Num desses dias, fui convidado, como habitualmente, a ir fazer comentários numa estação televisiva da nossa praça. Nesse dia, um dos muitos friorentos que Maputo tem tido este ano, trajava eu uma camisa executiva e um blusão preto de cabedal, egípcio, para me defender do frio. Estava eu semiformal e, digamos, com ar jovial. Lá me apresentei aos estúdios e, durante cerca de quinze minutos, fiz os comentários que fiz fundamentalmente sobre a situação da COVID-19 e as medidas de prevenção da sua disseminação que o Chefe do Estado ia anunciar instantes depois.
Terminada a sessão e a caminho de casa, lá vieram as reacções. Uma, dum amigo, bem estudado, docente universitário. Do que eu disse ou não disse no pequeno ecrã, falamos pouco, en passant. A maior observação dele foi que devia ter ido de casaco e gravata!... fiquei whititiii, sem uma única palavra na boca, e ele a perorar por aí. Com efeito, esta não era a primeira observação que me era feita neste sentido; numa outra ocasião, uma outra pessoa amiga também ela muito bem estudada e docente numa instituição de prestígio. Dessa vez, porque apenas não trazia gravata, estava de blazer, mas não tinha gravata… Djizes Crest!
Esta parece ser, de certa forma, o tipo de sociedade que somos: focados no acessório, no superficial ou supérfluo. Estamos bastante preocupados não com a essência, com o conteúdo, a mecânica das coisas; mas com a superfície, com o contentor, com o que se nos aparece na vista, a parecença! Não que a indumentária não seja importante, até é; mas daí a ter-se como o mais importante do que as ideias numa pessoa…
E isto explica perfeitamente a razão de ser de muitas das nossas atitudes, percepções, decisões, opções, debates e discussões. Valoramos muito a aparência, a superfície, o nome, o que aparece à vista. Melhor: o que se deixa ver. Infelizmente, os factos ou fenómenos, sejam naturais ou sociais, vão muitíssimo além!
Numa outra crônica passada, escrevia que o nosso modus operandi era: “Alguma coisa, instituição, empresa, ministério, selecção de futebol, não funciona, não está bem, não tem os resultados esperados? O remédio santo é mudar de nome! Simplesmente isso. Mudamos de nome!” Quase, quase, os Mambas ficavam Rinocerontes! A nossa atitude vem justamente nesta linha de valoração da aparência. Pensamos que com apenas um nome que nos soe bem a coisa vai funcionar e trazer os resultados que esperamos. Tadinho de nós!...
Ante os colossais problemas da nossa justiça, cobertura territorial nacional incipiente, poucos magistrados, justiça muitíssimo morosa, ineficiente e… mais alguma coisa; a grande discussão, o grande debate entre os nossos prestimosos magistrados é se os advogados devem ou não levantar-se quando o juiz entra na sessão de julgamento!...
Não menos delirante é a discussão entre o comandante geral da nossa PRM e os artistas… até os artistas, sobre se se pode ou não usar o fardamento policial nas representações artísticas… Came on! É esta uma questão essencial em ambas as instituições? Dos tantos e colossais problemas que a nossa Polícia tem, o seu comando ainda encontra espaço para se insurgir contra o facto de o artista usar farda policial no palco… os artistas, por seu turno, distraem-se, apartam-se da criação artística para disputarem fardamento policial… a arte só é arte quando se usa fardamento da Polícia? Desfoque absoluto! Absurdo...
E que dizer da grande discussão que estamos a assistir entre o governo e as universidades, sobre se o professor licenciado deve ou não dar aulas nas universidades. Para muitos, ante a grande questão da fraca qualidade do nosso ensino superior em debate, o remédio santo, a varinha mágica é a proibição de o licenciado exercer a docência nas universidades e daí vamos passar a ter ensino superior de qualidade. Mais uma vez, olvidamos o essencial e ficamos na aparência! Para nós, o licenciado é a causa, ou uma das causas da fraca qualidade do nosso ensino superior. E o doutorado é o remédio santo, a varinha mágica! Que abordagem rústica, tosca!
Da forma como alguns olham para a questão (para o licenciado), não se dão tempo de pensar sobre de que licenciado estamos a falar, não lhes interessa se é um licenciado extraordinário, que fez o curso com altíssima classificação, se investiga e publica, se participa em seminários, colóquios, etc., etc. Não, tudo isso não é relevante. Mais importante é que ele é licenciado e ponto final e, assim sendo, não pode pôr o pé numa sala de aulas de uma universidade.
