Chegou aqui ainda sem formação sólida no seu sangue de juventude, era imberbe. Confiava no tacto que no princípio criou-lhe receios numa cidade onde não conhecia ninguém, mas em pouco tempo pisou os pés com firmeza quando percebeu que poderia receber, nesta terra estrumada, mesmo que fosse a longo prazo, bons frutos, pois a semente que trazia não deixava dúvidas, era de um grande poder germanativo.
Mário dos Santos Pompeu - de seu nome completo - é um professor de educação física competente. Apesar de ser homem de amizades restritas, perto dele vamos sentir a afabilidade, a honestidade e a lealidade. Mora dentro dele a abertura de alguém educado, um profissional responsável com muita sede de ver os seus alunos voarem ao encontro da luz, como ele, que até hoje continua a planar sem qualquer desejo de aterrar. Ele quer se manter no cosmos.
Foi formado na década de oitenta, na catadupa de jovens que tinham uma missão sagrada de formar os outros para a luta continuar, e e ele – depois do curso - seria lançado à terra dos bitongas de onde nunca mais saíu, e nem quer ouvir falar dessa ladaínha de “sair ou não sair”. A sua vocação é o atletismo, é por isso que sorriu abertamente quando lhe apresentaram a pista “Sete de Setembro”, onde trabalhou com denodo ao longo de muitos anos, ao mesmo tempo que dava aulas na Escola Secundária, fazendo acompanhamento aos talentos que ia descobrindo, alguns deles levados aos “nacionais” em representação da província de Inhambane.
Nunca abandonou a pista desde o primeiro dia que a pisou, mesmo vendo que aquela “catedral” ia desmoronando aos poucos e poucos, mas a responsabilidade de restaurar este lugar desportivo não é do Mário dos Santos. Até porque já o dissemos muitas e não nos cansaremos de repetir isso até ao fim, “se um dia alguém pensar em homenagear este manhúngwè (natural de Tete), as cerimónias devem acontecer na pista “Sete de Setembro”, é aqui onde vai borbulhar grande parte do sangue do Santinho, como os amigos lhe tratam.
Hoje porém, passados cerca de quarenta anos após desembarcar um jovem vindo de uma distância de 1500 km sem nada nas mãos para além de uma sacola leve pendurada no ombro, este homem deixou para trás o testemunho dos quatrocentos metros, o dardo, a fasquia, as barreiras, o disco e o colchão de espuma sobre o qual ele mesmo caíu várias vezes na demonstração para os seus alunos. A pista inteira. É isso que fazia viver Mário dos Santos, um ser humano respeitado por todos no bairro onde mora e em toda a cidade, pela sua simplicidade e humildade. Ele é um exemplo de trabalho e de como se deve viver numa sociedade.
Hoje está aposentado, com poucas probabilidades de voltar à pista que lhe ajudou a moldar e fortalecer a sua personalidade, o seu carácter. Mas mantem os mesmos seus amigos de convívio restrito, com os quais vai renovando a tecelagem da vida, mostrando que podemos continuar a viver com jovialidade de espírito perante as pedras do caminho, trazendo para o presente todas as coisas boas que fizemos. É isso que catapulta este homem, este professor de educação física talhado para o atletismo, cujo perfume que ele aspergiu em toda a pista “ Sete de Setembro”, jamais deixará de vibrar na parede da memória.
Edson da Luz, ou simplesmente Azagaia e popularmente mano Azagaia – não há elogios à altura da sua obra.
Jovem moçambicano que se destacou com seus versos carregados de mensagem de caris sociopolítico forte. Viveu e fez viver; de certeza sua obra figura entre as mais importantes e icónicas do mundo do hip hop lusófono. Sua voz representa uma expressão sublime do grito de revolta do povo.
