Estamos todos jubilosos porque o Banco Mundial nos vai emprestar 850 milhões de dólares para a reabilitação da nossa Estrada Nacional Número Um, vulgo EN1. Reza a notícia que o empréstimo do BM é para reabilitar a metade da via em dois anos, numa extensão de mil quilómetros.
Mas o entusiasmo já vem de há uns dois meses, quando conseguimos outro empréstimo dos árabes, de 600 milhões de dólares para o mesmo efeito, a reabilitação da EN1. Como bom patriota, também estou jubiloso, apesar de muitas reticências… E a primeira é que ambos os empréstimos não são suficientes para cobrir toda a extensão da nossa Estrada Nacional. A nossa EN1 tem um comprimento de 2600 quilômetros. Os empréstimos conseguidos cobrem cerca de 1600 quilómetros, segundo os entendidos. E os restantes mil quilómetros?!… A resposta é simples e óbvia: temos que ir à busca de outro empréstimo… de mil milhões de dólares!
Vamos supor que conseguíssemos de uma só vez os dois biliões e seiscentos milhões de dólares norte-americanos que são necessários para refazermos de uma só vez a nossa EN1! Seria uma maravilha. Mas este, para mim, NÃO É UM MODELO SUSTENTÁVEL DE OPERAÇÃO E MANUTENÇÃO DA NOSSA EN1!
Explico-me. Conseguido esse dinheiro e assumindo que os nossos corruptos não lhe iam deitar a mão, os empreiteiros e os fiscais seriam bem solícitos e os prazos se iriam cumprir satisfatoriamente - ia escrever literalmente, mas para nós isso é impossível, todos sabemos porquê - com os prazos, teríamos então uma EN1 um autêntico tapete.
A questão é: quanto tempo esse tapete iria aguentar a quantidade de camiões que diariamente a atravessam com toneladas e toneladas de mercadoria? E ninguém tem o controlo da quantidade de toneladas que esses camiões levam… algo me diz que aqueles basculantes que vemos aqui e acolá podem ser para inglês ver… eu pelo menos nunca ouvi que um único camião foi multado, mandado voltar, seu proprietário ou empresa banido/a… por excesso de tonelagem. NUNCA!
Com tanto camião com imensas toneladas de mercadoria atravessando diariamente a EN1 de norte para sul e vice-versa, NENHUMA estrada, por mais bem feita que esteja, pode resistir tanto tempo. Compatriotas, é TANTO O CAMIÃO QUE ESTÁ NA NOSSA EN1 DIARIAMENTE ! Nenhuma estrada resistiria. Com a agravante de que TODOS OS AUTOCARROS DE PASSAGEIROS USAM A MESMA VIA e TODOS OS CARROS PARTICULARES TAMBÉM! Difícil uma via resistir a tanta demanda!
E vai acontecer que três, quatro anos depois, a estrada começará (ou voltará) a degradar-se de novo. Mais ou menos nesta ou naquela província. E aí, de novo, voltaremos a ir à busca de novos empréstimos para o mesmo fim… antes de pagarmos os que contraímos agora… Estaremos em mais outros empréstimos sobre empréstimos. E NÃO TEREMOS O PROBLEMA RESOLVIDO!
A SOLUÇÃO DA ESTRADA NACIONAL N. 1 PASSA POR UMA LINHA FÉRREA E PELA CABOTAGEM. Pôr a EN1 top, só e só, não vai ser a solução, não será durável, não será sustentável. Temos que ter “alívios”: uma linha férrea e uns três a quatro navios de carga. Uma carga a ir via linha férrea e outra via marítima. Assim, aliviaremos a nossa EN1 e as reabilitações vão ser duráveis.
Em termos de linha férrea, já temos algum caminho andado: temos ligação Maputo a Chicualacuala… é uma questão de ligar Chicualacuala a Machipanda… só e só isso. E pôr as outras linhas a funcionarem… Machipanda-Beira; Beira-Tete; Tete-Nacala; Nacala-Pemba; e Pemba-Niassa. A mercadoria podia levar uma, duas semanas a chegar ao destino… mas chegaria e… aliviar-se-ia a EN1.
Em termos de cabotagem, é uma questão de adquirirmos três navios de transporte de mercadoria e pormo-los a levarem carga de Maputo a Rovuma e de Rovuma a Maputo com toda a paragem possível e necessária! Donde temos o dinheiro? Da mesma forma que conseguimos estes 850 milhões do BM, ou 600 milhões dos árabes, podemos ter uns tantos para comprarmos navios de transporte de mercadoria…
ASSIM ALIVIARÍAMOS A NOSSA QUERIDA ESTRADA NACIONAL! Doutro modo, estamos e estaremos a brincar no circo!
