Jeremias Nguenha morreu a 4 de Maio de 2007. Passam hoje 15 anos. Provavelmente ainda sejam ouvidas as suas famosíssimas músicas “Vada Voxe” ou “La Famba Bicha”, que são, quanto a mim, um dos mais inventivos diagnósticos da sociedade moçambicana e das suas patologias inultrapassáveis. Permanecem actuais. Actualíssimas.
Era um artista extremamente irreverente e fazia uma arrojada e acerba crítica política e social. Nascera a 19 de Março de 1972, em Inhambane. Cantava em changana. Cantava enérgica e violentamente em changana. Morreu cedo, subscrevendo o anátema moçambicano, com apenas 35 anos. Deixou, no entanto, o seu génio criativo registado nas músicas que compôs e cantou.
Nguenha foi um artista carismático e popularíssimo. Isso devia-se, a meu ver, à sua música poderosa e às suas mensagens certeiras e veementes, mas também à sua imediata identificação com os mais desfavorecidos: a forma de vestir, a forma de se exprimir, a forma de dançar e as suas coreografias. A sua impetuosa denúncia social, sobretudo quando falava da pobreza ou das injustiças sociais, era uma resposta violenta à violência dos que sofriam e sofrem a exclusão, a pobreza e a marginalidade.
Jeremias Nguenha tinha uma portentosa e magnética energia em palco e vê-lo actuar era um momento fortemente impactante. Vestia uniforme militar e tinha o cabelo sempre rapado. Andava com um exemplar da Bíblia. Era um provocador. As suas composições tinham metáforas e imagens virulentas: "obrigam-nos a pentear as nossas carecas” (tradução livre) é um dos seus versos mais profundos. O grande instigador era, antes de tudo, um grande poeta social e um magistral e intrépido cantor e actor. Ele não cantava apenas. Actuava no estrado. Era a voz dos esquecidos, dos desprezados, dos proscritos.
Teve uma aparição fulgurante. As rádios tocavam-no regular e recorrentemente. Quando foi anunciada a sua morte, o choque foi inevitável. Mas parece que é o destino de grande parte dos artistas moçambicanos. Quantos talentos se perderam precocemente neste país? Quando estes (artistas) desaparecem sucede o silêncio e a escuridão sobre os seus percursos e suas vidas. Não são mais evocados, não são estudados, não existem biografias. Sabemos muito dos artistas estrangeiros e cultuamos o efémero entre nós. Pouco sabemos dos nossos melhores.
Aliás, parece que a Pátria se regozija em ignorar os seus melhores intérpretes. Intérpretes num sentido mais extenso – de tradutores de um tempo e de uma sociedade. Como é este imenso e perseverante artista. Um cantor desassombrado e arrebatador. Jeremias Nguenha foi e é um dos melhores intérpretes do nosso destino individual e colectivo. Foi e é um dos maiores tradutores do devir moçambicano.
La famba bicha!
Cada vez mais, a PGR, Beatriz Buchile, tem se agarrado ao somatório das quantias monetárias desviadas pelos predadores da corrupção em Moçambique para dar uma imagem dos malefícios que o fenómeno causa ao Estado.
No seu recente informe à Assembleia da República, ela relevou as cifras relativas ao ano transacto. Para “Carta”, essas cifras são disputáveis, porque não estão consolidadas. Elas foram arregimentadas para o informe na base dum pressuposto errado.
A PGR parte do princípio de que todos os casos em seu poder, abertos no passado pelo Ministério Público (MP), vão ser condenados, com sentenças transitadas em julgado. Mas os procedimentos da justiça desmentem esse pressuposto. Ou seja, hipoteticamente, nem todos os acusados pelo MP serão condenados. Logo, as cifras dos prejuízos causados ao Estado pela corrupção no ano passado são falíveis.
O pressuposto da PGR radica da sua obsessão condenatória. As acusações interpostas pelo Ministério Público devem ter uma única consequência: a condenação. Este é o “mindset” vigente.