Lembro-me do nosso primeiro encontro na discoteca Coconuts no inverno de 2006/7 onde partilhamos vassouras, baldes, esfregonas e muito mais, para garantir que o chão da pista de dança estivesse sempre impecável – este era o nosso mandato na altura. Lembro-me também que nos momentos mortos da noite, em que falávamos sobre vários aspectos da nossa sociedade. Percebi naquele momento que estava perante alguém com um pensamento fora da caixa e de uma cultura social altamente progressista.
Sinto-me culpado por escrever estas linhas apenas agora que partiste. Sinto-me igualmente triste porque não consegui te dizer o quão te admiro, que sou teu fã e que me identificava com a sua maneira de estar em prol de uma maior justiça e igualdade social. Quando estavas entre nós fisicamente, adiamos uma sentada para falarmos livremente sobre a vida, e perdi uma grande oportunidade de dizer sem rodeios que tu representavas muito mais que um músico. Tu encarnaste a dor de todo um povo, a voz dos oprimidos. Cantavas aquilo que o povo sentia, mas não conseguia falar nem exprimir com tanta subtileza. Sua modéstia e simplicidade extravasava os limites da fama e dos holofotes.
Devo confessar que a notícia do desaparecimento físico do Azagaia deixou todo o povo em estado de consternação grande. Na verdade, estamos em choque e não sabemos como será o devir sem o nosso poeta social. A notícia colheu a todos nós de surpresa, e esta difícil acreditar que o representante do povo nos deixou, que não iremos voltar a tê-lo no palco e escutar sua voz vibrante e cheia de mensagens poderosas. É caso para dizer que vai-se o artista e fica a obra.
Azagaia!!! Mano Azagaia - representa muito mais do que um rapper, um músico de intervenção social. Azagaia é um ícone da critica social e figura incontornável do movimento activista que usou a música para expressar não suas convicções pessoais, seu estilo de vida, suas mágoas, seus sentimentos, mas o pensar de todo um povo sofrido e cioso por alguma mudança estrutural e estruturante.
Azagaia foi e será sempre parte de cada um de nós moçambicanos. Um filho que o país viu nascer e partir inesperada e prematuramente. Foi vítima de pressão e crítica pela forma frontal como se expressava e acima de tudo pela consciência que despertava e por nos fazer pensar reflexivamente; foi várias vezes apelidado de antipatriota e antirregime; foi vilipendiado, censurado e condicionado, mas nunca baixou a guarda; nunca se deixou intimidar porque sua missão era essa – cantar e elevar a consciência social dos moçambicanos.
Deu voz mesmo quando o risco era maior que sua própria segurança. Quanto mais se afunilou o espaço cívico e quanto mais se agudizava a vida do povo, mais se via a veia activista e nacionalista deste ser de luz. Seu amor por Moçambique sempre foi genuíno e, a causa do povo sempre foi cantada nos requintados versos e estrofes de linha fina que nos presenteou. E quando a repressão era alta, Azagaia disse “se o povo ousar se rebelar não haverá tantas balas para disparar contra milhares de pessoas descontentes”.
A sua célebre guisa – “Povo no Poder” - exprime o desejo inconfesso de uma grande franja social fatigada, revoltada mas inactiva, que sucumbiu ao medo de perder medo.
Edson da Luz, tinha luz própria e convicções muito próprias. De long, um ser muito a frente do seu tempo. Fez a ponte da geração 1980 da qual faz parte, e foi ligando às gerações 1990 e 2000; e ainda conseguiu ser parte de um lote restrito de músicos e activistas sociais cuja obra foi alvo de pesquisa académica, distinção e apreciação além-fronteiras.
Azagaia é clara e inequivocamente maior que o seu tempo e um ponto de exaltação da liberdade de expressão e da expressão intelectual da música. Deixa uma herança social, política, cultural e acadêmica e um legado tremendo para a escola do activismo social através da música.
A música, como já é sobejamente sabido, é um instrumento de exaltação da cultura e dos ideais de um povo. É também a expressão máxima da sua vivência, medos, ânsias e seus sentimentos. Com recurso ao microfone, Azagaia fez uso da voz e encantou milhões de moçambicanos, milhões de amantes da sua música pelo mundo fora. Emprestou sua voz ao mundo e deixou um cheiro revolucionário único.