ME Mabunda
Mas isto será uma grande facada. No peito daqueles que ergueram habitações e outras infraestruturas ao longo do trajecto de uma linha que sai da cidade de Inhambane até Inharrime, percorrendo quase cem quilómetros. Lembra-nos os elefantes que voltarão pelo mesmo carreiro nas suas errâncias, destruindo aldeias inteiras construidas no lugar de “dono”, neste caso dos paquidermes. Os rios também são assim, voltam sempre depois da estiagem.
É como neste processo, a linha férrea foi desmantelada há mais de dez anos, e os carris – de aço – foram transportados em camiões de grande tonelagem seguindo outros destinos, deixando um vão que foi vorazmente ocupado pela população e gente graúda, com conhecimento das estruturas administrativas e municipais. Ou seja, o comboio que circulava exercia mais um trabalho social do que propriamente lucrativo, era benéfico para o povo. E hoje o apito que nos animava já não apita mais.
As próprias locomotivas e carruagens e vagões e zorras foram levados, e os hangares tornaram-se fantasmagóricos. Pelo menos deixaram uma “máquina” que vai servir como amostra de que aqui houve um movimento de comboios a vapor. Então, já ninguém contava que um dia os Caminhos de Ferro voltariam a precisar do seu caminho, como os elefantes e os rios, tanto mais que a Escola Ferroviária, que formava quadros moçambicanos e de outros países dos PALOP, tinha sido alocada em aluguer à Universidade Eduardo Mondlane (UEM). Funcionava aqui a Escola Superior de Hotelaria e Turismo.
Os Caminhos de Ferro já estão a reinstalar a Escola. Reabilitaram o edifício, a UEM teve que procurar outro espaço. Porém, vai faltar o restabelecimento da linha férrea e por onde vai passar esta via há casas, muitas delas sólidas e autorizadas e os CFM não têm nenhuma resposabilidade se forem chamadas as indemnizações. As pessoas já foram notificadas e o que se espera não será mais do que muito sofrimento e muita dor.
Há um mercado inteiro instalado ao longo da linha, num determinado troço, o chamado mercado da Mafurreira, com centenas de vendedores, maioritariamente mulheres, que estão a tremer perante os ventos que sopram. Pode ser que venham a ser movimentadas, mas será uma profunda dor de cabeça. Espera-se um caos social se não houver um bom tratamento deste caso, respeitando os direitos de pessoas que podem ter sido induzidas pelas emoções e desconhecimento. E depois empurradas pelas próprias estruturas administrativas e municipais.
A esperança de regresso do comboio é ténue, todavia há outras máquinas de circulação necessárias para a aprendizagem dos formandos e tudo indica que está-se numa faze crucial. Sendo assim, os carris deverão voltar aos seus lugares. Com consequências dolorosas para aqueles que ocuparam “lugar de dono”, com maior responsabilidade para aqueles que têm a obrigação de dominar o conhecimento em situações como estas e evitar colocar pessoas em desespero.
Certamente que o título lembra-lhe a Primavera Árabe que somada aos “Dias de Azagaia” que correm, podem o levar a pesquisar na internet sobre a Primavera Árabe. Assim procedi. Eis alguns extractos:
“Qual foi o ponto de partida da Primavera Árabe?
A onda começou em 17 de dezembro de 2010, quando Mohamed Bouazizi ateou fogo em si mesmo na cidade de Sidi Bouzid (centro da Tunísia) quando policiais impediram que ele vendesse vegetais em uma banca de rua sem permissão”
“Como foi motivada a Primavera Árabe?
Primavera Árabe foi um conjunto de manifestações populares que aconteceram nos países de língua árabe do Norte da África e do Oriente Médio a partir de 2010. Governos autoritários, truculência policial, desemprego e outras consequências da crise econômica de 2008 estão entre as principais causas da Primavera Árabe”
“Quais eram as principais reivindicações defendidas pela Primavera Árabe?
… de modo geral, as reivindicações populares são voltadas para a melhora da qualidade de vida e pela liberdade de expressão. As revoltas foram motivadas principalmente pela corrupção dos governos autoritários da região, pelas altas taxas de desemprego e pela falta de democracia”
“O que foi a Primavera Árabe e quais foram os seus desdobramentos?
