu corpo”); temos a evocação da infância (que encontramos em Fonseca Amaral ou Noémia de Sousa - eis um dos eixos temáticos da poesia moçambicana: “Rua de Lidemburgo”: “da infância refaço esta clave nua/ a fisga de a sorver tão perto/ as goiabas rubras trazidas ao riso/ deste fermento que ora traduzo/ porque espero e no chão incorruptível/ a ternura dos dedos entreteçam o sono/ à sombra de um sinal que apeteça/ e outra vez na falésia da noite/ a metamorfose da água permaneça”); temos, sobretudo, uma realidade disfórica, o manifesto ocaso da revolução, o desalento ineludível. E nisso o título e o livro assumem uma biografia poética e uma trajectória pessoal irrefutável. Luís Carlos Patraquim partiria para Portugal no ano a seguir à publicação deste livro, onde vive ainda hoje.
Luís Carlos Patraquim: “À uma hora da madrugada somos deus/ aos látegos sobre os perfis das casas/ das frontes latejando voos de extenuados/ pássaros e batemos no poema. Abram/ Já não morremos nas mãos brincando/ do menino com dois anos de idade. / Assassinou-se, para não ser homem nem deus,/ nem perguntas de voos augurando/ metafísicas inúteis na ascensão de domingo/ à uma hora da madrugada.”
Este poema é de uma grande violência lexical e imagética, um dos mais ásperos de toda a literatura moçambicana. Um poema que exprime, com contundência, os anos 80 e a derrocada do sonho moçambicano, assassinado como o menino de dois anos, num dos textos mais pungentes, lancinantes e comoventes da poesia moçambicana no século XX:
“Batemos. Abram os estádios magníficos/ de todos os orifícios. Cuspam-nos/ o fogo que mata. Abram! / À uma hora da madrugada, meu deus. / Tão poucos a Sul, limpos e longe/ do país dos hiperbóreos. Tão já sem nada/ e um largo coração de ideias/ apodrecendo nas virilhas cortadas. / Ao perdido arfar de nós que nos perdemos, / matrissuicidas de deus na lixeira/ com mabandidos vídeos estilizando-nos/ em eléctricas úlceras de arco-íris, / nós voltamos. Dêem-nos os pulmões candongados/ em Tsalala, os polanulantes espantos/ depois das praças em comícios/ de núpcias sobre a gengiva dos dias”.
É como se escrevesse nesta “Elegia Carnívora”, poema de uma mordacidade inaudita, o epitáfio de uma época, na qual a morte de Samora Machel, em 1986, tem um significado mais do que simbólico: o abismo por onde resvalaram todos os sonhos. A desesperança evidente, o desconsolo que vaticina a viagem. Uma espécie de presságio, pressentimento, profecia.
Corrobora nisso, nesse mau agoiro, o poema sobre os mutilados de guerra: “Sentam-se sob as acácias no asfalto roto/ os mutilados com cigarros de embalar. / Nenhum som os recorta/ e todos os sentidos foram amputados. / Nem para a tarde crescem frustrados. / Esperam. Que inconclusa forma/ os limita em fórmula de serração? / Que ameaça os delira? / Nenhuma flor/ explode, poeta, no coração? / Os mutilados sonharão? Suas pernas? / O desejo, fruto podre adubando. Outra mão? / Que triste palavra os baba / no cigarro morto! Vendem. / Nenhum incesto os estanca. / À revelia do sol, os mutilados/ montam banca.”
O Poeta escrevera: “agora vou com amendoins na língua ínsula” e ficaria com os pregões a reverberar na memória: “agora Amêjoé vestiu a rua dobrou a esquina”. Ficariam belos e comoventes poemas que se entretecem na sua biografia. Num poema dedicado a Gulamo Khan proclama: “Escrevo, não obstante, um país solar, / rouca a língua que soluça em sintagmas antigos”. “A memória é isto. / Mas já não elido”. Ou: “Depois das elegias o alcandorado grito / sobre o deserto chão do poema”. Provavelmente, a viagem será a grande metáfora da sua biografia. A sua viagem a Ítaca. Os seus mitos matriciais.
Há nesta poesia, eu me atreveria a dizer: neste poema em continuum (que é a sua obra toda) mitos recorrentes, ainda que se encontrem cartografados numa “sintaxe de sombras”. Um desses mitos, a Ilha de Moçambique. Muhípiti: “É onde todos somos inúteis”. Ilha de Próspero, Ilha de Caliban. Ilha de Alberto de Lacerda (“Ó Oriente surgido do mar / Ó minha Ilha de Moçambique / Perfume solto no oceano / Como se fosse em pleno ar”); Ilha de Rui Knopfli (“Ilha, velha ilha, metal remanchado, / minha paixão adolescente / que doloridas lembranças do tempo / em que, do alto do minarete, / Alah – o grande sacana! – sorria / aos tímidos versos bem comportados / que eu te fazia”); Ilha de Eduardo White (“Amo-te sem recusas e o meu amor é esta fortaleza, esta Ilha encantada, estas memórias sobre as paredes e ninguém sabe deste pangaio que a Norte e na Ilha traz um amante inconfortado”); Ilha dos Poetas, Ilha de todos: “Onde na noite a Ilha recolhe todos os istmos / e marulham as vozes”. “Ilha, corpo, mulher. Ilha encantamento. Primeiro tema para cantar” - Luís Carlos Patraquim.
