Quando a Federação Moçambicana de Futebol foi arrastada pelos pés para fora do jogo, com seus dirigentes que passavam a vida soprando apitos de sono nos escritórios como pastores de gado, todas as bolas foram transformadas em berlindes e assim surgiu dessa devastação a Federação Moçambicana de Berlindes. O timbre da nova federação era um berlinde submerso num buraco e um enorme dedo indicador em posição de remate.
Umas das primeiras obras da Federação Moçambicana de Berlindes foi a massificação da nova modalidade; a federação comprou um rebanho de retroescavadoras para abrir buracos que facilitassem a prática da modalidade. E não houve muito trabalho, visto que em todas as regiões do país o que não faltava eram buracos. Na própria sede da federação existência um enorme buraco deixado pela direcção de futebol que servia de campo de treinos das sub-selecções.
A selecção nacional de berlindes treinava em diversos campos bem equipados que temos em todo país, mas a estrada nacional número um era o palco predilecto. Claro que fazia todo sentido ter uma selecção que aproveitasse os buracos do país do que uma federação de futebol que afundasse a selecção em buracos. O Governo apoiou muito a selecção nacional de berlindes: financiou sem medir esforços projectos que ampliassem os buracos do país.
Foi muito curioso ver a federação nacional de berlindes aproveitando-se dos enormes buracos deixados pela federação nacional de futebol para praticar a sua modalidade. A selecção nacional de berlindes ganhava tudo que fosse campeonato mundial, aliás, enquanto a federação nacional de futebol ocupava-se em encher os bolsos de moedas, a outra enchia os buracos dos bolsos com berlindes novos e taças. Se a memória não me falha, a última vez que a selecção de berlindes perdeu num campeonato mundial, a população saiu furiosa à rua armada de alcatrão, ameaçou tapar todos os buracos e assim acabar com a modalidade e todas as derrotas azedas, mas a polícia, no seu exemplar trabalho, interveio, impediu as manifestações e recolheu todas as barras de alcatrão aos seus armazéns. Tapar os buracos da selecção era, sem dúvidas, um enorme insulto ao desporto nacional e ao esforço imensurável do Governo.
A modalidade dos berlindes nos buracos cresceu; o Governo não parava de inaugurar mais buracos em todo país, a bandeira de Moçambique, pelo dom dos buracos e dos movimentos dos dedos, era erguida em todo mundo e há quem viajava para o país para conhecer os buracos onde eram formados os melhores do planeta. A federação moçambicana de futebol nunca mais fez falta; os estádios foram transformados em mercados, os camiões de batatas e cebolas invadiram o Estádio Nacional de Zimpeto, as plantações de alface e couve galgaram, como trepadeiras, as bancadas do Estádio da Machava e assim o desporto cresceu.
A selecção nacional de berlindes usava luvas, fazia jogos amigáveis nos luxuosos buracos de Burundi, Eritreia e Malawi, testava as penalidades com os dedos nos buracos oficiais dos mistérios e sempre usava as redes das balizas da antiga federação moçambicana de futebol para pescar mais vitórias em campeonatos mundiais. Os campeonatos mundiais aconteciam no nosso país, pois a FIFA dos berlindes rendia-se e curvava-se à excelente conservação que fazíamos das nossas covas. Nunca fomos reprovados por falta de covas excelentes.
Quando a Federação Moçambicana de Futebol foi arrastada pelos pés para fora do jogo, com seus dirigentes, os berlindes ganharam espaço e todos pusemo-nos a gritar as taças que nos qualificavam para os buracos das nossas satisfações. E assim fomos conhecidos como o país dos berlindes e dos buracos.
Com a crise keynesiana, no passado século XX, que advogava um Estado interventivo na economia sempre que fosse necessário, visando evitar a retracção económica e garantir o pleno emprego, os países socialistas de economias periféricas (e não só) abriram-se ao financiamento às suas economias e, consequentemente, ao sector da Educação. Isso pressupôs que, entre as reformas feitas, no âmbito dos acordos com as instituições dos Bretton Woods (FMI e BANCO MUNDIAL), o estado deixaria de financiar a Educação, ficando somente com a função regulatória, passando a tarefa de injecção pecuniária maioritária ao privado. O privado, por sua vez, passaria “implicitamente” a definir o que deve ou não ser leccionado. É aqui onde toda a “desgraça” começa. Perdeu-se o controlo total e completo sobre a gestão educativa sectorial em benefício de um financiamento que colocou o país na actual alienação gravosa.
