Filimone Meigos e Samito Machel partilham suas vivências em auto-isolamento devido ao Covid 19. Gostei do que li. O Filimone reflete sobre o existencialismo sartreano, sem falar de Sartre, dos temores da morte e da teatralidade da vida. Disseca o pânico geral. Filosofa sobre o sentido da vida no contexto do Novo Corona. Ele conversa com o Elisio, escrevendo para todos nós.
Samora Machel é mais intimista mas também pedagógico sobre o que significa o auto-isolamento, o tédio necessário em face de uma hipótese cruel: o receio da infecção e do contágio de quem amamos. É como que uma romaria de desamor para proteger o amor. Ele conversa com todos nós, amando sua família.
Adorei seus testemunhos. O exemplo do poeta e seus devaneios de antropologia e sociologia e a exposição de Samora e seu tom de contributo cívico, em tempos de politica errática.
Há dias fui ao Hospital Provincial de Matola para sondar a qualidade do serviço público. Tinha uma pequena queimadura, que já infectara. Eu podia ter ido a uma clínica privada, ao 222 ou ao Hospital Privado. Mas preferi ir onde vai a maioria do povo. E lá fui eu, ali para os arrabaldes da cidade da Matola, nas margens verdejantes do rio.
Dei de caras com o edifício recente, mas já desbotado. No guiché, quatro assistentes solícitas. Na sala de espera do SUR, uma fila enorme de espera. Meu problema estava identificado. Eu procurava uma pequena cirurgia. Entreguei meus dados e apontaram-me logo a porta.
Lá entrei. A equipa, médico e assistentes, estava a postos, mas seus semblantes mostravam rostos carcomidos por uma tamanha falta de motivação. Durante o tratamento, perfeito, percebi uma coisa: uma tremenda falta de materiais. Não tem agua oxigenada! Mas isso eu já sabia. Até o Hospital Central de Maputo não tem. Os materiais de limpeza, como anti-sépticos, eram dados a conta-gotas. As compressas foram pedir esmola a uma sala ao lado. Grosso modo, os hospitais em Moçambique vivem assim. Uma tamanha falta de meios de tratamento. Minha experiência capta apenas uma pequena amostra.
E isto começou quando os doadores cortaram a ajuda por causa da dívida oculta.
O efeito do endividamento oculto é sentido em toda a sociedade, sobretudo pelos mais pobres. Os doadores suspenderam o financiamento e o governo ficou sem dinheiro para pagar fornecedores ou financiar totalmente os serviços sociais - o que levou a danos directos a muitos cidadãos, que, por exemplo, não têm serviços de saúde ou cujos negócios faliram.
O governo já processou judicialmente parte dos implicados locais (os 20 arguidos) e intentou acções em Londres contra o Credit Suisse e companhia. Mas esses são expedientes da política e das elites, os quais não carregam a imagem do rosto humano prejudicado pela crise. Como diz o advogado anti-corrupcão, Rick Messick, os cidadãos moçambicanos podem também processar essa escumalha do grande capital, incluindo a Privinvest, que nos colocou nesta armadilha de pobreza. Um tal procedimento da sociedade civil complementaria as acções do Governo e, eventualmente, evitaria longos anos de litigação entre as partes. O Credit Suisse evitaria uma grande exposição mediática se o processo viesse da sociedade civil.
Faz sentido! Agora, a questão é: que sociedade civil pode avançar? O FMO já tem uma experiência acumulada no caso e pode usar disso e seus contactos para engendrar a acção. Urgente! As igrejas podiam fazer a sua parte. Mãos à obra?
Pio Matos pode ter lá as suas razões, mas não ter ido à abertura do ano judicial pode ser considerado uma descortesia para com quem o convidou, ou seja, o poder judicial, que não tem culpa do imbróglio criado por outrem.
Há-de ter tido a delicadeza de dar uma satisfação pela sua ausência a quem o convidou, por deferência com os cidadãos da província que representa. Como todos os zambezianos bem educados costumam fazer.
Se não o tiver feito, dará lugar à interpretação legítima de que não foi à cerimónia por birra, acabando por fazer uma desfeita a quem até tem a consideração devida pelo Governador eleito da Zambézia.
Eu esperava que o discurso do Presidente Filipe Nyusi fosse um libelo mobilizador, com uma visão sobre nosso futuro a médio prazo, ou mesmo uma imagem do país que teremos quando ele abandonar o poder (se bem que não se pode fazer muito em cinco anos). Eu esperava ouvir um galo cantando uma nova madrugada.