Mas a realidade diz o contrário. Raramente um caso de corrupção é iniciado e terminado no mesmo ano. Não só unicamente pela lentidão da investigação, mas também pelos próprios procedimentos da Justiça. É sabido que casos condenados em primeira instância são objecto de recurso, os quais demoram anos a fio. Por outro lado, há condenações em primeiras instâncias cujos recursos obtêm parecer favorável do próprio Ministério Público, como se viu no caso LAM/Executive. O parecer do caso desmontou os pressupostos da condenação, afectado os argumentos da acusação do próprio Ministério Público.
Portanto, ao considerar valores do ano anterior, a PGR invalida todo o “modus operandi” da Justiça, agarrando-se, como dissemos, num paradigma errado.
O recurso à absolvição do antigo PCA da LAM, José Viegas, insere-se nesse paradigma errado. Assim como a insistência acusatória que levou à condenação de Paulo Zucula e Mateus Zimba. Este caso é um “bluff” de mau gosto da justiça em Moçambique, que revela um Ministério Público desesperado em ver “peixe graúdo” nas grades por corrupção, quando, no caso vertente, esse peixe devia estar fora de uma rede de arrasto que se faz opaca aos ditames da Justiça.
É inverosímil! Mateus Zimba recebeu dinheiro limpo da Embraer, como “prémio” da transação Embraer-LAM. Seu papel no negócio foi dúbio, como se provou, mas a condenação por lavagem de dinheiro não faz sentido. Só faria sentido se o Ministério Público tivesse demonstrado que o dinheiro da Embraer era dinheiro sujo...para Zimba poder lavá-lo.
Quanto a Paulo Zucula, sua condenação a 10 anos é completamente contraproducente. Ele recebeu pagamentos de Zimba no âmbito de um projecto imobiliário desenvolvido em Vilankulo, que hoje é uma das celebridades turísticas daquela cidade. Tudo feito abertamente. Limpinho...limpinho!
É de crer que todos estes três protagonistas de uma Justiça que, às vezes, se apresenta persecutória, como neste caso, sejam absolvidos em superior instância. Se houver justiça limpa! O Supremo ainda tem juízes de elevada integridade. E neles reside essa esperança. (Marcelo Mosse)
As notícias, sobretudo as da televisão, são dominadas hoje pela tragédia da Ucrânia. Quando vi o atlas do musculado ataque russo divisei, entre outras regiões, Odessa, uma cidade ucraniana às margens do Mar Negro e um ponto estratégico neste conflito. O meu defeito de formação levou-me ao jornalista e escritor Isaac Babel, que eu lia na juventude e cuja história, igualmente trágica, terminou numa execução, aos 45 anos, em 1940, às mãos de Stalin e da Grande Purga. Ainda hoje tenho a memória vívida dos seus “Contos de Odessa”.
A despeito, a minha memória de Isaac Babel não sobreviveu à lembrança da saga de Isabel Bapalpeme, uma jovem guineense, de 29 anos, que viveu sozinha em Portugal durante anos, à espera de um transplante de pulmão, triste por estar apartada da mãe, desde 2014, a quem a embaixada portuguesa em Bissau lhe recusara visto apesar dos veementes apelos médicos.
Quando um jornal de grande influência denunciou a situação, as autoridades apressaram-se a conceder o visto à mãe de Isabel e aos irmãos menores e uma onda de solidariedade preencheu-lhe finalmente o vazio da casa em que vivia. Que tem a ver o destino desta guineense com aqueles que, no rigoroso frio da Ucrânia, se veem agora na situação de se transformarem em exilados? Aparentemente nada.