Poesia de outras viagens, poesia de todas as viagens. Em Lisboa encontramo-lo “mariscando luas” na casa do pintor onde “os amigos entram pela janela / de luz na tarde atlântica”, ou no café Martinho de Arcada, evocando um poeta amigo. Poesia aliás habitada de afectos e de poetas, de poetas mortos como Rui de Noronha, Reinaldo Ferreira, José Craveirinha, Noémia de Sousa, Rui Nogar, Gabriel Makavi, Fonseca Amaral, Gulamo Khan, Leite de Vasconcelos, Grabato, Dias, Sebastião Alba, David Mestre, Guilherme Ismael. Afinal, conclama o Poeta: “Não tenho mais legitimidade do que a de todos os mortos”.
Ou como escreverá, muitos anos depois, em “O Deus Restante” (2017): “Aqui onde o Zambeze se afoga na estreita garganta / depois da sumptuosa queda de Deus”. Este livro como “Musica Extensa”, do mesmo ano, são poemas únicos. Poemas em que acena constantemente ao Índico. O Atlântico não lhe ilude o referencial: “O Índico é um mar interior”. Com as suas fúrias, alegorias e tragédias. Poeta atento ao seu país. Poeta, na sua “Morada Nómada”, que lhe colige a obra, continua afinal a mesma voz, a mesmíssima voz inicial: “rigorosamente viajo no tempo / e não sei / não sei se é canto ou ave / o que canto”, como principiara: “com palavras faço a voz”:
“é preciso inventar-te porque existes
enquanto os deuses adormecem nas páginas dos livros
e o real é a infinita medida do canto”
Hoje, ainda e sempre, é preciso sobretudo essa “insurrecta linguagem do mundo”, “é preciso a insurrecta solidão de alguns dias” e “é preciso tudo como haver morte e flores” porque, agora como sempre, “nascemos hoje demasiado e vivos”.
A poesia de Patraquim sempre soou estranha. Um timbre fora do contexto da poesia que era comum produzir-se e publicar. Vivíamos, é preciso sublinhar, os primórdios da independência e estávamos, muitos de nós, imbuídos daquele fervor messiânico e revolucionário. Poesia que será também um acto de rebeldia contra um universo concentracionário que se vivia.
A importância de Patraquim também advém daí, dessa rebeldia, que iria informar a minha geração. Por causa do seu estro, do seu talento, da sua exuberância poética, do esplendor da sua metáfora, da ideia de que a poesia é a metáfora, da sua oficina burilada, da sua extraordinária capacidade imagética, da explosão das suas vibrantes imagens, o reino das imagens, da sua voz de eleito. Da sua iconoclastia, eu diria, finalmente.
Nesse tempo, que aqui aludo melancolicamente, o Poeta exercia uma espécie de sacerdócio para a geração que iria despontar nos anos 80 e que desalinha, por completo, dos ditames da época. A “Gazeta de Artes e Letras”, que ele empreenderia, entre 1984 e 1986, a convite de Albino Magaia, na revista “Tempo”, foi o esteio necessário para a nossa contradita. Patraquim era uma espécie de Papa, nas nossas letras, à época. Para além do facto de não ser alheio à “Charrua” ou às tertúlias da Associação dos Escritores. Naqueles tempos fervorosos, hóspedes da Cindoca às sextas-feiras.
Era, paradoxalmente, um tempo exultante, reconheço-o a esta distância. Éramos felizes e, provavelmente, não sabíamos. Estávamos imersos no desencanto que começara, então, a cansar-nos, por culpa de um quotidiano ingeneroso. Era o tempo do monolitismo político, no qual empreendemos a discordância. Eu reputo esse dissídio, essa dissensão, esse confronto. (“Por isso senhor dá-nos a humilde loucura do sábado”). Era a nossa matéria-prima e a marca distintiva da nossa geração. Mas nunca nos exonerámos do “amor da terra”, como queria o Poeta.
Releio a obra toda de Luís Carlos Patraquim e revejo nela a sua biografia. Volto aos seus poemas, torno às suas viagens, revisito os seus mitos, reencontro as suas elegias, as suas citações, os seus acenos, a sua sintaxe, a sua gramática, a sua constância, a sua erudição. A sua permanente viagem. A sua incessante busca da Ítaca. Retorno ao seu estro, ao seu exímio estro, aos seus deuses e epifanias. Como sempre é um empreendimento jubiloso.
Termino este cumprimento, no dia dos seus 70 anos, dizendo-lhe aquilo que T.S. Eliot, um dos seus poetas electivos, que ele apostrofa num dos seus mais belos e acerbos poemas (“Elegia Carnívora”), disse, num aceno florentino – Dante Alighieri concedera a Guido Cavalcanti –, de e a Ezra Pound: “Il miglior fabbro”, na dedicatória de “A Terra Devastada”. Não tenho dúvidas de que o Poeta Luís Carlos Patraquim é, hoje, entre nós, o melhor artífice.
\Kampfumo, 26 de Março de 2023