Azagaia!!!
Educaste a sociedade com palavras e versos de reflexão e, chamaste a nossa atenção sobre a situação política e social do país. País este que é de todos os moçambicanos independentemente das suas cores e convicções político-partidárias, ideológicas, raciais, religiosas, etc. Até aqueles que te combatiam, no fundo sabiam que eras necessário para a construção do pluralismo dentro da sociedade.
Deixaste um rasto de saudade sem igual. A nós resta tentar preencher esse vazio de forma inteligente; não com lágrimas apenas, mas com acções que façam honrar e respeitar com todas as nossas forças tudo o que nos ensinaste.
A nossa consciência social e política jamais será a mesma e a sua obra deverá ser replicada para gerar apropriação e termos gerações de activistas comprometidos com a justiça e paz social.
Temas como: as mentiras da verdade, Povo no Poder, Cão de raça, A marcha, Maçonaria, Vampiros, e ABC do preconceito, a título de exemplo são alguns dos temas que exalam um perfume que perdurará para todo sempre.
Até sempre mano Azagaia!!!
Por: Hélio Guiliche
Samora Machel é citado como tendo respondido a um jornalista de que nunca lera pela primeira vez o livro “O Capital” de Karl Marx.
Samora Machel, ainda na resposta, refere que da vez em que lera Karl Marx, durante a luta de libertação de Moçambique, descobrira que estava a lê-lo pela segunda vez, pois o relatado era semelhante ao vivido por ele até então. Aliás, algo que já vinha de gerações e que alimentara o seu espírito nacionalista.
Há pouco mais de 10 anos, num “Show” de Azagaia, ouvi de um amigo uma resposta algo parecida. No auge do “sermão” de Azagaia perguntei ao dito amigo, por sinal de longa data e de parcas palavras, sobre quando é que ele teria ouvido Azagaia pela primeira vez.
Ciente de que me espantara por vê-lo completamente de avesso, tal possuído pelo vírus da rebeldia e em plena sintonia com o Azagaia, o até então pacato amigo, respondeu-me de que “nunca ouvira Azagaia pela primeira vez”.
Nesse instante lembrei-me da resposta de Samora Machel e, sobretudo, tomei consciência da dimensão de AZAGAIA: UM LIBERTADOR DE SILÊNCIOS!
Esta dimensão - ora renovada nas homenagens por conta da sua súbita partida, a partida de Edson da Luz, ou simplesmente Azagaia (1984-2023) - certamente que continuará na longa Marcha pelo Povo no Poder.
Saravá, Azagaia!
Nenhum moçambicano, depois de Mondlane e Samora, viu seu ideário de combate político, de verticalidade e cidadania, ser reconhecido em Moçambique e no estrangeiro, tornando-se fonte de inspiração de novas lutas contra a opressão e a marginalização dos povos. Só Azagaia! Ele tornou-se no terceiro grande símbolo da mocambicanidade. Quando a História deste país for reescrita, esta verdade será registada.
EU BEBEU SURUMA DOS TEUS ÓLHO ANA MARIA
XICUEMBO
eu bebeu suruma
dos teus ólho Ana Maria
eu bebeu suruma
e ficou mesmo maluco
agora eu quere dormir quere comer
mas não pode mais dormir
mas não pode mais comer
suruma dos teus ólho Ana Maria
matou socego no meu coração
oh matou socego no meu coração
eu bebeu suruma oh suruma suruma
dos teus ólho Ana Maria
com meu todo vontade
com meu todo coração
e agora Ana Maria minhamor
eu não pode mais viver
eu não pode mais saber
que meu Ana Maria minha amor
é mulher de todo gente
é mulher de todo gente
todo gente todo gente
menos meu minha amor
Rui Nogar
O Poeta Rui Nogar, um dos mais insignes nomes da poesia moçambicana, pseudónimo de Francisco Rui Moniz Barreto, nascido em Maputo a 2 de Fevereiro de 1932, morreu, aos 61 anos, a 11 de Março de 1993, em Lisboa, passam hoje 30 anos. Quase sempre esquecido, como estão esquecidos uma data de nomes e figuras importantes da nossa cultura, esta é uma daquelas personagens literárias por quem cultivo, sem tréguas, uma admiração reverencial, o que proclamo aqui sem nenhum rebuço. A minha geração muito lhe deve. Para além da circunstância de ter sido o primeiro secretário geral da AEMO e de ali ter albergado uma geração intrépida de escritores da nova geração, como seria a nossa, ele foi um dos mais exemplares escritores moçambicanos.