Acontece que Portugal fez uma declaração exuberante e o governo instruiu as embaixadas para conceder vistos a ucranianos e considerou-os bem-vindos ao país desde que o queiram. O gesto não merece censura, antes pelo contrário. No entanto, este altruísmo lusitano denuncia o desprimor ou a desestima com que o mesmo país lida com os africanos de quem declara serem de países irmãos. Perante as nossas tragédias, que incluem guerras e outros colossais infortúnios, nunca vi semelhante gesto dadivoso ou prodigalizador.
Há mais de um quarto de século redigi, para o jornal “Público”, um artigo intitulado “A cooperação pelintra”, onde mapeava as misérias desta nossa equívoca relação. Reitero o que então disse. Não me apetece voltar aos argumentos nem sequer alvitrar quem quer que seja. Anoto, neste dia em que a comoção ocidental é unânime sobre o desfortúnio da Ucrânia, a dissimulação ou a insinceridade que está na base das relações entre países.
A história dramática de Isabel é a metáfora de como Portugal trata (ou melhor: destrata) os cidadãos oriundos dos nossos países ou aqueles que deles são progênitos, para não falar dos nascidos em território português, párias ainda hoje e nunca verdadeiramente integrados. É isto resquício desse racismo iniludível, continuamente impugnado oficialmente, ou é produto da hipocrisia que domina a realpolitik?
Fica a pergunta retórica e uma convicção inabalável:
Brancos sim, pretos não!
Maputo, 24 de Fevereiro de 2022
O Rui Nogar faz hoje 90 anos! É um dos nossos grandes poetas. Homem apaixonado por causas sociais, pelos homens do seu tempo e pela condição humana. Um extraordinário poeta. Um ser humano de excepção. Autor escasso e, no entanto, fundamental. Não só o seu “Silêncio Escancarado” (magnum opus), que deveria um dos nossos breviários. Ou “Nove Hora”, esse poema arrebatador, que o Mutumbela Gogo encenou.
A sua poesia, como queria Gabriel Celaya, é uma arma carregada de futuro. As suas metáforas, as suas imagens, o seu poder e a sua excelência de exegeta. Um grande tribuno. Um belíssimo declamador. Um amigo e um camarada de ofício. Um homem bom. Disse-me ele numa entrevista: “Não me interessa que seja ou não considerado poeta. O que me interessa é que eu seja considerado homem que se preocupa com os outros homens da sua época”.
O Rui é, no entanto, um dos mais deslembrados. Moçambique, sublinhe-se, cultiva a arte do esquecimento. Diverge dos seus melhores. Há, entre nós e sobre nós, uma ideia maniqueísta da história e da memória. O país não se revê nos seus poetas. A cultura é um parente pobre. Não passa da sua condição de apêndice. É elevada para os momentos de celebração. Quando nos queremos ufanos. Sobretudo nos comícios.
Este é um ano pródigo para a literatura moçambicana: celebramos os 100 anos de José Craveirinha; os 90 anos de Rui Nogar e de Rui Knopfli. Luís Bernardo Honwana fará, em Novembro, 80 anos de vida. O Albino Magaia faria, este mês, 75 anos. O Gulamo Khan, nascido em Março e morto em Mbuzini, faria 70 anos. E se quisermos um escritor mais próximo, da minha geração, há o Suleiman Cassamo, que faz 60 anos em Novembro.
Isto poderia ser um bom pretexto para lembrar que o Estado tem obrigações e função indeclinável numa política activa do livro e da leitura. As obras de autores como Rui Nogar deveriam ser adquiridas obrigatoriamente pelo Estado e distribuídas por bibliotecas escolares e públicas, como a Biblioteca Nacional, ou as provinciais, distritais e municipais, ou ainda pelas casas da cultura e outras associações e organizações culturais sem fins lucrativos. Uma sociedade não se constrói sem cultura e não há sociedades sãs sem cidadãos livres, cultivados e esclarecidos, política, social e culturalmente.