Mas Nyusi preferiu apresentar-nos retalhos programáticos da sua governação nos próximos cinco anos. Algumas palavras ocas, algumas medidas concretas. Nenhum assomo visionário, um pensamento estratégico da nação.
O povo, como sempre, bateu palmas. Eu também!
Seu compromisso com a paz é inigualável. Mas como tratar da insurgência em Cabo Delgado? Nada! Nenhuma ideia central.
Sua grande promessa foi a de alocar 10% do orçamento do Estado na Agricultura. Fantástico! Só precisa clarificar: o dinheiro vai todo para o Ministério ou directamente para quem produz? A vontade é boa mas, em Moçambique, os governantes ensinaram-nos a desconfiar.
Ele também apoia o projecto de linha férrea para Macuse, um empreendimento que pode fazer muito bem à Zambézia. Agora, é preciso ajudar na mobilização de recursos.
Mas o discurso estava cheio de nuances.
Sem conteúdo (como na abordagem da corrupção; Nyusi não tem um pensamento estratégico sobre o assunto, nem se esforça para compreender melhor o problema e pensar como fazer);
Incongruente (promete reabilitar a linha Beira/Machipanda, mas não faz nada para retornar o ferro-crómio à linha de Ressano, cedendo ao "lobby" rodoviário, que está dando cabo da N4, numa altura em que falta apenas 7 anos para a estrada passar para nossas mãos);
Omisso (como quando fala de economia azul e faz vista grossa à pesca furtiva, que está delapidando nosso mar, novo take away chinês);
Inconsequente (promete uma nova instituição de crédito para a economia, quando existe esse saquinho do BNI, uma vaca leiteira falida, que nunca fez banca de investimento e até já faz retalho e micro-credito);
Falacioso (como quando promete um Hospital/um Distrito, mostrando uma ignorância abismal sobre o que é um sistema de saúde; um Hospital Distrital tem requisitos, não é um centro de Saúde. Um Hospital Distrital, por definição, deve ter, Pelo Menos 2 salas de operações, 1 laboratório, 1 serviço de Imagiologia com Rx e aparelho de ecografia, 4 enfermarias, designadamente Medicina, Cirurgia, Pediatria e Maternidade. Deve ter 1 cama por cada 1000 habitantes do Distrito. Deve ter 1 ambulância e 1 viatura de caixa aberta. Deve ter recursos humanos: médicos, enfermeiros, técnicos de laboratório e de RX, parteiras, serventes, motoristas, enfim. Deve ter um orçamento de funcionamento para medicamentos, combustíveis, energia elétrica, água etc.
E Moçambique tem 154 distritos. Impossível.
O discurso de Nyusi foi cinzento. Agora, apesar isso, esperamos que esse cinzentismo não marque o mandato.
Nunca Moçambique viveu um início de década tão desmobilizador. A classe política que hoje nos governa perdeu-se em seu desnorte. Noutros tempos, o início de uma década era uma nova madrugada de esperança. Os mais velhos lembram-se da década de 80, proclamada como de luta contra o sub-desenvolvimento. Não era um “slogan” no vazio. A política deu a essa luta conteúdo próprio, uma visão de médio prazo.
Recordamos o Plano Estatal Central (PEC), uma visão para intervenção do Estado na economia e sociedade, e o Plano Perspectivo Indicativo (suas metas e indicadores). É certo que tudo falhou! Mas a sociedade estava mobilizada, e fez a sua parte. As razões para o falhanço são outra conversa.
Quando chegamos a 90, a iminência do fim da guerra e a perspectiva da democratização deram-nos novo alento. Fomos mobilizados pela paz e pelas novas liberdades. A democracia fermentava, com seus defeitos de nascença. A possibilidade da participação política arregaçou-nos as mangas.
A transição foi, em si, mobilizadora. Nossos empresários, a maioria na informalidade, abraçaram o mercado. E os políticos aprenderam novas formas de pensar a Nação, estrategicamente, a longo prazo, envolvendo a sociedade civil mais afoita às convivências com o regime. Ainda no consulado de Joaquim Chissano desenhou-se uma visão chamada Agenda 20/25, com “imputs” de muitas franjas da sociedade. A predisposição para pensar o país a longo prazo, e dar-lhe uma perspectiva visionária, era palpável.