Nem temos em conta que, inversamente, há doutorados e doutorados; nem todos são qualidade e excelência que pensamos ser. Muitos, o trabalho que se lhes conhece é a sua desconhecida tese de doutoramento, não se lhes conhece nenhum outro escrito, vivem anónimos; não investigam, são maus comunicadores, menos profissionais… e esses é que devem ser, na nossa definição, os docentes nas nossas instituições de ensino superior! Que abordagem ruim, a nossa! Mas é reveladora, por excelência, da sociedade superficial que nós somos.
José Soares Martins, já falecido, Deus o tenha, é um dos maiores historiadores de Moçambique; escreveu que se farte sobre a nossa história; e mesmo assim, na nossa abordagem, não podia dar aulas a um candidato a licenciado!... Fátima Mendonça… uma das grandes estudiosas da literatura moçambicana, tinha, na nossa visão superficial, que não dar aulas na universidade! Na Faculdade de Direito, foram formados grandes juristas (juízes, procuradores, advogados, etc.) no país por docentes… licenciados; não havia ali doutorados aos magotes, como se preconiza e apregoa! Idem aspas na Faculdade de Engenharia! Temos, neste país, muito grandes engenheiros que fazem milagres, formados por docentes… licenciados!, que não deviam dar aulas na universidade!...
Tem razão, pois, o Prof. Lourenço do Rosário, ao defender que as IES são autônomas para convidar quem quiser para dar aulas nas suas salas! A qualidade não está no nome, nem na aparência (casaco e gravata): está na essência!
Concentremo-nos mais na estrutura profunda das coisas e não na de superfície, se queremos uma sociedade de qualidade!
A ciência, assim como o desenvolvimento, são dois campos cuja definição não se mostra tarefa fácil, sendo que ambos estão revestidos de contradição ou falta de consenso teórico. Historicamente, ao abordar sobre o desenvolvimento faz-se referência primária para o campo económico, sobretudo em oposição ao crescimento quantitativo de um determinado país.
Relativamente ao termo “ciência”, Fontaine (2008)[1] sublinha que é emprestado do latim scientia, significando “conhecimento” em sentido amplo, ou ainda “conhecimento científico”, e tendo em conta os tempos clássicos o significado da episteme grega – “conhecimento teórico”. Assim, ciência designaria primeiro um know-how obtido pelo conhecimento agregado à habilidade, para então denotar, posteriormente, o conhecimento adquirido em um objecto de estudo detalhadamente definido. A ciência, tanto do ponto de vista teórico como teológico, designará cada vez mais um conhecimento perfeito, preciso, rigoroso e mais preocupado com o formalismo (este formalismo que lhe será conferido, nos tempos modernos, pelo uso generalizado da ferramenta matemática que permite equacionar métodos de pesquisa e resultados).
Embora sem consenso, podemos afirmar que no sentido mais amplo, a discussão sobre ciência é agregada numa tipologia onde temos (1) ciências naturais (física, química, ciências da vida, do universo e da saúde); (2) ciências tecnológicas (comunicação e electrónica, sobretudo); (3) ciências humanas e sociais (economia, sociologia, ciência política, antropologia, história, geografia, psicologia, entre outras) ou ainda (4) ciências exactas (matemática, por exemplo).
Segundo Chatelin (1986)[2], ciência e desenvolvimento definem uma questão que parece bastante clara. Para o autor, existe uma ideia amplamente aceite de que o próprio desenvolvimento deve ser acompanhado e apoiado pelo progresso científico, embora alguns posicionamentos discordantes às vezes sejam ouvidos. De facto, Chatelin (idem) avança que existe quem afirme que a pesquisa baseada nas humanidades é completamente inútil em países sem desenvolvimento avançado, dado que as necessidades são outras. Embora recorrente, consideramos que tal proposição constitui um exercício teórico equivocado, pois está desprovida de uma convicção real. Para nós, não se pode equiparar a(s) ciência(s) em função do seu peso ou falta dele.
Nos últimos anos, o debate entre ciência e desenvolvimento foi substituído pela necessidade de ‘’saber fazer’’[3] e realização de uma ocupação profissional, sobretudo por parte de uma franja populacional considerada jovem em países como Moçambique[4]. As idades entre 14 e 20 anos podem ser consideradas de auto-descoberta, exploração de habilidades e busca de um lugar na sociedade, sendo que é justamente ao longo dessa idade que se cristaliza uma maior capacidade crítica em relação às regras sociais e familiares estabelecidas e a outras coisas que, mais ou menos, simplesmente eram aceites sem questionamento. Em suma, é uma idade biológica desafiadora para muitos pais e professores, sobretudo quando seus filhos e alunos questionam sua “sabedoria” e começam a encontrar respostas para os problemas que eles acham que seus pais não podem resolver adequadamente[5]. Da mesma forma, a ciência explora o mundo além das limitações actuais do conhecimento, desafia a “sabedoria” e se propõe a encontrar respostas.
