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António Souto**

 

Aceitei participar neste fórum pelos seguintes motivos:

- É urgente alertar para os riscos de se ignorar a importância e papel das instituições financeiras de desenvolvimento e da indústria microfinanceira, pois o sistema financeiro não são apenas bancos e bancarização;

 

- É urgente debater e reflectir se e como é que Moçambique pode promover a inclusão financeira, reduzir a pobreza absoluta sem ter um regime jurídico apropriado para instituições financeiras de desenvolvimento e para as instituições de microfinanças.

 

Alguns elementos sobre o sistema financeiro nacional

 

Em 2016 foi aprovada a ENIF (Estratégia Nacional de Inclusão Financeira) 2016-2022. Como fundamento desta estratégia o Gov declarou que “A inclusão financeira é um factor essencial para reduzir a pobreza e aumentar a prosperidade”.

 

Na mesma altura lançou-se o projecto “Um distrito, Um Banco” colocando à disposição de alguns bancos, facilidades e fundos na ordem dos 480 milhões de Meticais através do FNDS.

 

Na revisão de meio termo da ENIF feita em 2019 dizia-se que “Moçambique fez progressos consideráveis no domínio da inclusão financeira durante a primeira metade do período de implementação da ENIF (2016-18).” Contudo, reconhecia-se que a “Proporção da população adulta com acesso físico ou eletrônico aos serviços financeiros prestados por uma instituição financeira formal” passou de 36% em 2016 para 33% em 2018.

 

Apesar das facilidades postas ao dispor de bancos no projecto “Um Distrito, Um Banco” as estatísticas mais recentes do BdM indicam que de 2016 a 2023 a percentagem de distritos cobertos por agências bancárias (em proporção do total) passou de 76,6% para 79,4%, ie, um crescimento de apenas 3,6%. Mas, nos últimos dois anos (dados do 1º trimestre de 2020 comparados com o 1º trimestre de 2023) observa-se um retrocesso, pois o número de distritos com agências bancárias caiu de 128 para 123, ie, redução de 3,1%.

 

Há outras indicações de alguns retrocessos que podem revelar os riscos de o sistema estar a agravar desigualdades sociais. Dois exemplos com base em dados do BdM:

 

Entre 2020 Q1 e 2023 Q1 as contas bancárias em % da População Adulta caiu de 30,3% para 29,8%, ou seja, uma redução de 1,4%. O mais notável é que esta redução ocorreu apenas em contas bancárias tituladas por mulheres, que reduziram 2,7%.

 

No negócio dos cartões bancários: entre 2020 Q1 e 2023 Q1 o número de cartões em % da População Adulta cresceu 0,4%. Mas, o número de cartões tendo como titulares homens em % da População Adulta masculina cresceu 74,1%, enquanto os cartões com titulares mulheres em % da População Adulta feminina reduziu 45,4%. É também útil dizer que neste mesmo período o número de cartões detidos pela população rural em % da população adulta rural caiu 5,4%.

 

Apesar destes retrocessos e questionamentos sobre a evolução do processo de inclusão financeira, há um acentuado crescimento no domínio da Moeda Eletrónica.

 

Podemos, pois, concluir que o mercado financeiro digital está ficando o principal instrumento de integração da população de baixo rendimento no sistema financeiro. Não necessariamente de inclusão financeira.

 

O que se pretende com Inclusão Financeira?

 

Está agora em preparação uma actualização da estratégia nacional de inclusão financeira.

 

É momento de nos interrogarmos sobre o que é e o que se pretende com a inclusão financeira.

 

Pode haver estabilidade numa economia assaltada por uma crescente exclusão social? Como pode a inclusão financeira impactar positivamente na inclusão e estabilidade social?

 

O problema do impacto da inclusão financeira deve ser colocado como uma questão que vai além do acesso apenas a produtos e serviços financeiros. O conceito de inclusão financeira vai muito além da chamada bancarização.

 

A inclusão financeira é um “conceito multidimensional que inclui elementos tanto do lado da oferta de produtos financeiros como do da demanda, sendo suas dimensões básicas o acesso, o uso, a qualidade e o impacto sobre o bem-estar financeiro das famílias e das empresas.” Inclusão financeira não se limita a “estar integrado no sistema” por ter conta bancária, ou conta móvel, ou outro serviço financeiro. Inclusão pressupõe que o acesso e uso desses serviços financeiros impactam positivamente no bem estar da família ou na sustentabilidade do negócio.

 

Este conceito de inclusão financeira não pode ser implementado se não se alterar a estrutura e funcionamento do sistema financeiro moçambicano.

 

A estrutura e composição de um sistema financeiro afecta a inclusão financeira de várias maneiras. Um sistema financeiro com muitas barreiras à entrada pode dificultar o acesso aos serviços financeiros para as pessoas de baixa renda. Além disso, um sistema financeiro com pouca diversidade de produtos financeiros pode limitar as opções disponíveis para as pessoas.

 

É urgente promover a diversificação do sistema integrando IFDs e Microfinanças

 

A Gapi vive e debate o tema da diversificação do sistema financeiro desde que há 35 anos se iniciou a reflexão que levou à sua constituição em 1990, como instituição financeira de desenvolvimento.