É também certo que essa Agenda foi relegada para a gaveta. Ninguém lhe deu seguimento. Os planos quinquenais de governação fizeram-lhe vista grossa. Todo o trabalho de consulta foi atirado ao lixo. Mas o exercício de pensar conjuntamente o país foi exemplar.
Depois veio Guebuza. Com sua visão de enriquecimento privado, e não do Estado. Em 2004, antes de sua subida ao poder, prevíramos o que seria seu consulado: uma empreitada de transformação dos negócios do Estado em negócios pessoais. Ele ainda teatralizou um pouco, com a transferência de dinheiros para os distritos e suas ladainhas sobre auto-estima mais a urgência de não termos medo de enriquecer. Essa foi sua visão central, bem assumida por todos aqueles que conceberam a arca diluviana das “dívidas ocultas”.
Agora com Filipe Nyusi, parece que nem visão existe. Nyusi tem, no entanto, uma grande oportunidade. Em véspera de início do seu segundo ciclo, que coincide justamente com o início de uma década, seus conselheiros podiam recuperar para ele o conceito de uma “visão de longo prazo”, que vá para lá do esfregar das mãos com a iminência das receitas do gás.
Nyusi pode transformar o vazio habitual dos seus discursos numa proposta programática com horizonte mais alargado, mobilizando toda a sociedade para novos desafios. Mas, para isso, ele tem de ser contemplativo. Seus primeiros meses de Governação podiam ser usados para consultas com a sociedade sobre que país queremos nos próximos 15 anos. Dois meses sentado na Ponta Vermelha, traçando com a sociedade uma nova agenda visionária para todos. Moçambique precisa de uma nova madrugada, com sua sociedade mobilizada para o bem comum. Assim como estamos, somos como uma nação sem norte, sentada à espera do milagre incerto do gás. (Marcelo Mosse)
Os americanos são exímios na "real politik". Ontem no rescaldo das eleições, a embaixada local dos EUA emitiu um comunicado prometendo trabalhar com Nyusi. Vêm aí cinco anos de uma etapa "transformational" para Moçambique, dizem. É claro que o gás entra aqui na equação, embora os redactores do comunicado evitassem falar do que estará por detrás dessa transformação. Mas todo o mundo sabe: o gás do Rovuma. O que não se sabe, mas suspeita-se, é que quem vai tirar maior benefício do gás é o capital estrangeiro, e a Exxon não escapa.
No dia da confirmação de Nyusi, numa cerimónia apagada, os yankees disseram que os delitos eleitorais foram graves, numa pretensa solidariedade com a sociedade civil, a oposição e alguma observação eleitoral. E agora? Agora esperam que o Governo melhore a gestão das eleições, imprimindo transparência. Nada mais! A política, na sua versão mais cínica, segue dentro de momentos.
A América abandonou os condicionalismos do passado. Agora dorme abraçada à Ponta Vermelha. Esse casamento estratégico para Washington e de conveniência para Filipe Nyusi já estava anunciado. Há poucas semanas, os americanos acenaram com o MCC (Millennium Challenge Account), dinheiro a fundo perdido de apoio ao desenvolvimento, que foi cortado a Moçambique por comprovada corrupção.
Ninguém foi responsabilizado. Mas seus critérios assentam na transparência. E justamente quando ela (a transparência) é uma miragem na gestão dos dinheiros públicos, incluindo processos eleitorais (o pior de todos foi a recente eleição), a América premeia Maputo com esse fundo.
É óbvio que isso decorre de seus interesses estratégicos e não dos interesses do povo de Moçambique. Daí o episódio bizarro da revelação em Brooklyn, pelo FBI, de um New Man sem rosto, num golpe de misericórdia que remete para a geopolítica: o Canal de Moçambique, fundamental na presente guerra imperialista.
Nunca no passado Moçambique esteve tão vulnerável aos apetites do capital ocidental (a saga das “dívidas ocultas” foi instrumental para a erosão de nossa capacidade negocial no plano na cooperação internacional) e nunca os americanos ofereceram almoços tão grátis, despidos das habituais condições de democratização e anti-corrupção. Pior, nunca se viu tamanha complacência americana para com a corrupção e a má-governação eleitoral em Moçambique.
Seus interesses jogam mais alto.
De modo que a expressão "transformational" deve ser bem analisada. Há que ficarmos atentos para discernimos até onde vai a pura essência de um casamento consumado com noiva vestida em saia justíssima, e qual será o verdadeiro "quid pro quo" de Washington e seus potentados empresariais em Moçambique.