Atrair os jovens para a pesquisa científica também se tornou um tópico de crescente importância do ponto de vista da ciência. Por exemplo, nota-se que cientistas, economistas e políticos em países como Estados Unidos da América vêm lamentando o número decrescente de estudantes que escolhem uma carreira nas ciências naturais e exactas. A preocupação é com a diminuição de potenciais cientistas e engenheiros, o que poderia dificultar o crescimento de indústrias de alta tecnologia, particularmente biotecnologia e tecnologia da informação. A questão de tornar a ciência e a pesquisa atraentes para os jovens gerou muitos debates sobre o futuro da pesquisa em si, bem como das tecnologias relacionadas (Mervis, 2003[6]; Moore, 2002[7]).
Se tomarmos a nossa introdução sobre a definição de desenvolvimento e aplicar ao contexto moçambicano, provavelmente não seja possível captar a real sensibilidade sobre o contributo que existe para a ciência. Com a noção de liberdade acoplada ao desenvolvimento, fica-nos como questão compreender de que forma o desenvolvimento pode ser relacionado com a(s) ciência(s). Porém, as advertências actuais para a ciência são numerosas. Sabemos, em primeiro lugar, que a ciência não leva necessariamente ao desenvolvimento, que o tempo de resposta pode ser longo, que apenas parte da ciência pode se tornar útil. Sabemos ainda que as aplicações da ciência nem sempre são boas, a manipulação genética, por exemplo, é assustadora.
No caso de Moçambique, verifica-se a tendência de uma aposta baseada na ciência enquanto técnica e prática, dentro de um prisma que pretende, de forma urgente, capacitar uma franja populacional ávida em busca de sustento para alívio de pobreza que, tal como vista por Amartya Sen (2001)[8], é um empecilho para o desenvolvimento como liberdade. O tripé sobre jovens, ciência(s) e desenvolvimento em Moçambique é limitado pelo facto de existir uma preocupação que toma a ciência enquanto um escopo técnico e prático, sem promover áreas que possibilitem abordar a própria ciência por via de outras lentes, ou seja, ciência no plural.
Por um lado, a criação do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, e consequentemente do Fundo Nacional de Investigação (FNI), são disso um exemplo eminentemente de aposta técnica, sobretudo quando o FNI se define como tendo a missão de ‘’(...) promover a divulgação do conhecimento científico, a investigação científica, a inovação tecnológica e a formação de investigadores, contribuindo para o desenvolvimento sócio-económico de Moçambique’’[9].
Por outro lado, podemos tomar como exemplo a criação da Secretária de Estado da Juventude e Emprego, que toma a ciência como possibilitadora do desenvolvimento de capacidades de uma franja da população, cuja necessidade laboral é premente – o que é feito através do ‘’empreendedorismo’’, formação e capacitação técnico-profissional. Dessa forma, pensamos que a abordagem sobre jovens, ciência e desenvolvimento deve ser feita tendo em conta a existência de outras janelas em que a própria ciência pode ser aplicada, embora se reconheça a necessidade de prover empregabilidade para esses mesmos jovens que enfrentam problemas de variada ordem.
Entendemos, por fim, que Moçambique padece de um dilema que pode ser resumido na incapacidade em promover a ciência para além do suprimento das necessidades dos jovens, razão pela qual questiona-se sobre como estabelecer o equilíbrio entre a necessidade de sobrevivência (sobretudo dos jovens), sem excluir a aposta na(s) ciência(s)?
*Este texto foi revisto/adaptado de uma comunicação proferida em 12 de Agosto de 2020, por ocasião do Dia Internacional da Juventude, em resposta ao convite da APDS – Academia de Pesquisa & Desenvolvimento Sustentável.
[1] Fontaine, P. (2008), Qu’est-ce que la science ? De la philosophie à la science : les origines de la rationalité moderne, Recherche en soins infirmiers, 92(1).
[2] Chatelin, Y. (1986), La science et le développement. L’Histoire peut-elle recommencer ?, In: Tiers-Monde, tome 27(105).
[3] Do francês savoir-faire ou do inglês know-how, designa um conjunto de conhecimentos, aptidões e técnicas adquiridos por alguém ou por um grupo, geralmente através da experiência, competência na execução de certas tarefas práticas e em determinadas actividades artísticas ou intelectuais.