Ler estes autores, celebrar estes escritores, festejar suas vidas e conhecer as suas obras é uma obrigação de cidadania. Hoje celebro Rui Nogar, que nasceu a 2 de Fevereiro de 1932 e morreu a 11 de Março de 1993, aos 61 naos. Foi o primeiro secretário-geral da AEMO e acolheu, amparou e albergou aquela que seria a mais importante geração de escritores logo a seguir à independência – a geração da “Charrua”. Foi muito mais do que isso. Um homem da sua época e de todas as épocas. Militante na clandestinidade, companheiro de prisão de José Craveirinha, Luís Bernardo Honwana e Malangatana Valente Ngwenya. Um combatente pela liberdade. Um intrépido combatente pela nossa liberdade. Para mim, continua vivo. Faz hoje 90 anos!
Viva Rui Nogar!
Um livro intitulado Descentralização em Moçambique – Filosofia da Reforma, o Presente e o Futuro, da autoria do Doutor Albano Macie, docente universitário, conselheiro do “Constitucional” proposto pela bancada parlamentar da Frelimo e, mais importante, um dos mais destacados autores materiais da revisão constitucional de 2018, está nas bancas há um mês, não estando, por motivos que desconheço, a suscitar debates públicos, como seria de supor, sobretudo pelas propostas que faz quanto à constitucionalmente aprazada eleição de administradores distritais e assembleia distritais a partir de 2024. O autor, que integrou a equipa de diálogo político entre o Governo e a Renamo, por indicação do Presidente da República, Filipe Nyusi, partilha algo interessante: “Do próprio processo de diálogo político, o distrito tinha sido esboçado como delegação de província, mas no último instante tornou-se numa entidade descentralizada, projectada para 2024”. Quando faltam pouco mais de dois anos para as eleições de 2024, num momento em que o ‘modelo bicéfalo’ que pressupõe a coabitação entre o Conselho Executivo Provincial, com o governador à cabeça, e os Serviços de Representação do Estado na Província, sob a égide do secretário de Estado, ainda se mostra gerador de conflitos, pelo menos em potencial, e de difuldades acrescidas de acesso aos serviços públicos por parte do cidadão, sobretudo por conta da sobreposição de competências, ou mera ausência de clareza quanto ao campo de cada um desses dois órgãos provinciais, Macie parece ser muito a favor de uma reforma constitucional, em sede da qual o distrito deixaria de ser entidade descentralizada para passar a ser “delegação da governação descentralizada provincial”. Reconhece que isso “poderia representar um recuo, mas um descompasso mais seguro e eficaz. Portanto, retomar-se-ia o modelo inicial do processo de diálogo político”. Os dados estão lançados. Vamos ao debate, para que possamos serenamente ponderar no que seja melhor para o país, ou fingimos estar tudo bem, para, no fim do dia, transferirmos as disfuncionalidades que estão a ser expostas ao nível da província para o de distrito? Mais: se se elegerem assembleias e administradores distritais em 2024, com que território, que não esteja sob a alçada de entidades democraticamente eleitas, ficarão a Assembleia Provincial e o governador de província? Duvido da sustentabilidade da mera descentralização de competências, mas sem soluções funcionais quanto ao território!
(Parte II e Conclusão)
Patrício Langa* & Jorge Ferrão**
A decisão pelo estabelecimento do ensino superior, nas colónias Portuguesas de Angola e Moçambique, foi, por um lado, tomada com muita hesitação e sob pressão interna dos colonos nessas províncias do ultramar colonial, e, por outro lado, externa, particularmente, pelas Nações Unidas, devido ao intensificar dos movimentos reivindicativos das independências dos povos Africanos que já tinham na independência do Gana em 1957, sob liderança do carismático Kwame Nkrumah, uma fonte de inspiração.