Ganhou o neoliberalismo e o comunismo, embora não seja integralmente melhor, foi enterrado para sempre. Vale a pena lembrar que os actuais ultraneoliberais herdaram a veia capitalista outrora criticada por Karl Marx e Antonio Gramsci, por terem fomentado um tipo de Educação que perpetua desigualdades de classes - formar a classe baixa para o fazer - apenas para servir o mercado (trabalhando) e formar a classe alta para o saber - capaz de conferir liberdade intelectual (pensar sem alienação) com a possibilidade de gerir as classes perenemente subordinadas.
Abro parênteses para frisar que, quanto a mim, a questão não reside no combate ao neoliberalismo, tão pouco advogo a retoma ao comunismo, mas defendo a restruturação dos pressupostos de ambos. Dito de outro modo, primo pelo hibridismo - a coabitação pacífica entre os valores vitais do comunismo e do neoliberalismo capazes de existir sem colisão à favor da humanização. Do que há na memória colectiva, alguns exemplos a ter em conta são dos países escandinavos. Tudo que seja inerente à humanização não colide. Por exemplo, se os dispositivos mediáticos como são os casos da Televisão, plataformas digitais, etc. são produtos do neoliberalismo, que se usem para libertar o indivíduo e não os ter como aparelhos ideológicos que alienam este indivíduo subalterno. Idem para as igrejas que não devem firmar-se por aparelhos ideológicos alienatórios – mas este não é o âmago da minha questão – releguemos para outro momento e voltemos à minha negação sobre o tipo de Educação que perpetua desigualdades de classes - formar a classe baixa para o fazer - apenas para servir o mercado (trabalhando submissamente) e formar a classe alta para o saber capaz de conferir liberdade intelectual (pensar sem alienação e decidir por si sobre seu próprio destino) – algo que os habilita a gerir as classes perenemente subordinadas.
Esta parte da desigualdade de classes é a que leva os nossos dirigentes cientes do problema e financeiramente capazes, em Moçambique, a enviarem os seus filhos para estudar no exterior, em escolas cuja qualidade é inquestionável. O fazem para que os seus não sejam parte integrante da massa subalterna no futuro, porque têm consciência plena do paupérrimo sistema educativo alienatório – havendo, todavia, alguns raros excelentes exemplos de superação de ex-subalternos que se firmaram no melhor sentido.
Relativamente aos professores, como referi acima, o comunismo morreu e ganhou o neoliberalismo. Isso significa que em muitos quadrantes do mundo, a elevação do neoliberalismo veio matar os sindicatos dos professores e tantos outros. A morte de tais sindicatos, pelo neoliberalismo, não pressupõe a extinção das instituições de defesa dos direitos das classes dos professores e outros profissionais. Elas continuam existindo, mas com as suas forças inactivas senão castradas. Aliás, quem financia a tais sindicatos são os próprios neoliberais que exercem controlo sobre estes, no âmbito dos seus interesses em manter estagnado todos os organismos que agem em defesa dos interesses das classes mais desfavorecidas. Foi o que aconteceu com a ONP, SNJ, OTM e tantos outros, não foram extintos, existem, mas dentro de uma sonolência mórbida que os coloca na condição inerte.