 

Os fundadores optaram pelo conceito de uma instituição capaz de intervir não apenas do lado da oferta, fornecendo serviços financeiros, mas também procurando melhorar a qualidade da procura, através de programas de literacia financeira que melhorem a capacidade e eficiência no uso de serviços financeiros. Mais tarde, acrescentou-se à estratégia a componente de desenvolvimento de instituições para alargar a rede de parcerias.  Por isso, a Gapi começou também a investir na criação de microbancos rurais.

 

Em 2007 a Gapi foi registada como Sociedade de Investimentos ficando sujeita a supervisão prudencial.

 

Porém, o sistema de enquadramento legal tem colocado enormes barreiras ao modelo institucional da Gapi. Não porque não se reconheça o contributo desta instituição para diversificar a oferta, melhorar a inclusão, reduzir a pobreza e contribuir para a geração de emprego. As barreiras que a Gapi tem enfrentado resultam dos princípios que presidem ao quadro regulatório do sistema financeiro. Por outras palavras: ainda não existe na legislação e na regulamentação espaço para uma instituição gestora de fundos prestando esta combinação de serviços. É minha opinião que a nossa legislação tem sido demasiado influenciada por modelos onde a economia é dominantemente formal. Moçambique está num polo oposto.

 

Mesmo assim, promovendo uma postura de permanente diálogo com os reguladores, a Gapi tem avançado com o seu projecto: contribuir para a edificação de um sistema financeiro mais inclusivo.

 

Felizmente a Gapi não está só. Em conjunto com algumas instituições microfinanceiras (IMFs) decidiu-se em 2018 relançar a indústria das microfinanças, começando pela reanimação e reestruturação da AMOMIF (Associação Moçambicana de Operadores de Microfinanças).

 

As dificuldades e barreiras enfrentadas pelas instituições microfinanceiras levaram ao encerramento de dezenas desses operadores. Outras abandonaram as regras do sistema e passaram a operar como informais sem qualquer supervisão nem monitoria.

 

A nova direção da AMOMIF desenhou um projecto que está a implementar e que tem como foco o estabelecimento de uma rede nacional de instituições microfinanceiras sustentáveis, devidamente licenciadas, com boa governança, e operando com proximidade geográfica e cultural junto a microempresas e famílias de baixa renda, principalmente nas zonas rurais e periurbanas. O desenvolvimento destas capacidades e serviços são indispensáveis para preencher um perigoso vazio no sistema financeiro.

 

Neste projecto, das 12 instituições microfinanceiras que em 2019 ainda eram membros efectivos da AMOMIF, hoje conta-se com 52 membros espalhados por todas as províncias. Está a apoiar os seus membros a instalarem software bancário para melhorarem a sua gestão, promover acesso a programas de formação dos seus quadros e a assistência jurídica.

 

Através da AMOMIF, as IMFs estão agora a participar no Comité Nacional de Inclusão Financeira, dirigido pelo Banco de Moçambique.

 

Uma das grandes preocupações é a necessidade de um instrumento permanente de refinanciamento que permita aos membros elegíveis e com boa governança poderem capitalizar-se para alargar a sua capacidade de oferta de serviços. É também preocupação das IMFs o sufocante sistema de supervisão, pois exige uma complexa e dispendiosa máquina administrativa e de gestão.

 

Reconhecendo a urgência e os desafios da modernização, a AMOMIF está a preparar uma aliança com a Associação das FinTechs de forma a estimular a cooperação entre empresas de tecnologias e os microbancos. As duas indústrias precisam uma da outra, pois a tecnologia precisa do elemento humano, ie, da proximidade junto às famílias e microempresas, que vem da rede microfinanceira.

 

Enfim, com a nova AMOMIF e a sua parceria com a Gapi, a indústria microfinanceira pode renascer e contribuir para que a estrutura do sistema financeiro seja menos polarizada em bancos tradicionais.

 

*Intervenção no Fórum de Economia e Finanças.(Maputo, 2023/05/17)

 

**António Souto é economista, fundador e Conselheiro Principal da Gapi-Sociedade de Investimentos e actualmente Presidente do Conselho de Direção da AMOMIF.

quarta-feira, 17 maio 2023 08:30

O herói Azagaia e a Toponímia!

“Os quatro jovens que colocaram a placa nomeando uma rua de “AZAGAIA” foram todos recolhidos para as celas e a placa foi removida”

 

In Adriano Lázaro, Facebook

 

“Desde já, manifesto minha solidariedade para com os jovens detidos e encarcerados nas celas, ao mesmo tempo que manifesto o desejo de correcção dos métodos que se deve usar para atingir um determinado objectivo. Não basta eu acordar e decidir que as coisas devem ser assim ou assado, sobretudo, quando a coisa entra na esfera pública. Uma coisa é eu adorar e admirar alguém, outra, bem diferente, é fazer com que a pessoa que eu adoro seja adorada por todos ou pela maioria e merecer espaço no lugar público. Haverá que se fazer algum percurso para que tal desiderato aconteça e, no caso da Toponímia, as regras existem e são conhecidas. Finalmente, um apelo às autoridades, ainda que reconheça que os jovens não seguiram os trâmites da toponímia, por favor libertem-nos e eduquem-nos!”