O ano de 1960 e subsequentes viram mais de 13 colônias africanas a ascenderem à independência. O ambiente interno, na colônia, como o externo, não era favorável ao status quo. Assim, o regime foi forçado a adoptar medidas de reforma do Estado, incluindo no sector da educação. No seu âmago, as reformas não visavam alterar o carácter colonial do regime, mas mistificá-lo ideologicamente com um rosto mais humanista, particularmente em relação ao tratamento oferecido às populações nativas não brancas.
As ideias do luso-tropicalismo, isto é, da celebração da miscigenação racial e cultural atribuída pelo Antropólogo Brasileiro, Gilberto Freyre, ao carácter idiossincrático do colonialismo Português, foram inicialmente rejeitadas por Portugal, nos anos 30 e 40 do Estado Novo. No entanto, o luso-tropicalismo passou a ser ideologia do Estado colonial implementada nos anos 60, particularmente, através de reformas propostas por Adriano Moreira, ministro Português do ultramar, como forma de mitigar a crescente contestação ao regime colonial fascista e ao status quo.
A pergunta fundamental sobre o estatuto e o papel do ensino superior na sociedade mostra-se aqui relevante. Numa altura em que Portugal ainda sonhava com água para a manutenção do status quo, é legítimo questionarmo-nos sobre para que projecto de sociedade a nova universidade estava a ser criada? Que função social a nova universidade iria cumprir? Seria a nova universidade o laboratório, por excelência, do experimento luso-tropicalista, no contexto das colônias africanas? A quem, então, o regime Salazarista iria confiar a gestão das novas instituições de ensino superior em Angola e Moçambique, sabendo do potencial que as universidades podiam representar para o despertar da consciência nacionalista e da necessidade de transformação profunda da sociedade? Parte das respostas a estas questões encontram-se nas lideranças que Portugal identificou para conduzir os desígnios das novas universidades em Angola e Moçambique.
Os Primeiros Reitores da EGUM e ULM 1962-1970/6
José Veiga Simão (JVS) foi o primeiro de três reitores coloniais, e aquele que mais tempo permaneceu no posto, quase oito anos, entre 21 Agosto 1962 e 15 de Janeiro de 1970. A sua saída da reitoria foi por via de uma promoção à Ministro da Educação Nacional. Simão foi um exímio equilibrista entre a academia e a política, granjeando simpatia em ambos os campus. Nascido em Portugal, em 1929, veio a falecer em Lisboa em 2014. Cedo formou-se em ciências físico-químicas na Universidade de Coimbra (UC), em 1951, com uma licenciatura e, depois, seguiu para o doutoramento em física nuclear na prestigiada Universidade de Cambridge, na Inglaterra.
De reitor da Universidade de Lourenço Marques (ULM), passou ao cargo de Ministro da Educação Nacional até à altura da Revolução dos Cravos que destronou o regime fascista em Portugal. Entre 1974 e 1975, foi embaixador de Portugal nas Nações Unidas e, mais tarde (1983-1985), deputado da Assembleia da República Portuguesa pelo Partido Socialista. Recebeu vários Doutoramentos Honoris Causa, incluindo um pela actual Universidade Eduardo Mondlane (UEM) que, quanto a nós, só pode ter sido resultado da amnésia histórica dos proponentes em relação ao papel de Simão na perpetuação mistificada e demagógica do status quo do regime fascista e colonial.
Os cerca de oito anos do mandato de Simão, definiram o carácter colonial da ULM, mas sempre envolto num discurso demagógico reformista. Simão foi sucedido em 1970 e, ao que tudo indica, por seu delfim escolhido a dedo, Vitor Pereira Crespo (1932-2014), cujo reitorado foi apenas de dois anos, até Janeiro de 1972. Crespo viria, mais uma vez, a tomar o lugar de Simão, desta vez, como Ministro da Educação Nacional.
Tal como Simão, Crespo tinha formação de base em ciências físico-químicas, tendo feito o doutoramento em Química na Universidade de Berkeley, Califórnia em 1962. Para além da gestão universitária, foi Director Geral do Ensino Superior no Ministério de Educação Nacional (1972-1973) e, posteriormente, Ministro, Crespo, foi deputado e Presidente da Assembleia da República (1987-1991), pelo Partido Social Democrata (PSD).