Numa vetusta entrevista a Luís Bernardo Honwana, que realizei quando intentava a busca da memória literária e cultural do nosso país, fiz algumas perguntas veementes, que se justificavam pela minha entusiasmada e impetuosa juventude. Duas delas: “Considera que há grandes poetas hoje em Moçambique?” A resposta do celebrado autor de “Nós Matámos o Cão Tinhoso” foi indubitável: “Sim”. A minha questão ulterior: “Quem são os grandes poetas moçambicanos?” Luís Bernardo Honwana seria assertivo: “Não gosto de citar nomes, mas há nomes óbvios: Craveirinha, Noémia, Rui Nogar”. Estávamos em 1990.
Continuo a concordar com Luís Bernardo Honwana, ele próprio um nome estelar da nossa literatura. Tenho para mim que o Rui Nogar foi um extraordinário poeta. Leia-se o seu livro “Silêncio Escancarado”, leia-se o seu belíssimo poema “Nove Hora” (que seria levado à cena pelo Mutumbela Gogo), leiam-se os seus poemas dispersos, entre os quais o aclamado “Xicuembo”, que encima esta prosa. Há ali uma sintaxe própria, há ali uma gramática pessoalíssima e há ali uma construção poética que denuncia, por assim dizer, um homem apaixonado pelos homens do seu tempo, um homem com causas, um homem com uma ética que faz da condição humana a matéria prima da sua poesia e da sua vida.
A vida difícil, o sofrido quotidiano, as desigualdades sociais e as iniquidades do sistema colonial, que ele abominava e contra as quais lutou acirrada e tenazmente sempre, fazem o lastro da sua escrita, da sua poesia, dos seus gestos, quase sempre arrojados, do seu grito visceral e da sua revolta enérgica. Cumpriu uma dura penitência na Cadeia da Machava, onde escreveu alguns dos seus mais emblemáticos poemas. Ali, também, denunciou o “silêncio”, que era, no fundo, a ausência de humanidade: “tratávamos o silêncio por tu / dormíamos na mesma cama / acordávamos do mesmo sono” – escreve em “Da fruição do silêncio”, um dos seus mais belos e pungentes poemas: “era o silêncio devorando o silêncio / era o silêncio copulando o silêncio / era o silêncio assassinando o silêncio”.
Ali “na líbida cegueira da avidez láctea” (note-se-lhe este verso extraordinário!), “um farrapo de música nos basta / para remendar / esta longa longa solidão”. No mesmo lugar “do silêncio às palavras”: “a vigília obrigatória / dos que se obrigam a vigiar-nos” e onde “o rastilho da razão / e a pólvora da ciência / nas celas da ignorância // e o escorpião do medo”. Ali mesmo, naquele lugar, “estes pirilampos de esperança”.