Não fomos capazes de higienizar o espírito neoliberal que se abateu sobre Moçambique. As manhas do neoliberalismo conduziram-nos a um estágio mórbido na nossa Educação, quer em termos sindicais aos professores, quer sob ponto de vista de alienação aos educandos, empurrados a serem otários inocentes e permanentes escravos de um mercado cujos mentores e seguidores devotam-se para o manter, ignorando todas as insensibilidades contra a condição humana. Somos insensíveis e alheios às preocupações do professor, e à sorte do aluno, quando o colocamos a leccionar, por exemplo, uma disciplina prática sem laboratório e o cobramos resultados. Somos insensíveis aos professores pesquisadores quando cobramos artigos científicos e afirmamos estar sem verba para financiar uma investigação, entretanto conseguimos colocar chamussas e castanhas por cima de uma mesa para entreter os estômagos dos gestores educativos numa reunião de rotina. Somos insensíveis ao aluno quando o obrigamos a participar numa aula virtual, sujeita à avaliação, mesmo sabendo que o Censo moçambicano 2017 informa-nos que 52% têm acesso ao telemóvel em Moçambique e somente 7% têm acesso à internet, sendo 8.9% com acesso ao computador. Somos insensíveis quando tomamos decisão de avançar com pacotes educativos aprovados mesmo sabendo que as nossas utopias de formação colidem com estes números sobre a realidade do país. Somos insensíveis quando as grandes decisões tomadas não são em função dos resultados de investigação, mas apenas políticos. Somos coadjuvantes da qualidade educativa que os neoliberais “impõem” às massas subalternas.
Se, para os capitalistas, a Educação das massas deve ser de baixa qualidade e formar somente para o mercado, tais sindicatos não vão vincar porque o sistema educativo mundial que foi pensado pela classe dominante é o de manter, através da própria Educação, a distinção entre essas duas classes (dominante e dominada proletária). Portanto a ideia de cindicalizar o sector da Educação em Moçambique é boa, mas, para que não seja uma ideia romântica, precisamos estar bem cientes da magnitude do problema, de modo a estarmos melhor preparados (sem emoção) para jorrar muito sangue porque o assunto é estrutural, sistemático e de dimensão universal. É por causa de tudo isto e mais alguma coisa que tenho dito: “ser professor não é apenas uma profissão, é mais do que isso, é uma MISSÃO cuja meta revela quão árdua foi a trajetória”.
*Circle Langa
Comunicólogo e Pedagogo
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Moçambique é um território com muitas novidades, bem como centenas de Grandes Chefes. Porém, o que não nos havia sido dito, em público, é que muitos Grandes Chefes da Pérola do Índico são autores de postulados e teorias, nunca antes estudados nas salas de aulas das nossas desgastadas, muitas delas internadas, Escolas e Universidades espalhadas em todo o País.
Contudo, nestes dias, a partir da mais falada tenda do País, a tenda das revelações, localizada na Cadeia de Máxima Segurança desprovida de segurança, passamos a receber aulas gratuitas sobre os Postulados negacionistas de defesa e a Teoria dos Martelos, descascados em martelanços, ora pequenos, ora grandes, sejam pretos-brancos, sejam coloridos, quer nacionais, quer chineses.
No início das audições, quem não ficou colado às telinhas de TVs ou dos smartphones, queimando energia e os poucos megabytes que tinha, para acompanhar ao mais mediático julgamento económico de Moçambique – o Caso de Querela sobre as Dívidas Ocultas?
Assim, em poucos dias, duas personagens, quase por todos desconhecidas no País e no mundo, ganharam estatuto de modelos de justiça e de luta contra a corrupção. Pelo que, não faltaram elogios nem aplausos, escoltados de choros alegres e palmas de alívio de cidadãos desesperados e com bolsos furados gotejando migalhas de miseráveis esperanças.
Em seguida, vieram os Arguidos, os quais, após definido o Código Penal em uso naquele processo, transformaram-se em Réus. Com a audição de Mutota, passamos a saber que os nossos Grandes Chefes, também, são agricultores com machambas desconhecidas, nas quais, em pleno século 21, desperdiçam milhares de dólares sem planos claros de retorno – um SUSTENTA insustentável!
À entrada triunfal de Nhangumele, foi-nos referido que o projecto que levou à contracção dos 2.2 biliões de dólares foi esculpido por artistas secretos, com técnicas mágicas, provenientes de um planeta ainda por se descobrir e, caso aquele plano funcionasse, estaríamos seguros como nação. Ele disse não estar interessado em devolver parte das moedas que nos levaram à vala comum.
Quando chegou a vez do réu mais mimado da Pérola do Índico, entendemos que Jean Boustani, lá dos Emirados Árabes, estava enganado ao chamar de Cinderela um indivíduo que teve a coragem de espalhar perfumes de arrogância e malcriadez, bem como desrespeitar a todos Moçambicanos, pois, segundo ele, além de não ter memória de elefante, como ovelha inofensiva conduzida ao matadouro, foi injustamente empurrado nas dívidas publicitadas para atacar a sua família real.