Entre Janeiro de 1972 e 25 de Abril de 1974, altura do golpe de estado em Portugal, que colocou fim ao regime fascista de Salazar, José Alberto da Gama Fernandes de Carvalho assumiu o leme da ULM. O derradeiro reitor da ULM foi o terceiro de nome José, desta vez, José Marques Correia Neves entre 25 de Abril de 1974 e Janeiro de 1976. Geólogo de formação, rumou para o Brasil onde fez carreira na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), após abandonar Moçambique com o advento da independência.
Neves assistiu à génese da EGUM e a sua elevação ao estatuto de universidade em 1968, passando a designar-se ULM. A confiança do leme de uma instituição de ensino superior nova na colónia, num contexto volátil, de crescente contestação ao regime fascista de Salazar, tinha que recair sobre figuras que inspiraram alguma tranquilidade ao regime. Com efeito, o pecado original da submissão dos reitores das IES públicas, mesmo quando a retórica sugere o contrário, tem origens coloniais, com a tentativa de mistificação da inclusão social e democrática.
Cada reitor tornou-se e manteve-se em função da habilidade de servir ao regime e à liderança política. Apenas em sistemas democráticos, nos quais a governação universitária se emancipou das pressões políticas modernas, como nos Estados Unidos da América e na Europa, vemos líderes de IES públicas sucederem-se sem um lobby directo com o regime político do dia.
O presidente dos EUA, seja este republicano ou democrata, exerce quase nenhuma influência na nomeação ou demissão de reitores das universidades americanas. Com isto não queremos sugerir que o acto de nomeação seja meramente académico e não político. O Estado vê na autonomia efectiva do sistema universitário uma das condições da sua própria existência e credibilidade. Não quer isto significar que as políticas públicas do sector e a gestão das instituições, particularmente as públicas, não estejam sujeitas ao beneplácito das autoridades do Governo. Todavia, no caso da ULM, a nomeação do reitor tinha a mão directa do Ministro do Ultramar e do Governador da Província, sendo o reitor membro do Governo colonial.
A Universidade de Coimbra (UC) granjeou respeito ao nível da Europa como um centro de conhecimento com alguma autonomia académica e intelectual. Era na Universidade de Coimbra e na Universidade Técnica de Lisboa (UTL) que o governo recorria para buscar quadros para gestão e implementação das suas políticas coloniais, incluindo as relativas ao ensino superior. Entretanto, era também para a universidade onde se refugiavam os desavindos, por alguma razão, com as políticas do status quo.
Marcelo Caetano, por exemplo, considerado um dos políticos reformistas do regime fascista e colonial de Salazar, fracassadas as tentativas de convencer o regime a ser mais condescendente, dialogante e menos beligerante no assunto da independência das colónias, após fracassada a tentativa de convencer Eduardo Chivambo Mondlane a integrar o governo de Salazar, retomou a sua cátedra na universidade de Coimbra. Portanto, a Universidade de Coimbra teve sempre uma relação ambivalente com o regime fornecendo os quadros para a manutenção do mesmo, mas também servindo de refúgio da actividade política directa.
O regime colonial procurou encontrar quadros e intelectuais, com habilidade de mistificar a continuidade da Portugalidade nas colónias, projectando um discurso de inclusão e alargamento das oportunidades educativas para os colonos e para os nativos, desde que assimilados à cultura Portuguesa.
A universidade criada e gerida em Moçambique pelos seus primeiros quatro reitores era uma universidade branca na sua composição demográfica e colonial na sua ideologia. Portugal, sob pressão das Nações Unidas e dos seus aliados, particularmente os Estados Unidos da América, insistia na integridade territorial e política entre a metrópole e os territórios do ultramar. Os documentos oficiais insistiam na ideologia de construção de uma sociedade multirracial, e pluricultural. Este discurso, no entanto, também era articulado pelas lideranças da ULM, mas não correspondia à realidade, como iremos abordar mais adiante ao falar da composição do corpo discente, docente e técnico administrativo.