 

AB 

 

Herói “homem ilustre por feitos guerreiros ou de grande coragem, protagonista de uma obra literária ou cinematográfica etc.”

 

Heroico “próprio de herói, que denota heroísmo, enérgico, muito eficaz, ousado, diz-se de verso de dez sílabas com acento predominante na 6ª e na 10ª, designativo de estilo ou do género literário em que se celebram façanhas de herói”

 

In Dicionários do Estudante, Porto Editora.

 

Na manhã de 15 de Maio de 2023, vejo nas redes sociais que “quatro jovens foram recolhidos às celas”. Motivos: decidiram nomear uma Rua de AZAGAIA e a reacção dos internautas não se fez esperar. Alguns consideram os quatro jovens de “presos políticos” outros simplesmente escrevem nos comentários “é o País que temos” e pura e simplesmente, ficam-se por aí. O que julgo não ajudar para o aprofundamento de debates sobre o nosso pensamento individual e/ou colectivo.

 

Não existe nada de errado em um grupo de pessoas, devidamente identificado, decidir propor que o nosso ícone da música moçambicana ora falecido seja indicado como Herói. É claro que não será nada fácil, sabemos todos que as coisas não funcionam assim entre nós. Sabemos que, regra geral, quem identifica os Heróis é um determinado grupo seleccionado a “dedo” e sob orientações superiores do Governo do dia e “penetrar” nesse meio não é fácil, mas nem por isso deve-se menosprezar a sua existência. Deve-se começar pelo princípio e, caso não se dê ouvidos, entra-se por esta via da confrontação e não partir do princípio da confrontação!

 

Apesar de reconhecer a dificuldade de “penetração” não se deve encorajar a “rebeldia” porque, na minha opinião, as pessoas que encorajam ou que encorajaram esses jovens a enveredarem por essa via, hoje e neste momento, estão assistindo via Facebook, Whatsap e outros meios a sorte dos mesmos. Provavelmente, irão aparecer nas TVs a falarem da falta de “liberdade” em Moçambique, esquecendo que existe uma diferença entre a Liberdade e a Libertinagem ou anarquia. Pouco se importam porque quem sofre não são eles, mas os quatro jovens recolhidos às celas.

 

Admirar alguém, adorar alguém, qualquer um pode o fazer, mas o faz no recanto da sua casa, entre amigos e/ou grupo de pessoas. Mas quando essa admiração se pretende “impor” que todos o façam, transcende o direito de liberdade e passa a ser ditadura. Qualquer um não deseja ser imposto seja lá o que for. Diz a máxima que “a tua liberdade termina onde começa a liberdade do outro” por isso eu julgo que, no lugar de “Heroicizar” os quatro jovens, deve-se aconselhar sobre que procedimentos devem ser seguidos para se atingir um determinado objectivo e, caso não sejam ouvidos, poderem enveredar por outras vias.

 

Esta minha reflexão pode não merecer a atenção e respeito de muitos, sobretudo, aqueles que enveredam pelo uso do “sensacionalismo”, aqueles que gostam de confrontar-se com as autoridades estatais, que gostam de publicitar as incapacidades institucionais, esquecendo-se que essas instituições são nossas e a nós cabe capacita-los para melhor servir-nos. Vamos criticar sim, mas não vamos fazê-lo simplesmente para aparecer, devemos fazê-lo dentro de um quadro de legalidade e de justiça, partindo do princípio de que “não faça a outro o que não gostaria que te fizessem a ti”.

 

Aos jovens detidos, vai a minha solidariedade e correcção, solidariedade porque, na minha opinião, a prisão é o último recurso a ser usado pelo estado e acontece porque o indivíduo se mostrou recalcitrante e não me parece que seja o caso desses quatro jovens, salvo melhor opinião. Correcção porque, na minha opinião, no lugar de prisão, merecem ser corrigidos e orientados sobre os seus desejos, mostrando-lhes os caminhos a seguir para conseguirem esse desiderato. Não se deixem enganar jovens, a pátria é vossa e o futuro vos pertence!

 

Adelino Buque

terça-feira, 16 maio 2023 12:35

Entre a honestidade e a fome

AlexandreChauqueNova

Por estas alturas estaríamos a desfrutar das deliciosas laranjas cultivadas em Nhacoongo, aqui perto no distrito de Jangamo. Outras chegariam de lugares um pouco mais longe como Murrombene e Massinga, os mercados estariam cheios, apelativos. O ananás viria de Muchúngwè em camiões abarrotados de doçura, e de Inharrime também, então a cidade inteira transformava-se em feira de fruta, era a festa da vitamina em si. E depois eram as tangerinas, famosas em todo o mundo por via do poema de José Craveirinha “As doces tangerinas de Inhambane”.

 

Mas toda essa fruta continua a ser despejada por uma espécie de básculas, inunda os mercados. Há compradores que mesmo assim não vão em avalanche, se calhar porque o dinheiro escasseia. Porém há um interveniente que nos faz balançar de forma particular perante a oferta, que é o paladar, redondamente descompensado, ou seja, a maior parte desses produtos que nos são dados a consumir não estão maduros, são arrancados verdes da árvore, antes da formação.