Veio o seu amigo de infância, que, também, apesar de não constar da árvore genealógica da família real, transpirou chuvas venenosas de prazeres de insubordinação à justiça associadas ao seu problema de memória de curta metragem. Apesar de ele ser elefante em esquemas (i)mobiliários e monetários, afirmou não ter qualidades daquele animal em vias de extinção.
Igualmente, vieram outros Réus e Rés, que reclamaram sofrer injustiças e perseguições do guardião da legalidade no País. Alguns mais grosseiros que outros e outros produtores de respeito e obrigados em larga escala. Algumas até cuspiram verdades face aos apelos de sensibilidade do Tribunal e outras se revelaram autênticas artistas e costureiras de esquemas milionários.
Nisto, corriam as audições em sede de Tribunal. O alarme soou e chegou a vez do Chefe dos Agentes Secretos nacionais. Em contramão a todas as nossas expectativas, o rei da selva revelou, estrategicamente, desconhecer o pelouro que dirigia, despossuir abertamente a memória de um elefante, nem saber os contornos do projecto que, segundo eles, havia sido esboçado para nos proteger. Insólito! Era o primeiro leão sem juba, que disse ter potência inferior a algumas hienas e alguns abutres que pastavam e alimentavam-se nas relvas daquele pátio nas tendas da B.O.
Além disso, o rei da selva fez-nos saber que ele era um eterno apaixonado pela sua leoa, que não parava de interceder e enviar pingos de orações em favor da vida do casal, a fim de proteger a sua imagem, malandramente manchada pela falta de atenção aos detalhes de transações bancárias planificadas, esculpidas e monitoradas pelos Agentes Secretos liderados pelo leão, que não parava de rugir diante do Tribunal e de todos que acompanhavam as sessões de julgamento.
Aliás, quase todos estávamos acostumados em ouvir vários postulados negacionistas, a saber, postulado não me recordo, postulado não vou responder, postulado já respondi ontem, postulado está consignado em acta, postulado do silêncio, entre outros misturados com caril de malcriadez.
Por conseguinte, quando todos pensávamos que havia chegado a hora de ouvir grandes revelações do espião mais esperado de Moçambique, em sede da tenda das revelações, fomos brindados não apenas com postulados negacionistas de defesa, mas com uma teoria nunca antes ouvida, que diariamente gotejava em série, a Teoria dos Martelos de um Grande Chefe.
Aliás, não era a primeira novidade: assistiu-se e ouviu-se, naquela tenda, desfiles abertos de gatos, que procuravam devorar anexos, volumes e folhas daquele processo, mas o Juiz, sem investigar ou mandar averiguar, concedeu cobertura plena aos gatos. Não demorou, aqueles animais domésticos, que dominavam as coordenadas das tendas da B.O, passaram, às mesmas horas, no final do dia, a cortar energia em meio às audições. Porém, mesmo assim, os gatos tiveram mimos.
Assim, para chamar à atenção da sua presença ignorada, os gatos ganharam a coragem, afiaram os seus dentes e mastigaram algumas folhas com provas acusatórias contra o Grande Chefe. Era um recado-ataque claro e aberto dos gatos apessoados para alertar a todos, a fim de que não fossem mais ignorados, pois, eles estavam a sofrer injustiças e eram publicitados nas tendas da B.O.
Estava a ficar claro, diante de todos, que os Postulados dos Réus e a Teoria dos Martelos do Grande Chefe faziam parte de uma estratégia malandra para abandonar a tenda da B.O com aplausos escoltados de elogios que os conduziria a caminho de casa. Aliás, os golpes de saudação do Grande Chefe, à entrada e saída do Tribunal, eram truques mafiosos para comprar a atenção dos telespectadores e internautas. Afinal, os filmes de inteligência e espionagem, que assistimos, já nos haviam alertado que um Agente Secreto ou Espião nunca fala a verdade, mesmo quando escoltado de chuvas de espancamento ou arrancados ambos olhos. Mas aquele não era o caso!