Primavera Árabe caracterizou uma série de protestos e revoltas ocorrida nos países de língua árabe a partir do final de 2010, em que a população de diferentes lugares foi às ruas com diferentes objetivos, que giraram em torno da derrubada de ditadores, da realização de eleições e da melhoria das condições de vida”
Concluindo: tal como a Primavera Árabe, os acontecimentos dos últimos dias em Moçambique, decorrentes das homenagens ao artista Azagaia, mais os que nos chegam de outras partes da África Subsaariana podem estar a sinalizar a chegada de uma outra e nova estação política: a Primavera Bantu.
Num cenário de protestos, a reacção das autoridades políticas, os seus determinantes e efeitos na actividade dos manifestantes a curto, médio ou longo prazo, estão no centro das preocupações no sub-campo da Sociologia das Mobilizações. Por exemplo, nos anos 70, Ted Gurr tinha chamado à atenção para a importância da variável repressão e a dificuldade de se pensar sobre ela em termos de análise política. Por sua vez, Charles Tilly, em From Mobilization to Revolution, salientou, também, que a repressão ou tolerância a que o grupo mobilizado está sujeito e as oportunidades ou ameaças a que está condicionado, actuam sobre a ‘estrutura dos custos e benefícios da mobilização’.
Desse ponto de vista, Tilly sublinha que, às vezes, a repressão, além de instigar a mobilização, pode impossibilitar a acção; porém, em qualquer caso, esta desempenha um papel determinante na estruturação dinâmica e relacional dos repertórios da acção colectiva. No caso de Moçambique, por exemplo, ainda se está por estudar, diante dos recentes actos, que efeitos sucederão: mobilização ou falta dela?
Aqui e agora, podemos avançar uma hipótese: não se está ainda em face de um verdadeiro movimento social clássico, cuja carteira de reivindicação é clara ou os efeitos de sua capacidade de colher adesão é, igualmente, expressa. Contudo, a construção de um repertório de acção colectiva não segue, necessariamente, os ditames do que se pode encontrar na vasta literatura relativa a este assunto.
A introdução acima surge em decorrência de, no passado dia 18 de Março [2023], termos estado no aglomerado que rodeava a Estátua Eduardo Mondlane, para participar na marcha alusiva à celebração da vida e dos ideais de Edson da Luz, Azagaia. Em poucos instantes, sem a nossa antecipada intenção para nos desviar daquele acto infortúnio, o gás lacrimogéneo havia tomado conta do local, não apenas daquele perímetro, mas de todos os cantos, inclusive por onde qualquer transeunte, manifestante ou não, ousasse percorrer.
Ora, a frase que dá título ao nosso comentário foi proferida por um agente de ordem pública, que vestia a sua farda da Polícia da República de Moçambique (PRM). Ele disse que ‘estava connosco’ – o povo –, mas, ao mesmo tempo, pediu que um dos manifestantes ao meu lado tirasse a camisete que ostentava a imagem e os dizeres sobre Azagaia. Irónico ou não, não temos dúvidas que isto pode revelar o nível de gravidade e sentido de repúdio que se vive na sociedade, não importando, necessariamente, a qualidade laboral ou social dos seus sujeitos.
Aliás, engane-se quem pense que os actos de barbaridade da acção das autoridades de defesa e segurança seja um mero acaso; é, pois, parte do ‘silêncio barulhento’ que, de uns anos à esta parte, tem assolado o quotidiano dos moçambicanos. Para nós, há, na fala daquele membro da PRM, um significado que deve preocupar quem governa o país, sobretudo porque quem reprime é parte da mesma sociedade que se encontra sob o jugo de um colectivo de políticos censurados pela sociedade.
Na verdade, não são apenas as palavras do membro da PRM que nos interessam, mas, sim, a voz não levantada de milhares de moçambicanos que sentem o mesmo que aquele agente da Lei e Ordem, mesmo diante do estado de repreensão em que vivemos. É extremamente perigoso, quando o medo se torna silêncio e as vozes ecoam em pequenos grupos. Para uma governação acertada, o benéfico é que se conheçam as possíveis razões da insatisfação, do que a produção do medo que se pode tornar pólvora contra quem teima em bloquear a acção popular não violenta.
Pretende-se, com esta breve análise, trazer à luz, a outra faceta do “Rapper-mor”, Azagaia. Pois, a reação da opinião pública, no geral, em torno da partida do autor dos famigerados álbuns Babalaze e Kubaliwa, para a sua última morada é, primariamente, associada ao seu arrojo em abordar temáticas sociais, as mazelas experimentadas pelos moçambicanos no seu dia-a-dia, ou seja, o caracter socialmente interventivo da sua música. No entanto, há uma outra dimensão em sua lírica – a estilística.