 

Ainda há dias fui ao mercado, queria comprar maracujá. A própria casca falava, dizia-me que a fruta não está apurada e, portanto, não devia estar ali à venda para consumo. Perguntei – de propósito – à vendedeira, se aquela maracujá estava madura, ela respondeu-me assim, não está bem madura! Eu ainda retornei, porquê que vende se sabe que não está bem madura, mamã? E ela, sem receio disse, “É fome, papá”.

 

A mulher estava a ser honesta. Sabia da violação do direito do consumidor que estava cometendo, mas também tinha fome e precisa de se alimentar, a barriga não sabe esperar. É assim com a laranja e o ananás e a tanjerina, são comercializados na sua maioria em estado de imaturidade, não nos permitindo por conseguinte, ter o prazer de degustar de um ananás doce ou de uma laranja apetitosa, esse tempo já passou, sem que ninguém saiba se vai voltar um dia, e o presente leva-nos a pensar que não temos outro caminho que não seja o de aceitar o que nos dão, ainda por cima com o nosso dinheiro.

 

É um doloroso dilema das vendedeiras dos mercados, que vêm de longe penduradas em carrinhas de caixa aberta do tipo “My love”, chegando a dormir ao relento nos mercados enquanto o produto não acaba. Podem ficar dias assim mesmo, pior agora que o frio chegou, elas precisam de levar pão para casa, não importa o caminho a seguir para conseguir isso. Essa é a realidade.

 

Por outro lado, todas as semanas há camiões cheios de banana que chegam e baldeam a mecadoria que depois é levada em “thxovas” em estado verdíssimo, mas no dia seguinte o mesmo “thxova” leva a mesma banana que ontem estava verdíssima, já em condições de ser consumida. É estranho porque a casca, depois da fruta amadurecida de um dia para o outro, apresenta um aspecto deplorável, mas os que vendem dizem, não se preocupe com a casca, a fruta lá dentro está boa. 

 

É isso: estamos na época da fruta. Há muita fruta, mas........!

terça-feira, 16 maio 2023 09:20

Jonas Ernesto Binda Chitsumba

MoisesMabundaNova3333

O Costa do Sol preencheu, por fim, no pretérito sábado, a vacatura aberta na sequência da partida precoce de Jonas Chitsumba a 28 de Novembro do ano passado, 2022. O perecido era colega na EDM e amigo! Praticamente, ele é que me introduziu na EDM!

 

Na mensagem fúnebre da Direcção a que Chitsumba estava afecto nos últimos dias da sua vida, podia ler-se: “Como endereçar-te uma mensagem de despedida? Como elaborar um elogio fúnebre? Como te dizer adeus? Se tu estás nos nossos olhos! Nas nossas vistas; na nossa mente; nos nossos corações. Ainda sentimos em nós a tua energia, a tua força, pujança e serenidade, a tua alegria! O teu dinamismo muito contagiante!  Nós ainda não aceitamos que partiste. Para nós, tu foste para Temane, em mais uma missão de serviço! Para nós, tu foste a Inhambane ver o andamento do projecto da Central Termo-eléctrica de Temane (CTT), de que eras digno Director e Gestor! Para nós, logo, logo, voltarás e nos insuflarás com o teu dinamismo, com a tua voz sibilante e muito audível! Continuaremos a usufruir da tua presença ruidosa nos corredores e salas da nossa Direcção de Desenvolvimento de Negócios!”

 

Com a devida vênia, faço minhas estas palavras, integralmente. Como faço minhas também as seguintes, que cito da mesma mensagem: “Custa-nos ouvir, aceitar e acreditar que jamais voltarás de Temane. Se foste inúmeras vezes e voltaste! Foste, voltaste, foste e voltaste! Custa-nos muito encarar que nos deixaste para todo o sempre. Que jamais sentiremos o teu fulgor. Que não mais beneficiaremos dos teus profundos conhecimentos, do teu saber muito alargado; da tua liderança galvanizante e estimulante; da tua grande capacidade de gestão. Que não mais teremos o teu coração humanista entre nós!” E acrescento que, depois de tudo, não mais ouvirei “é isso aí, meu caro Mabunda”, como me dizias sempre, depois de… fosse o que fosse!

 

Esta, confesso, foi a razão por que, cinco meses após a morte do Chitsumba, não consegui rabiscar nada. Ainda estou à espera do Chitsumba para… mais uma tirada por aí, ou em Vilankulo, ultimamente, ou na Beira, Nampula, ou em Pemba! Mas, o passo dado pelo Clube de Desportos do Costa do Sol - também ele muito incrédulo com o que se passou - deixa muito bem claro que o nosso amigo, irmão e colega partiu definitivamente para o além! E que só temos de aceitar, embora com olhos esbugalhados.

 

A minha entrada na EDM, em 2006, coincide mais ou menos com a transferência dele de Director Regional Norte para Director de Distribuição (DD) e na sequência disso tinha que viver para Maputo.  Como DD, tinha a grande responsabilidade de dinamizar todas as então Áreas de Distribuição (agora Delegações) por todo o país, uma espécie de director nacional.  E eu acabava de ser recrutado para… também eu… dinamizar a divulgação das muitas e imensas realizações da Empresa! A proximidade das missões de cada um de nós, se fosse para dar certo, só podia dar em casamento sólido!... e deu!