[4] Não existe uma única definição sobre quem pode ser considerado jovem. Porém, a média de idade em Moçambique está fixada nos 16 anos, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE, 2019).
[5] Ver mais em Csermely, P. (2003), Recruiting the younger generation to science, EMBO reports, 4.
[6] Mervis, J. (2003), Down for the count?, Science, 300.
[7] Moore, A. (2002), What you don't learn at the bench, EMBO reports, 3.
[8] Sen, A. (2001), Development as Freedom, OUP Oxford, new edition.
[9] Fundo Nacional de Investigação (FNI) – https://fni.gov.mz/sobre-fni/ – é uma instituição que se define como promotora da pesquisa científica, tendo como base a inovação tecnológica em Moçambique.
Definitivamente, a COVID-19 veio para nos matar de verdade e tornar-nos também vivos mortos, matar-nos enquanto vivos! É que, enquanto seres vivos, temos no nosso interior um mundo. Um mundo que vive verdadeiramente dentro de nós. E esse mundo é composto de tudo que vemos no mundo exterior à nossa volta: paisagens, objectos, pessoas, cenários, cenas, eventos, factos… um milhão de coisas. É um facto que temos dois mundos: um, o nosso ‘eu’ interior, nas nossas cabeças; o outro, o verdadeiro, o tangível, à nossa volta!
Como nos sentimos quando perdemos a memória de um simples objecto, pessoa, evento, cenas e cenários; quando não nos lembramos de seja o que for? Um grande vazio dentro de nós! E o que acontece quando perdemos, ou nos é roubado, aquele nosso objecto de estimação? Um simples chapéu, um relógio… para não falar do nosso telefone celular… que acontece? Quase morremos, ficamos… down, deeply down! Por fim, o que acontece quando nos morre uma pessoa querida, um familiar, um amigo, ou uma simples pessoa conhecida? Morre uma parte de nós também!
Quando morre uma parte do nosso mundo, interno ou externo, somos nós que morremos! É o que a COVID-19 está a fazer: matar-nos verdadeiramente, ou matar uma parte de nós.
Morreu o João Augusto Matola. Foi-se mais um amigo! Foi-se mais uma parte do nosso mundo, interior e exterior. Mais do que uma desolação, mais do que estarmos deeply down, é uma parte de nós que morreu.
Já se disse muito sobre o João Matola, da faceta profissional ou de vida privada: grande profissional, formador, editor, que gostava de puxar pelos colegas, educador, formador, etc. E os seus colegas directos na Rádio Moçambique o disseram com mais e melhor propriedade. E nada do que disseram é questionável. Porém, mais uma ou duas coisas sobre este homem alegre não fazem mal. Amigo de todos, como um seu colega da Delegação de Nampula melhor o disse. Um homem de coração muito aberto, que não sabia fazer maldade a outrem. Um João Matola de energias positivas, como dizemos hoje, alegre. Um homem de riso exuberante, fácil e contagiante; conversador, piadeiro. Boa pessoa. Era sempre prazeroso estar com ele!
João Matola faz parte da minha turma na Escola de Jornalismo em 1987, a primeira que inaugurou o ciclo de cursos médios de jornalismo naquele estabelecimento de ensino. Da nossa turma, faziam parte o Adolfo Semente (ex-DM), falecido, Deus o tenha, Marcelino Silva (RM), João de Brito Langa (RM), Simião Pongwana (TVM), o Simão Anguilaze (TVM), o escritor Nelson Saúte, o Leonardo Júnior Sabela (ex-Notícias), o Vasco da Gama (AIM), o Marcelo Machava (DM), o Rui Machango (ex-Notícias), entre outros.
No ano e meio em que frequentámos a Escola de Jornalismo, a turma foi quase que uma família, tendo como “pai” o Fernando Couto, pai de Mia Couto, e “mãe”, a esposa daquele! Tratavam-nos, verdadeiramente, como filhos. Tudo fizeram para que fôssemos bons profissionais, mas, antes disso, para que fôssemos grandes humanos. Não me lembro de ter havido querelas de registo durante este tempo todo. O velho poeta Fernando Couto, já falecido, Deus o tenha, estava sempre conosco, ou com quem estivesse na Escola. Conversava, contava histórias e estórias, ria-se (leia-se brincava) connosco.
O Matola, como o tratávamos, sobressaía pela sua simplicidade, lidava com todos. Como dizia aquele seu colega da RM, era amigo de todos. Ria com todos, conversava com todos, contava piadas para com todos. Irradiava a sua energia para todos os colegas. Numa palavra: era um grande humano para todos os seus colegas! Mas também jogava futebol. Era um bom jogador de futebol. Muitas vezes, nos fins-de-semana e feriados, íamos jogar ali na ex-Escola Secundária da Maxaquene (agora Universidade São Tomás). Bom centro campista e com boa capacidade de drible e boa visão de jogo! Gostava de jogar com ele, não contra ele...