Após quebrar o recorde do seu antigo Chefe, outro Grande Chefe, cuja chefatura lhe persegue até no Língamo, sua actual residência preventiva, o Grande Chefe das três empresas do calote das Dívidas Ocultas começou a conjugar a sua teoria, aos pedaços, aos quais designou por martelanços. Todas as provas lançadas pelo Ministério Público, para o Grande Chefe, eram resultado de marteladas que se transformavam em martelanços preparados sem mestria.
Com a sua Teoria dos Martelos, o Grande Chefe começou, até, a fazer piadas e enervar o Tribunal e a todos, já que em sede de Tribunal, televisionado ao vivo, não era possível receber presentes em punhos de raiva que se acumulavam nos sujeitos para quem ele se dirigia, zombadamente.
Portanto, superando a intervenção de outros Réus, o Grande Chefe, a cada audição, em julgamento na tenda da B.O, desfilando manguais de esperteza e conjunto de postulados, abrindo livros com páginas repletas de inteligência e teorias parasitas, buzinava bem alto e raspava o chão, sacudindo a poeira e o barulho nos olhos e ouvidos do povo, para se escapar das acusações que pesavam contra si. Assim, a cada postulado e teoria, cementava mais ainda a miséria dos seus compatriotas!
Mariano, vi-te nas fotografias deitado de costas como uma baleia cuspida pela fúria do mar, os teus olhos pendurados no rosto pareciam duas lâmpadas fundidas balançando e divertindo os insectos das tuas sobrancelhas. E aparece-me que tinhas muita pressa em morrer, pois nem uma lâmina de gilete passaste pela barba e não baixaste os lábios para esconder os molares. A vida não é cruel, os homens é que o são e tu eras homem.
E porque antes de morrer não pediste apenas um minuto, um minutinho, para vestires o fato que nos exibias na televisão, um minutinho para te deixares estar no espelho e arrumares o nó da gravata, um minutinho para juntares a tua Junta e dizeres um simples adeus, um minutinho para mostrares as costas à tua Junta e depois caíres morto de costas. Custava-te pedir um minutinho?
Não te escondas de mim, Mariano. Eu apenas te quero ajudar a carregar o teu corpo cheio de balas, talvez seja pesado demais; quero acender uma pequena vela e fazer sinal de cruz com o mesmo indicador que usavas para accionar o gatilho. A vida não é cruel, os homens é que o são e tu eras homem. Foste cruel, a vida é cruel, os homens são cruéis e tu eras homem. O melhor que podemos ter no mundo é um abraço, Mariano. Não há DDR que nos tire um abraço, não há um ex-guerrilheiro do abraço, não há subsídios que nos afastem do abraço e um abraço nunca precisa de mediadores.
Dá-me um abraço, Mariano Nyongo, e eu tentarei orar pela tua alma. Juro-te que Deus tem ouvido as minhas orações, juro-te que Ele pode arranjar-te uma lâmina para barbeares o rosto, um pequeno fusível para pôr nos teus olhos fundidos, dar-te um minutinho para correres atrás do teu fato e talvez um minutinho para desarmar-te da morte.
Ouves-me, Mariano? A vida não é cruel, os homens é que o são e tu eras homem. Não quero falar dos camiões que atacaste, das pessoas que fuzilaste, das paisagens de sangue que meteste pelas janelas dos autocarros, dos homens que pastavas nas matas e das tuas mãos inchadas de calos de armas. Não quero falar disso. Quero falar dos teus olhos, que vi nas fotografias, que pareciam duas lâmpadas fundidas, dos teus olhos que não tinham força para virarem ao seu amigo de lado e ciciar: “vês que a vida é cruel, amigo?”. Os teus olhos que mesmo abertos tropeçavam no vazio.
Não quero falar das tuas reivindicações e nem dos teus homens que viviam nas matas e saíam como hienas para atacar camiões. Podia falar do saco plástico onde foste embrulhado como um cão atropelado, mas eu quero falar dos teus olhos, Mariano, mas eu quero abraçar-te. Tu mataste, foste morto e a qualquer dia todos terminamos assim; não se pode dar muita confiança a um país que carrega uma arma na bandeira. Falando em bandeira, Mariano, achas que valeu a pena tentar erguer a bandeira da tua resistência? Não sou católico, mas posso rezar o terço, quem sabe cada missanga do terço cure-te as feridas das balas e os teus olhos fechem-se de vergonha e peçam perdão por tudo.