 

Entrei em Novembro, mas, já em Dezembro, antes de completar um mês sequer, já lá estava eu com uma missão de jornalistas de vários órgãos de informação nacionais, em digressão pelo país, a visitar os mais vistosos projectos da EDM, com Jonas Chitsumba na liderança da delegação, não só a apresentar-me aos colegas em todas as direcções, mas a abrir todas as portas. Ponto por ponto, ele e o director local é que prestavam os esclarecimentos necessários aos jornalistas. Em cerca de duas semanas, batemos quase todo o país - Pemba, Nampula, Nacala, Quelimane, Beira, Chimoio e Província de Maputo.

 

Assim começava uma relação de trabalho que foi muito profunda e que deu numa amizade inapagável. Ele, detentor de informação de utilidade pública e eu, divulgador de informação. Muitas mais digressões com jornalistas faríamos ao longo dos seus seis anos como Director de Distribuição e muitas aventuras teríamos... Mas, mais digressões juntos faríamos também por causa dos eventos da Empresa. O modelo de gestão em vigor tinha/tem reuniões nacionais regulares em diferentes pontos do país - reuniões de prestação de contas, reuniões de balanço e reuniões de debates sobre várias outras matérias. Lá estávamos, ou lá nos encontrávamos, trabalhávamos, curtíamos… e mais alguma coisa!

 

Obviamente que nem só de trabalho vive o homem! Nestas andanças todas pelo país real, muita coisa acontecia, deixando à imaginação do querido leitor! A sua transferência para a direcção das Áreas da Cidade e Província de Maputo, em 2012, apenas refreou a frequência dos contactos, do trabalho em conjunto, das conversas, mas estes continuariam até agora que ele dirigia o projecto da construção da Central Térmica de Temane!

 

Foi-se um amigo, um amigo dos seus amigos, uma pessoa que nunca andava de testa amarrada, que nunca olvidava o confronto com jornalistas, que nunca se exaltava nas milhentas discussões e debates que mantínhamos, a sós ou com outros presentes, incluindo jornalistas; com um riso (não sorriso) genuíno, estridente, contagiante! Nenhum jornalista desdisse o Chitsumba ao longo desse tempo! Nunca!

 

Caro Colega, Amigo e Irmão Jonas Ernesto Binda Chitsumba, vá e descanse em paz! Mas viverás para sempre nos nossos corações! - citando de novo a mensagem dos colegas da Direcção de Desenvolvimento de Negócios.

 

ME Mabunda

terça-feira, 16 maio 2023 06:27

ANÍBAL ALELUIA

“Os homens, estáticos, observavam o préstito que avançava. Os corpos das mulheres, besuntados de óleo de rícino, brilhavam, nus, prendendo os olhares dos homens.

 

Moças de pomos semiesféricos, túrgidos, inclinando os rostos à admiração dos olhos, cerrando as pálpebras sob o véu do pudor; mulheres de meia idade, de corpos tatuados, ventres flácidos e seios semelhando a barbelas de vacas tísicas; velhas de cútis rugosa e pregueada pelo tempo; mulheres gordas e magras, belas e feias, todas expunham o seu físico com uma impudência sem limites.

 

Agora, lá longe, nas dunas cujos cimos se desenhavam em contornos suaves como que a traços de bistre, a face da lua poisava branca e redonda, vestindo as dançarinas com clâmides de prata que mal lhes velavam os corpos.”

 

(Aníbal Aleluia, “Mbelele e outros Contos”.)

 

Em Gaza, num ano de seca severa e de absoluta desolação, em que se adivinha e teme o apocalipse, com o povo a atribuir o infortúnio da falta de chuva à zanga dos “nguluves”, mesmo quando o “nhamussoro” imolava carneiros e bodes ou sacrificava galinhas, a esconjuração revelava-se sempre improficiente. Os homens pegavam nos seus “xitendes” e faziam malas e rumavam para a terra prometida do Jone e as raparigas deixavam para trás os berimbaus, abandonavam as palhotas e iam para Mafalala ou Estrada Nova comerciar o corpo. Os sobas resolveram mandar consultar “Nengueuassuma” (homem de perna de mosquito), o mais famoso “nhamussoro” em toda a região de Gaza e este não foi de tergiversações, mas sim assertivo: “Ide fazer mbelele...”

 

“Mbelele e Outros Contos”, que narra, de forma exímia, a ocorrência miraculosa da chuva, na sequência do mbelele, naquelas terras assoladas pelo desfortúnio, é um livro que Aníbal Aleluia escreveu em meados dos anos 50, mas só foi publicado em 1987. Estes belos contos estiveram para ser publicados em 1961 por iniciativa do jornalista Joaquim Correia. Contudo, o autor foi preso em Maio desse infausto ano e a sua mulher relacionou aquela detenção com as suas investidas literárias e pediu o livro de volta. O volume iria permanecer inédito longos proverbiais anos.