Da “Mensagem da Machava” avultam estes versos: “tudo ganhou novos ângulos novas luzes / é mais volátil é mais livre o voo das aves // (...) o amor é tão fácil como o sorriso das crianças / o amor é tão puro como o sémen das chamas /(...) e apesar das grades dos cães-polícias / sinto-me cada vez mais perto de vós”. Ou do poema “Pavilhão 7 Cela 20”: “à noite as almofadas / são mais duras e desconexas / o colchão regurgita / famintas maçarocas / mordendo-nos o sono / e a crosta dos pensamentos” (...) “e mosquitos minuto a minuto / mergulhando céleres / suas adagas no cerne da nossa angústia / despertam-nos o cosmos da impaciência”. Ou ainda do poema “As palavras dantigamente”: “as palavras / e sobretudo o silício do silêncio / dilacerando-nos as fontes de inspiração”. Isto é de um grande poeta. Isto é extraordinário.
Rui Nogar foi sobretudo um audacioso nacionalista. Era um poeta engajado. Isto não lhe diminuía, informava o alto sentido moral da sua existência e da sua práxis. Não estava interessado na sua imortalidade literária. Tinha assumido um combate, um combate feroz e fazia disso o viático da sua jornada. Era um homem indignado – um inconformado. Conhecia a tremenda realidade social para além da “fronteira do asfalto” (Luandino Vieira dixit). Era mítica a sua incursão pelos labirintos dos subúrbios ditos laurentinos. Glosando Craveirinha: Nogar não ia visitar os subúrbios, o Nogar era de lá, aquele era o seu mundo. Era, também, por isso, arreigadamente moçambicano.
A sua poesia não é apenas uma poesia de denúncia. Não é apenas uma poesia de protesto. É também, ou sobretudo, uma poesia que inventa a moçambicanidade, uma poesia de afirmação, de afirmação nacionalista, uma poesia que institui uma pátria, a nossa pátria - pátria moçambicana, muitas vezes aviltada nos dias de hoje. Há quem lhe aponte um tom panfletário nos seus poemas, principalmente os mais afeitos à recitação. Isso não me inibe de lhe extrair belas imagens, soberbas metáforas, um universo vocabular que enuncia um grande exegeta. Um esteta comprometido com os homens e as causas do seu tempo. Um dos maiores intérpretes da moçambicanidade.
Rui Nogar foi também um grande declamador. Aliás, um mítico declamador, que ousava desafiar as autoridades coloniais, ou os seus biltres, nos saraus, dizendo, provocatoriamente, poemas que denunciavam a situação. Fê-lo diante de pides disfarçados, numa Associação Africana apinhada de gente, com o poema de Carlos Maria (“Balada dos homens da caça”) que tinha como estribilho: “Venham todos os homens da caça / Venham todos / Tragam as azagaias”. Fê-lo apontando para os pulhas que estavam na primeira fila.
Seria preso nessa madrugada. Outros que recolheram aos calaboiços: José Craveirinha, Cacilda Reis, Luís Polanah. O tristemente célebre Roquete, safardana de má memória, torcionário de serviço, seria assertivo ao interrogá-lo: “Por que é que você anda com pretos?”
Rui Nogar pertenceu à 4ª Região Político-Militar da FRELIMO e teve um papel importante na luta clandestina. Uma das casas onde se reuniam era a casa de Armando Pedro Muiuiane. Numa das rusgas da Pide, em 1964, foram todos presos. Adrião Rodrigues, Santa Rita e Almeida Santos advogam a favor dos presos nacionalistas. Rui Baltazar não pôde defendê-los. Estava identificado com um dos reclusos: Albino Maeche. Foi impedido de o fazer. Os presos são ilibados, mas não foi por muito tempo. O julgamento seria repetido. A sentença viria firme de Lisboa: prisão maior.
Craveirinha, Honwana, Malangatana são seus companheiros de prisão. O “Silêncio Escancarado” é, seguramente, um testamento literário que escrutina esses tempos ominosos. Craveirinha fá-lo-á em “Cela 1”. Existe, aliás, uma correspondência mítica entre Luís Bernardo Honwana e José Craveirinha na prisão. Malangatana pintará, dessa dura experiência, os seus duendes, os seus demónios e as suas figuras fantasmagóricas.