Dá-me um abraço, Mariano Nyongo. Não perdes nada em dar-me um abraço, nada de ti hoje resta. Engano-me; restam fotografias tuas que serão exumadas das gavetas e tatuadas com cruzes vermelhas à testa, resta uma arma tua que vai enferrujar de cobardia porque não te soube proteger e resta esse meu abraço que não queres receber.
Há dois que não fecha os olhos. Não pestaneja. O médico que cuida dele está em desespero. Recorreu aos colegas, que responderam de imediato, mas a situação não muda. Nem para frente, nem para trás. Tentaram induzi-lo com aparelhos, na esperança de trazê-lo à estabilidade. Sem sucesso. Chegaram a pensar no sistema de respiração boca-a-boca, ideia imediatamente reprovada por se mostrar desnecessária. Os pulmões de Mbata Mapengo não pararam de respirar.
Nunca foi visitado por familiares desde que está aqui, não se conhece nenhum. Nem por amigos. Chegou ao hospital em estado de coma, após ter sido sacudido por um camião, cujo condutor nem sequer parou para alguma coisa, como se Mbata Mapengo fosse um cão. Foi uma mulher generosa, se calhar uma samaritana, que, passando casualmente pelo local do sinistro, parou o carro e levou o homem ao centro de saúde.
Parece um cadáver, naquela posição chocante, coberto de lençóis brancos em todo o corpo, deixando apenas a cabeça que me lembra a mulher árabe adúltera, enterrada até às axilas, com o “crâneo” à mercê das pedras. Mbata Mapengo pode estar assim, se calhar na expectativa de que haja algum milagre que lhe permita dizer a última palavra antes de morrer.
Entrei para o interior da enfermaria – onde ia visitar um vizinho - e alguém me disse que aquele senhor não fecha os olhos há dois dias. Não fala. Não pestaneja. E, segundo relatos que vão me chegando dos doentes e dos visitantes, os médicos não sabem o que fazer. Para eles, este homem não está nem morto, nem vivo. Está em estado de dúvida. Provavelmente em estado de talvez.
Aproximei-me do desafortunado, por instinto, sem saber o que ia fazer perante um cenário macabro. Os próprios médicos e os enfermeiros e outros agentes da saúde, tinham capitulado. O corpo de Mbata Mapengo recusava-se a receber sondas. Houve ainda a ideia, acreditando no que se diz nos corredores, de alimenta-lo por via retal, porém, esse recurso desconfortável não chegou a materializar-se. O anus estava duro de tal ordem que se tornou inviável esse procedimento.
Mas eu cheguei perto de Mbata Mapengo. Olhei-o nos olhos e em resposta a minha ousadia, recebii profundos arrepios na medula. Cheguei a conclusão de que tinha ido longe demais, e agora não me resta mais nada senão render-me a asfixia. Ou seja, os olhos que não se moviam há dois dias, pestanejam agora perante mim, . Mbata Mapengo saúda-me com os olhos, perfurando-me todo o interior. Então, estou completamente apavorado.
Mbata Mapengo moveu os lábios. Balbuciou. E as únicas palavras que ainda consegui captar nesse balbúcio, referiam-se ao juiz Efigénio Baptista. Eram sílabas desarrumadas. Inexpressíveis. Retalhadas. Mesmo assim esforcei-me a junta-las, tendo conseguido traçar uma linha que dizia assim, tenho pena do juiz Efigénio!
Mbata Mapengo ia dizer mais alguma coisa. Nada! Os lábios voltaram a cerrar-se. Os olhos fecharam-se, e logo a seguir ouviu-se um vibrante e profundo suspiro, que levou toda a enfermaria ao silêncio de sepúlcuro.
Nas nossas aulas da escola secundária, os professores começavam por nos ditar o sumário das aulas que iriamos ter nesse dia. Não sei se isso ainda se faz nos dias de hoje. Vou, neste texto, seguir esse método, começar com o sumário o qual não seja: MDM, um projecto adiado! Ou MDM, uma decepção total!