O Currículo colonial
Um ano após da criação da EGUM, através do Decreto-Lei 45180, de 5 de Agosto de 1963, os “Ministérios do Ultramar e da Educação Nacional - Direcção-Geral do Ensino Superior e das Belas-Artes” promulgam o regime de funcionamento da nova IES. O artigo 8 do decreto indicava os cursos a serem ministrados, nomeadamente: a) Curso de Ciências Pedagógicas; b) Curso Médico-Cirúrgico; c) Curso de Engenharia Civil; d) Curso de Engenharia de Minas; e) Curso de Engenharia Mecânica; f) Curso de Engenharia Electrotécnica; g) Curso de Engenharia Químico-Industrial; h) Curso Superior de Agronomia; i) Curso Superior de Silvicultura; j) Curso de Medicina Veterinária. Os cursos de medicina e de veterinária teriam uma parte leccionada na colónia e uma outra parte na metrópole.
Com excepção das ciências pedagógicas, que visavam formar professores, nenhum curso visava formar pensadores críticos. Ironicamente, os cursos promovidos pelo regime colonial, na altura, actualmente são misticamente designados na sigla inglesa – STEM (Science, Technology, Engineering and Mathematics) – e promovidos pelo governo como prioritários para o desenvolvimento do país. Como se pode depreender pelos cursos aprovados, a universidade teria mais um carácter politécnico que propriamente universitário.
A universidade não foi criada para ser um lugar para promoção do pensamento crítico, típico de uma sociedade aberta e democrática. A universidade colonial era um instrumento, um veículo operativo para massagear e mistificar a continuidade de uma sociedade colonial cuja distribuição de oportunidades (incluindo as educacionais) era em função da origem social. O currículo e as áreas de estudo permitidas resumiam-se a aqueles que, na percepção do regime, permitiriam formar quadros úteis para o projecto colonial.
O Corpo Discente, Docente e Técnico Administrativo
O corpo discente da EGUM e, mais tarde, da ULM era, fundamentalmente, constituído por estudantes brancos. Imagens fotográficas de antigos estudantes e membros da Associação Académica de Moçambique são bastante ilustrativas do tipo de composição demográfica da universidade colonial. Se o corpo discente era quase que na generalidade branco, não se podia esperar diferente do corpo docente e do Corpo Técnico e Administrativo (CTA).
A nossa hipótese de trabalho para dar conta da ausência de uma população (negra) nativa na nova universidade segue a linha de pensamento do politólogo ugandês Mahmood Mamdani sobre a constituição de minorias pelos Estados coloniais. Com efeito, segundo Mamdani, o projeto colonial e imperial tinha um substrato ideológico de uma missão civilizadora. Dois mecanismos principais permitiam o processo civilizatório pelo Estado colonial, por um lado, a introdução de um quadro regulatório (leis do Estado) e códigos de conduta sobre como ser cidadão civilizado (neste caso Português) e, por outro lado, um sistema educacional de matriz colonial para educar os membros da sociedade.
Através destes processos, igualmente, descritos por Eduardo Mondlane, em Lutar por Moçambique, cria-se uma minoria de cidadãos colonos e nativos assimilados, educados e civilizados no padrão cultural colonial. Estes nativos assimilados, como diria Franz Fanon, de Peles Negras e Máscaras Brancas, que julgam pensar, agir e sentir como o próprio colono branco, servem de intermediários entre a metrópole e a colónia, na administração da colónia. A universidade serve assim de instrumento de reprodução da estrutura e estratificação social da sociedade colonial.