Nos tempos ulteriores à Independência, Rui Nogar desempenhará os cargos de Director Nacional de Cultura e Director do Museu da Revolução, será deputado da Assembleia da República. Poeta consagrado, a edição da sua obra ocorre em 1982, num contexto de liberdade, na célebre colecção Autores Moçambicanos, do INLD. Será o primeiro secretário-geral da AEMO. Não escapou, porém, aos esbirros da revolução. Irá para Nampula cumprir uma ignominiosa reeducação. Muitos intelectuais sofreram essas purgas, os chamados excessos no jargão da política. Foi o paradoxo, a contradição, a ironia. Não senti acrimónia no Rui apesar disso. Como não sentira no Albino Magaia, que esteve no chamado Gulag moçambicano.
Em 1990 também o entrevistei e ele disse-me o seguinte: “Não me interessa que seja ou não considerado poeta. O que me interessa é que eu seja considerado homem que se preocupa com os outros homens da sua época”. Vi e vejo nesta afirmação a sua estatura moral e ética, a sua grandeza e nobreza. Aliás, recordo-me de muitas discussões que tínhamos, das nossas discordâncias amigáveis, calorosas sem serem necessariamente acerbas, sobretudo porque nós os mais novos não nos incumbíamos dos ditames da revolução. Antes pelo contrário. Estávamos, muitas vezes, nos seus antípodas. Estávamos sublevados.
O Rui dizia-me, entre outras coisas: se tivesse que escolher entre escrever sobre a flor e a luta ele daria primazia à luta. Dizia-o com a sua proverbial candura e não cerceava o nosso espaço de liberdade criativa e de crítica. Antes pelo contrário. Tinha abertura para o contraditório e levava o ideário da liberdade até às últimas consequências. Homem livre, não obstruía a liberdade dos outros. Não se ofendia com a objecção dos mais jovens, convivia bem com a nossa contradita, que era por vezes ácida. Politicamente afirmado, ideologicamente marcado, socialista intransigente, amava sobretudo a liberdade. Esta era também uma ética, a sua ética.
Hoje é deslembrado. Ao longo dos anos tem sido aludido em versos de poetas amigos que vão de José Craveirinha a Luís Carlos Patraquim. Mas não o lemos. “Ninguém liga peva aos poetas”, proclamava Eduardo White, um dos mais insurrectos da minha geração. Hoje muito menos. Tenho-me lembrado do Rui, amiúde. Por vezes, faço-lhe uma vênia na sua campa no Cemitério de Lhanguene e deixo-lhe uma rosa branca. Foi um amigo muito querido e tenho dele avultadas lembranças. No dia em que passam 30 anos sobre a data sua morte, quero aqui honrá-lo. Não cometo expectativas quanto à Pátria. Sei que nada farão para o homenagear. Assim são os nossos pressurosos intendentes, vivem solícita desmemória, são obstinados no esquecimento. Mas cabe a alguns de nós o ofício da memória. Aqui está um dos nossos grandes poetas. Um dos fundadores e esteios da nossa nacionalidade. Um homem probo, um excelente tribuno, um amigo e um camarada de ofício de saudosa memória.
RETRATO
mais do que poetas
hoje
somos sim guerrilheiros
com poemas emboscados
por entre a selva de sentimentos
em que nos vamos libertando
em cada palavra percutida
hoje
nós
em moçambique
1969
Rui Nogar
Em Memória de Edson da Luz (Azagaia) (1984–2023).
Sei que teu sonho sempre foi
Povo no poder um dia ver
Sei que tua luta sempre foi
Teus irmãos sustento e comida suficiente ter
Povo no poder, hoje sem poder!
Sei que pelos teus irmãos lutaste
E contra As Mentiras combateste
Para que sua Babalaze não fosse de tentação
Mas de extrema revolta contra a fraternal exploração
Da tua amada terra que hoje pranteia endividada e em chamas
Povo no poder, hoje sem poder!