A morte precoce de Daviz Simango trouxe a nu a impreparação, a imaturidade, a falta de consistência e de coesão e consequentemente o aborto que não é o Movimento Democrático de Moçambique (MDM), a despeito de um slogan muito bem conseguido que convoca muita crença, patriotismo, confiança, simpatia e adesão - Moçambique para Todos! Este ideal chegou mesmo a atrapalhar as grandes formações políticas e a atrair intelectuais e académicos. Mas… tudo se foi e continua se esfumando!
Quando esta formação política apareceu, ficou a expectativa de que seria aquela que iria suplantar uma Renamo que teimava em não ser um partido organizado, estruturado, elaborado e articulado. Tínhamos uma Renamo que aprofundava a desorganização interna, desdemocratizava-se galopantemente e era cada vez mais Dhlakama e só ele. Com o MDM, a democracia moçambicana esfregava as mãos de contente; pensava-se que aquele grupo de jovens empolgados iria verdadeiramente fazer diferença: estaria profundamente comprometido com a democracia, transparência, boa governação, unidade nacional, profissionalismo, maturidade e oportunidade igual para todos os “mdmeiros”, mas também para todos os moçambicanos. E ainda começaram mais ou menos bem, com resultados muito promissores, pelo menos na Assembleia da República.
Contra todas as expectativas e muitíssimo cedo, madrugada até, viu-se uma autêntica debandada de muitas figuras políticas de proa competentes, de créditos firmados, que tinham deixado, decepcionados, a Renamo também cheios da convicção de que a nova organização seria totalmente diferente da Renamo de Afonso Dhlakama. Gente que tinha deixado a “perdiz” com todo o entusiasmo de ir fazer um partido sério de jovens, para jovens, moderno, que vá de encontro à expectativa dos moçambicanos de terem uma democracia saudável, com uma oposição organizada, capaz, competente, à altura, democrática e… pura ilusão. Era a segunda decepção. E a democracia moçambicana averbava também é uma vez mais uma violenta derrota… decepção.
Afinal a nova organização política tinha aprendido bem o essencial da progenitora Renamo: desorganização, desdemocracia, intransparência, nepotismo, ineficiência, imaturidade e pouco profissionalismo - ninguém jamais se esquecerá da forma como foram constituídas (a dedo do presidente) as listas de candidatos a deputados. Tudo isto receita bastante para o descalabro que se seguiu. Se nas eleições de 2014 tinha conseguido eleger 17 deputados, o dobro do conseguido nas eleições debutantes, em 2009, que foram oito (8), em 2019 registaram uma queda que não deixou de ser estrondosa, cifrando-se apenas nos seis (6) deputados, perto de um terço do que conseguira anteriormente!
E eis-nos aqui: numa democracia sem oposição digna desse nome. Organizada, com órgãos a funcionar devidamente - comissão política (ou nacional), comité central (ou nacional), secretariados (do comité central/nacional, provincial, distrital e de localidade), congressos (a realizarem-se regularmente). Todos estes órgãos a funcionarem normalmente e a produzirem ideias úteis. Uma oposição com ciência da sua existência e do seu papel em uma democracia: a produzir ideias alternativas para a solução dos problemas do povo; a criticar racionalmente as políticas e estratégias governamentais. Uma oposição a praticar o evangelho de democracia e boa governação, bem como a transparência! Nada!
Além desta profunda decepção, o MDM ainda nos brinda com algo pior: uma inovação no processo de eleição dos órgãos do partido. Estão agora no frenesim de escolher o sucessor de Daviz Simango. O razoável numa organização política normal é os candidatos afirmarem-se através de manifestos políticos, convocar-se um congresso e os delegados, transparentemente eleitos, elegerem os órgãos em causa. O MDM vem com a inovação de que as delegações (secretariados) provinciais, muito antes do congresso, declaram as suas escolhas, os seus candidatos. Já sabemos que Maputo está com Rongwane, Manica com José Domingos e… Sofala com Lutero!
Que eleições teremos no MDM? Que MDM teremos para fazer face aos grandes desafios dos moçambicanos? ZIRÔOO!