Entenda-se, por estilística, como o uso da linguagem com fins estéticos, conferindo carga emotiva aos seus versos, ou seja, o processo de manipulação da linguagem para que esta não se resuma apenas a função de transmitir uma mensagem, mas também de criar um efeito emotivo e afetivo da parte de quem a recebe. A estilística na lírica do Azagaia é fundamentalmente caracterizada por esse recurso. É precisamente aí que reside e se manifesta uma das grandes qualidades artísticas em sua lírica. É, exemplo disso, a sua obra “As Mentiras da Verdade” rica nesse recurso linguístico, que impressiona pelo uso de linguagem figurada e jogo semântico meticulosamente calculados.
Muito a propósito do acima, as Faculdades que se dedicam aos estudos das Letras (nomeadamente estudos linguísticos e literários), precisam de estudar a obra do Azagaia nesta perspectiva. Foi, com muito agrado, que tomei conhecimento de uma monografia para a obtenção do grau de licenciatura em Literatura Moçambicana, por um estudante da Faculdade de Letras e Ciências Sociais da Universidade Eduardo Mondlane, intitulada “A Crítica Social em Azagaia”. Penso que este é um passo na direção certa, para compreensão plena, preservação e valorização do inestimável legado do músico. Que o Rapper-mor viva eternamente através de muitos e mais estudos sobre a sua obra!
Azagaia pode ter estado no engendramento e repercussão de um novo subgénero, dentro do grande género musical do RAP, pela forma inovadora e diferenciada de fazer e representar este género musical, escapando do traço vigente e dos seus vícios, facilmente diagnosticáveis por sintomatologias de letras exaltando valores de alienação cultural, apologia à ostentação, indecência e muita baboseira à mistura, etc. O autor do tão aclamado “Povo no Poder”, soube, com mestria, ser imune a este flagelo, tendo enveredado por outras avenidas, abordando em suas músicas, temáticas consentâneas com a realidade social vigente, num perfeito casamento com as suas qualidades de exímio “songwriter” – onde ficou proeminente a doce estilística em sua lírica! Vale muito a pena estudar a sua música também nesta perspectiva.
O manancial da obra do Azagaia permite que esta possa ser estudada de várias perspectivas, nomeadamente sociopolítica, filosófica, literária e linguística, entre outras.
Azagaia veio do Povo e ao Povo pertencerá! Azagaia é o Povo no Poder!
Publiquei no passado sábado um texto nas redes sociais encorajando os jovens a perpetuar a memória do cantor Azagaia. Alertei sobre a necessidade de se protegerem contra o aproveitamento oportunista de partidos políticos. Enviei esse texto para a Carta de Moçambique quando as forças polícias começavam a reprimir violentamente a manifestação de jovens em Maputo.
Ainda esperei por alguma explicação, algum pedido de desculpa, alguma razão que explicasse esse acto de violência contra uma marcha que estava devidamente autorizada. Esperei em vão. Durante todo o dia os noticiários dos principais canais televisivos reagiram como se nada tivesse acontecido. Nem uma linha por parte dos jornalistas. Nem uma palavra por parte de qualquer dirigente. Este silêncio constitui uma espécie de reedição do gás lacrimogénio que abundantemente foi lançado nas ruas de Maputo. Esse silêncio é demasiado ruidoso, essa ausência é demasiado indiscreta.
Considero inclassificável o comportamento das forças policiais reprimindo o que devia ser protegido, criando desordem onde havia ordem, atropelando a lei perante um evento legal.
Os jovens que queriam desfilar nas ruas da capital estavam desarmados, não representavam nenhuma ameaça à ordem ou tranquilidade pública. O funeral de Azagaia mostrou o tamanho da frustração e descontentamento de muitos jovens nas cidades de Moçambique. A polícia que cumpriu “ordens superiores” agigantou esse descontentamento. Há ordens “superiores” que criam desordem e inferiorizam os seus autores.
A nossa maior conquista, depois da Independência, foi o calar das armas após dezasseis anos de guerra fratricida. Essa conquista aconteceu porque houve diálogo, houve vontade de escutar aqueles que pensam de modo diferente. Se fomos capazes de abraçar os chefes de um exército armado por que razão espancamos jovens que se apresentam desarmados, respeitando as normas democráticas do direito à palavra e à manifestação pública?
Não imagino o que motivou a “ordem superior” que deu luz verde à violência policial. Mas estou certo de que a única ordem superior correta apontaria exatamente na direção oposta. Uma ordem que encorajasse a escutar estes jovens que amam o seu país, uma ordem que protegesse o espaço onde se pudessem expressar livre e pacificamente.
Mia Couto