Sei que pelas tuas amadas irmãs
Versos e cantos diversos grafaste
Para que seu real e maior tesouro
Não fosse apenas capulana em seu corpo envolto
Ou em uniões promíscuas com estrangeiros
Mas a pujança das mamanas dos mercados e machambas
Que como Josina, embora sem Machel,
Vergam as mãos e lutam para a miséria vencer!
Povo no poder, hoje sem poder!
Sei que muitas Mentiras da Verdade em vida ouviste
Sobre Mondlane, Urias, Samora e até Dhlakama
Cujos detalhes ainda hoje somente jazem
Encriptados em cavernas dos deuses da governação!
Sei que continuarias a escrever
Sobre as desgraças de Matalane e Ndlavela
Esboçadas em espaçosos escritórios
Com carimbos de conhecidos grandes chefes
E em motéis implementadas à luz de vela
Cujas sequelas ainda hoje entre nós ressoam
Mesmo assim, similar aos tantos casos de rapto,
De mulatos, monhés e nossos irmãos em Cabo Delgado,
Enterraram-se as provas da real investigação!
Sei que continuarias a escrever
Sobre o patriotismo de Cardoso e Siba Siba
Cujos pormenores ainda se encontram algemados
Em conhecidas Procuradorias e Tribunais
Similares à tenda das revelações das dívidas semi-políticas
Escoltados por famigerados Esquadrões da Morte!
Sei que continuarias a escrever
Sobre os nossos vastos e raríssimos recursos
Que apenas ao povo favorece em vazios discursos!
Sei que continuarias a escrever
Sobre o nosso abundante Petróleo e Gás
Cujos benefícios apenas nos chegam
Em agabinetados relatórios e páginas de jornais!
Sei também que continuarias a escrever
Sobre os dados das nossas adoentadas eleições
Cujos resultados são em conluio e politicamente aprovados
Em rodas monetárias secretas, carimbados debaixo de lençóis!
Sei ainda que um dia havias de escrever
Sobre as nossas famosas três refeições
Que de Roma em nossas telas invadiram
Suplantando casos de crónica e aguda desnutrição
Que também se vê em nossa saúde e educação
Espalhados pelos cantos desta Pátria desleixada
Que caminha ao ritmo de teoria txova xitaduma!
Ainda sim, sei que também sabes
Que o verdadeiro aroma destas três doações, aliás refeições
Somente ao de longe pobremente sentimos
Em pátios de indivíduos muito bem partidarizados!
Sei que continuarias a escrever
Sobre a nossa tão desgastada educação
Em Labirintos intencionalmente desenhada
Para deformar a tua e Minha Geração
Ensinando-a o ABC das Mentiras da Verdade
Que manterá este povo muito longe do poder!
Mesmo assim, sei que ainda sonhas um dia ver
Esta nossa juventude não mais adormecida
E como verdadeiros Soldados da Paz, desentorpecida
Rumo à marcha da revolução democrática!
Sei também que um dia quererás ver
E em páginas de jornais grafadas um dia ler
Quanto nossos heróis de libertação nacional
Que o povo finalmente ganhou coragem
E diante de todos matou o individualismo
Para juntos e como Nação, dar à luz ao associativismo
Que conduzirá este tão sofrido povo ao poder!
Povo no poder, hoje sem poder!
Sei também que sonhas com um dia
Em que a consciência patriótica e nacional
Triunfará sobre os deslizes do estômago individual
E a tinta que a cada quinquénio nossos polegares suja
Finalmente conceberá o tão aguardado milagre
De o povo colocá-lo no poder!
Sei que ainda sonhas com um dia
Em que esta demo que chamamos cracia
Finalmente estará a favor do teu povo
E através de Testemunhas Alternativos
Derrubará os Cães de Raça da Maçonaria
Que Vendem o País com Memorandos de Entendimento
Que nos fazem calar e sequestram a revolução
Para desenhar uma nova estratégia da Nação
Que levará este povo ao poder!
Povo no poder, hoje sem poder!