 

Aníbal Aleluia era acusado de ter contactos com Kamuzu Banda, do Malawi, era aviltado como “nacionalista africano”, ou visado por estar mancomunado com Baltazar da Costa na revolta do Norte do Zambeze.  Tudo inverdades, patranhas, invencionices de quem o odiava, sobretudo os “bufos de Zóbuè”.

 

A ligação que, eventualmente, se lhe poderia assacar era aos chamados democratas, sobretudo Santa Rita e Soares de Melo, em cujo escritório trabalharia, vínculo que o levaria a colaborar na publicação “Itinerário”. Santa Rita, Soares de Melo, Ricardo Fernandes, Ovídeo Cordeiro ou Almeida Santos encorajam-lhe a escrever e ele fazia-o com denodo: animava-se por um espírito contestatário e incumbia-se da tarefa de falar de uma comunidade sem cidadania e das suas misérias. Debutaria em 1947 e foi decisivo o estímulo de Cassiano Caldas – figura tutelar para a geração da Noémia de Sousa e do José Craveirinha –  que lhe pagava 250 escudos naqueles tempos difíceis. A escrita de intervenção era, por conseguinte, o seu apanágio.

 

Para além do “Itinerário” colaborou em “O Brado Africano”. Curiosamente, fê-lo na mesma época que Carolina Abranches. Aníbal Aleluia tinha uma rubrica mensal, intitulada “De mês a mês”, na qual se debruçava sobre várias personalidades. Um dia quis escrever sobre Noémia de Sousa, de quem ninguém sabia tratar-se, e resolveu pedir ajuda à Carolina Abranches do “Brado Africano”. Ela respondeu-lhe dizendo que conhecia Noémia de Sousa e sabia que era uma pessoa modesta  e que talvez ficasse extremamente melindrada  ao saber que iria ser objecto de um artigo no jornal. Aleluia redigiria o seu artigo com os materiais de que dispunha e, só mais tarde, descobriria que Carolina Abranches e Noémia de Sousa eram uma mesma pessoa: Carolina Noémia Abranches de Sousa.

 

A sua vida foi dura e marcada por adversidades. Não só a agrura da prisão, mas os afrontamentos ou ultrajes que teve que suportar. Certa vez redigiu um texto (“Dignificação do Trabalho”) criticando o salário de fome  que era pago aos chamados “indígenas” e denunciando o próprio conceito de trabalho entre os nativos. Enviou-o para a publicação na qual colaborava. Não foi publicado. Quem dirigia o jornal mandou-o para o caixote de lixo e com o mesmo título redigiu um outro texto que estava nos antípodas daquele feito por Aleluia e que era um verdadeiro ditirambo às políticas laboral e salarial do regime. Não muito tempo depois o tal cavalheiro seria nomeado conselheiro de uma instituição em Portugal.

 

No tempo em que Aníbal Aleluia colaborava para o “Itinerário” e/ou “O Brado Africano”, nos anos 50, despontavam alguns dos nomes fundadores da literatura moçambicana. Ele acompanhava discretamente a sua produção, sobretudo a dos poetas: Noémia de Sousa, José Craveirinha, Rui Knopfli, Ruy Guerra, Fonseca Amaral ou até Santos Abranches (que teve um papel crucial na época).

 

Uma pérfida personagem, de seu epíteto Parafuso, que se comprazia em usar o pseudo linguajar negro, que racicamente classificava de “pretoguês”, fazendo, assim, pouco dos pretos, adquirira notoriedade. Aleluia sentir-se-ia vexado por essa personagem e rejeitava, por assim dizer, aquele tipo de narrativa. Noémia de Sousa, também, haveria de falar-me da espécie que lhe causara tal Parafuso e de objectar por completo aquele tipo de linguajar para caracterizar os moçambicanos.

 

Aníbal Aleluia falava, nos seus artigos, da injustiça social, da discriminação racial, proclamava a necessidade de se dignificarem os moçambicanos, advogando a premência de lhes serem facultados recursos para se desonerarem do sadismo social de que eram vítimas e no qual estavam atolados. Este era o escopo da sua escrita.

 

Como somos um país que não preza a memória, mas sim faz descaso do passado e do que realmente importa, estes artigos que mereceriam uma edição cuidada e uma atenção crítica dos nossos acadêmicos, não concitaram, até hoje, o entusiasmo indispensável para saírem do sepulcro dos jornais. A despeito, as nossas universidades afadigam-se a arrazoar, com volúpia, sobre questiúnculas e se deleitam com a enxúndia dos dias.

 

Henrique Aníbal Aleluia nascera a 30 de Agosto de 1921 na Península de Linga-Linga em Inhambane e era oriundo de uma família de antigos construtores de barcos. Carpinteiro, marçano, enfermeiro, professor, solicitador, auxiliar de veterinária, funcionário administrativo, calcorreara o país, sobretudo como enfermeiro, do extremo norte litoral em Palma, em Cabo Delgado, às províncias de Nampula, Tete, Manica, Gaza, Inhambane e Maputo. A sua permanência em Zóbuè foi indubitavelmente marcante. Os seus contos testemunham o seu conhecimento do país.