A educação rudimentar para os nativos e todo um conjunto de barreiras educacionais fez com que, até finais da década de 1960, apenas uma porção insignificante de negros tivesse frequentado o ensino liceal ou técnico de modo a que reunisse os requisitos mínimos necessários para estarem aptos ao ingresso no ensino superior. Com efeito, o ingresso ao ensino superior era baseado em exames de aptidão feitos na universidade de Coimbra.
Portugal não tinha como, do nada, inventar negros qualificados para frequentar o ensino universitário, pois muitos destes eram, por desígnio do sistema, eliminados pela estratificação do próprio sistema educacional para brancos, assimilados e nativos que durante décadas criou barreiras para impedir a educação dos nativos. É, em parte, por estas razões, que apesar de uma retórica para reforma do sistema educacional, a nova universidade nasce e continua, fundamentalmente, branca e colonial até ao êxodo massivo dos colonos com o advento da independência em 1975. Os brancos e os poucos negros assimilados que decidiram permanecer no país após a independência, tornaram-se a elite académica e intelectual da universidade e do país com a missão de construir uma nova universidade para a servir ao desenvolvimento do país independente.
Conclusão
O primeiro decenário do ensino superior em Moçambique (1962-1972/5) foi da instalação sob pressão da primeira instituição de ensino superior, fundamentalmente, com o intuito de amainar a crescente contestação interna (dos colonos progressistas), dos nativos (independentistas) e a pressão externa das Nações Unidas e dos países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em particular, os Estados Unidos da América (EUA) sob o regime fascista e o Estado Novo de Salazar.
As sucessivas lideranças da ULM cumpriram o papel de assegurar o trabalho da mistificação ideológica, através de um discurso de integração dos territórios do ultramar com a visão de uma Portugalidade como nação multirracial e pluricultural. No entanto, na prática, esta retórica não se refletia na composição demográfica do corpo docente, discente e técnico administrativo da ULM, até 1976, um ano após a proclamação da independência de Moçambique por via de insurreição armada.
O currículo e as áreas de estudo da ULM eram estabelecidos por dispositivos normativos (decreto-lei, portarias), controlados pelas autoridades coloniais, a partir da metrópole. Com forte inclinação para cursos das ciências naturais e tecnológicas, a ideia da formação superior era a de preparar quadros para administração colonial dos territórios do ultramar e não para formar uma possível intelligentsia subversiva, dai a total ausência de cursos nas áreas das ciências sociais e humanas.
Com o acelerar da Guerra colonial, e o advento da Revolução dos Cravos, que colocou término ao regime fascista de António Salazar, a gestão da ULM foi praticamente de crise e transição. José Veigas Simão foi praticamente o único reitor que fez quase dois mandados de 4 anos entre 1962 e 1970, quando foi promovido a Ministro da Educação Nacional. Os sucessivos reitores tiveram reitorados relativamente curtos de cerca de dois anos, sendo Vitor Pereira Crespo (1970-1972), José Alberto da Gama Fernandes de Carvalho (1972-1974) e José Marques Correia Neves (1974-1976).
Todos reitores coloniais estavam, de uma ou de outra forma, relacionados a figura de JVS e, provavelmente, tenham sido por este sugeridos como seus sucessores. Quase todos tinham alguma relação de afiliação com a Universidade de Coimbra ou com a comissão Técnica de criação da ULM, cujos quadros também provinham da Universidade Técnica de Lisboa.
Em suma, a universidade colonial em Moçambique representou o início titubeante do ensino superior, mas, acima de tudo, também representou um esforço das autoridades coloniais de manutenção ideológica do status quo. A independência de Moçambique do colonialismo Português, em Junho de 1975, veio encerrar o primeiro decénio e abrir espaço para uma nova realidade do ensino superior que iremos abordar no período de 1972/5- a 1982.
*Patrício Langa. Professor de Sociologia do Ensino Superior
**Jorge Ferrão. Reitor da Universidade Pedagógica de Maputo