 

Teria sido um repto do seu amigo António Caetano Fernandes que o levaria a escrever ficção. Havia quem asseverasse, à época, na “Elo”, que existia um substracto orgânico que incapacitava o nativo de fazer ficção e a recusa de Aníbal Aleluia de a praticar seria então prova bastante. O autor, que vivia no Zóbuè, na zona europeia de inspecção de combate à tripanossomíase, encontrando-se, por essa razão isolado e com tempo que lhe enfastiava, resolveu contraditar aquele anátema.

 

Houve quem visse, nos seus textos literários, exposição dos segredos que seriam sagrados para os naturais. E houve quem o acusasse de “denegrir a comunidade africana”, o que lhe valeu impropérios, por vezes, violentos. Aleluia procurava tão somente “revelar facetas da vida e dos sentidos dos grupos menos evoluídos da minha terra com os olhos de dentro, fazer uma observação centrífuga da alma da minha gente”.

 

Guardados na gaveta durante décadas haveriam de ser publicados em finais dos anos 80 quando o autor tinha 67 anos. Talvez por isso, Aníbal Aleluia não se considerasse escritor: “Um homem que se estreia próximo dos 70 não pode ser de esperanças nem de mudanças”.

 

Recordo-me da sua extraordinária elegância, do seu formalismo, do seu rebuscado vocabulário e da sua retórica enformada, da sua conversa culta e inteligente, do seu asco à indigência e à mediocridade, do seu vasto percurso e do seu pecúlio. Da sua probidade.  Da sua solidão. Da sua profunda solidão. Sobretudo recordo-me do facto de ser um homem marcado pela dureza da vida, pela tristeza, pelas provações, pelos tormentos, pelas aflições.

 

Ainda que fosse corrosivo ou incisivo na crítica e irónico e alegórico nas invectivas, fazia-o com galhardia. Aníbal Aleluia não se furtava a uma boa polémica. Gostava de alegar, de citar, de demonstrar, de pretextar. Denotava uma grande cultura literária. Aliás, quando frequentou a Escola de Professores devorava 10 romances por mês e era lendária a sua avidez pela leitura.

 

Aníbal Aleluia usou diversos pseudónimos na sua vasta actividade jornalística e literária: Roberto Amado, Augusto António ou Bin Adam. Colaborou, para além do “Itinerário” e “O Brado Africano”, em: “Voz Africana”, “Boletim Médico do Sul do Save”, “Almanaque de Moçambique”, “Elo”, “D´Aquém e D´Além Mar”, “Vértice”, “Notícias”, “Voz de Moçambique”, “Tempo” e “Charrua”. Não será de todo um disparate dizer que ele pertenceu ao movimento da “Charrua” ao lado dos jovens iconoclastas que o promoveram. Um dos seus integrantes, Ungulani Ba Ka Khosa, que um dia disse que esta era a melhor revista do mundo (uma “boutade”, certamente) quando se refere à “Charrua” nomeia, entre os seus constituintes, Aníbal Aleluia.

 

Aleluia sonhava escrever um ambicioso romance. A ideia central do livro defendia a “tese” de que o nacionalismo (ou o proto-nacionalismo, se se quiser) não nascera no Sul, mas brotara no Centro e Norte do País. Para o autor o berço da resistência não era Gaza, mas sim Angoche, entre o tempo de Mogossurima, no século XVIII até aos tempos de Farelay no limiar do século XX, quando os sultões cótis, de origem quiloana, opuseram o Crescente à Cruz.

 

A sua contumácia irá render-lhe dissabores também nos anos ulteriores à independência. Tendo uma posição equidistante politicamente, não se comprometendo com o regime, exercendo aliás sobre este um espírito crítico, acerbo muitas vezes, cedo viu os prosélitos e defensores do antigo regime se transfigurarem em revolucionários inequívocos. O que lhe causava urticária.

 

Era crítico firme das exorbitâncias da revolução, como a operação produção e de outros exageros e desregramentos que se praticavam. Foi contra o banimento da educação moral e via, como consequência, uma sociedade que resvalava para a imoralidade.  Repugnava-lhe a lei da chicotada.  Indignou-se quando um causídico, em plena Assembleia Popular, defende tal lei e foi ovacionado pelos deputados. Censurava o facto de, na administração pública, a inteligência e a competência se subjugarem aos interesses políticos que, a seu ver, não concorriam para o desenvolvimento equilibrado da sociedade.

 

Preso no tempo colonial, não faltou quem o quisesse ver proscrito no tempo subsecutivo. “Pertenço à primeira leva – caça grossa para a Pide, reaccionário para a Frelimo”, dizia sem acrimónia, mas profundamente desgostoso. Não praticava nenhum júbilo quanto ao futuro. Muito ácido nas suas análises, não se animava com aquilo que a efervescência política então produzia. Numa entrevista a Michel Laban terminava o seu juízo sublinhando: “Quero com isto significar que considero inquietante o futuro deste país”.

 

Aníbal Aleluia sentir-se-ia sempre marginalizado, quase sempre omitido. Tivera uma vida vivida sempre com dificuldades, atribulações, agruras. Em Agosto de 1990, quando o entrevistei para o livro “Os Habitantes da Memória”, quis, entre outras coisas, saber se ele, à beira dos 70, escreveria um livro de memórias. Não enjeitava de todo a ideia, contudo realçava o facto de que o seu “testemunho acordaria em algumas pessoas recordações amargas”. Foi quando me disse uma frase que eu nunca mais haveria esquecer: “Tenho um hábito que atrai empatias incómodas”. Usei-a para título.

 

A 21 de Janeiro de 1993 redigiu o prefácio para a sua novela “O Gajo e os Outros”. Esta é a sua derradeira efeméride literária. Pediu a Calane da Silva que lhe aduzisse um posfácio. A 13 de Maio, regressado de Inhambane, liga a Calane  para saber do texto. Combinam um encontro no dia seguinte para que este lhe entregasse o texto. Esse encontro não acontecerá. Henrique Aníbal Aleluia morrera nessa madrugada, 14 de Maio de 1993, passam hoje 30 anos. O livro sairia em edição póstuma no mesmo ano com a chancela da AEMO. Era a obra subsequente a “Mbelele e Outros Contos”. Em 2011 a AEMO publica, postumamente, os seus Contos do Fantástico:

 

“Na Península de Linga-Linga onde nasci – cunha de palmares encravada entre o Índico, a nascente, e a baía de Inhambane, a poente, seis léguas a Sul do Trópico de Capricórnio , cobrindo perto de quarenta e cinco quilómetros quadrados, com centenas de fogos distribuídos por seis ou sete clãs – conheci um único nhanga, dos de tocar batuque, cantar e dançar.

 

Deixe a Península, infante, para ir estudar em Inhambane primeiro, seguindo depois para Morrumbene e acabando em Furvela.

 

Quatro anos depois, voltei à Península onde apenas me detive por ano e meio, aprendiz de carpinteiro barçal (sic) na pequena oficina de meu pai. Depois que parti dali, nunca mais voltei a morar na Península.

 

Cruzei então esta terra de lés a lés. Pelo litoral, conheço Moçambique do Cais de Maputo ao rio Rovuma (que atravessei). Para o interior  atingi as regiões serranas do Alto Tete, pois vivo no Zóbuè. Com esta vida de nómada fui-me empobrecendo cada vez mais materialmente, enquanto enriquecia no conhecimento das nossas microetnias.”

 

(Aníbal Aleluia, “Contos do Fantástico”.)

 

Henrique Aníbal Aleluia: aqui o lembro hoje neste breve preito e neste país onde se pratica, com complacência, o esquecimento, a deslembrança e o oblívio. Ou neste tempo de desatenção, indiferença, desrespeito, omissão e descaso.

 

KaMpfumo, 14 de Maio de 2023

NandoMeneteNovo

Um sénior citadino da capital do país foi interpelado, na esquina das avenidas 24 de Julho e Guerra Popular, por jovens estudantes que discutiam sobre uma obra que decorre bem próximo e em pleno passeio central da Av.24 de Julho.

 

Pelo que pude apurar os jovens são estudantes de um instituto que leciona matérias sobre transportes e discutiam se a obra acima referida era ou não uma estação (paragem) do BRT (Bus Rapid Transit), o retomado projecto de faixas/corredores exclusivos de transporte público urbano, recentemente anunciado pelo titular do Ministério dos Transportes e Comunicações

 

Porque o consenso roçava a impossibilidade os jovens decidiram solicitar a opinião do citado citadino, que por ali ganha o pão. Este, um velho ardina e engraxador da esquina, que depois de (supostamente) reflectir – os sinais do exercício não deixavam dúvidas – respondeu com sotaque de José Maria Relvas: “Se é uma estação do BRT? Não, é uma retrete pública!”.

 

O sotaque e o termo “Retrete Pública” deixaram-me com alguma curiosidade a ponto de deslocar-me até a dita obra a fim de conferir a placa. Entre outros dados, constava que a obra é do Município de Maputo e de que era um sanitário público. Confesso que enquanto aproximava-me da placa rezava para que a obra fosse uma estação-modelo do BRT.

 

Prontos: a obra é de facto uma “Retrete Pública” localizada no coração da cidade entre quatro faixas de rodagem (duas de cada lado) da movimentada Av. 24 de Julho. Imagino que aliviar por ali o número dois não será fácil. A cada buzinadela, uma interrupção. E esta pode até ser divina e como causa da morte: “Acidente fatal de viação em posição fecal”. Assim constará na certidão de óbito.

 

Decerto que alguém pensou, alguém decidiu, alguém financiou e a obra decorre. Igualmente decorrem inquietações cidadãs quer sobre a localização e segurança quer as de ordem estética, sociológica e antropológica, quer ainda da ligação desta obra com o BRT, uma vez que se encontra postada no percurso de uma potencial via BRT.  

 

Em retirada, solene e fúnebre do local, e diante dos jovens estudantes, que se haviam também aproximado da placa, disse-os de que temia que esta retrete pública fosse o retrato público do destino a ser dado ao projecto do BRT. Na verdade, o endereço final de anteriores projectos similares e afins.

 

Por ora, e a fechar, que se espere pelo dia da inauguração, principalmente pelos discursos e outros actos da ocasião, um momento que aguardo ansioso, pois nunca vi e não sei como é que se inaugura um sanitário público, sobretudo quando a M… já está, previamente, feita.

 

Nando Menete publica às segundas-feiras.

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