Quando terminamos a formação, fomos colocados em diferentes órgãos de informação. Ele foi para a Rádio Moçambique; pouco tempo depois, foi estudar em Portugal. Mas a irmandade, amizade e o companheirismo, gerados, criados e patrocinados pelo casal Couto na Escola de Jornalismo permaneceram até hoje. Nem o ter ido estudar em terras lusas fez dele um vaidoso! Ficava zangado quando alguém dos seus ex-colegas fosse a Nampula, onde ele foi delegado da RM, e voltasse sem o procurar! Queixava-se nos outros ex-colegas quando os encontrasse!...
Vezes sem conta, eu e ele encontrávamo-nos, confraternizávamos, batíamos copos, papos e copos, fazíamos tudo! Mesmo quando terminou a sua casa, há bons anos atrás, fez questão de me fazer saber. Não fomos “phahlar” a casa, mas brindamos no restaurante do Clube de Ténis, ali no jardim Tunduru, tarde adentro!
Vá em paz, Irmão, Amigo e Companheiro. Repouse em paz e até sempre! A sua memória ficará para sempre em nós!
(ME Mabunda)
Vi uma peça na STV, que também foi veiculado pelo Diário da Zambézia, que me deixou estarrecido, na qual colaboradores do BCI, que não foram flagrados com a mão na massa, foram transportados aos montes no Mahindra como ladrões de créditos e reputação firmada.Inclusive, o acto, lembrou-me um episódio no qual um jovem foi assaltado num carro e disse, aos polícias, que o acto tinha sido cometido por alguém com uma camiseta vermelha.
Alguns metros depois um jovem, que vinha do seu trabalho, foi cercado, recolhido, encarcerado é espancado. Motivo: tinha uma camiseta vermelha. Recolhido aos calabouços, mesmo com a vítima afirmando que não tinha sido aquele jovem a pessoa que lhe tirou o telefone, ele ficou detido, mesmo com testemunhos de pessoas que tinham estado com ele naquele dia ele permaneceu detido até que teve de ser libertado por uma procuradora.
Portanto, é regra da nossa polícia é deter sempre, pois qualquer pessoa acusada por eles é naturalmente culpada. Voltando ao assunto do BCI e a forma como os seus colaboradores foram recolhidos diz mais do banco do que da polícia. Ainda que todos jovens ali estejam envolvidos no crime, aquela forma indigna de transportá-los, diz muito dos valores do BCI enquanto empresa.
Há algo que se chama dignidade e o BCI deveria ter criado meios para garantir isso aos seus trabalhadores. É importante também que os jornalistas não se limitem a reproduzir o que a polícia diz? Não se pode transformar a suspeita na culpa de forma alguma. Nenhum colaborador ali foi surpreendido com dinheiro fruto do roubo, foram simplesmente recolhidos por serem trabalhadores do BCI e por terem estado na agência na hora em que deviam trabalhar. Ou seja, aquele era o único lugar onde deveriam estar naquele momento, suspeito seria estarem em outro lugar sem justificação.
O pior é que até prova em contrário são inocentes e, por regra, há grandes probabilidades de que sequer tenham antecedentes criminais. Se todos ali forem culpados a polícia falhou, o BCI falhou e o jornalismo perdeu a oportunidade de questionar os métodos da polícia e os valores que o banco preza no que diz respeito aos seus colaboradores. Devia ser regra, quando se faz jornalismo, avaliar se as pessoas que são classificadas como supostas criminosas são tratadas com dignidade ou não. Isso sequer é um valor do jornalismo, mas um princípio que nos devia acompanhar enquanto humanos.
Golpeado profundamente no seu ego, Tomás Salomão, membro da Comissão Política da Frelimo, continua inamovível. De pedra e cal como PCA do Standard Bank (SB), mesmo depois de seu único capital (o capital do lobby político) ter sido esvaziado de forma vexatória pelo Xerife do Banco de Moçambique, o governador Rogério Zandamela.
A suspensão do SB por um ano é uma punição gravosa que vai certamente reconfigurar a correlação de forças entre os Big Five da banca moçambicana. O SB vai perder uma boa parte da sua quota de mercado. Bancos como o BIM e o ABSA estão a receber alguma preferência dos clientes que estão a transitar do SB.
Há pouco mais de um mês, quando foi anunciada a suspensão provisória do SB do mercado cambial interbancário (e mais tarde de todo o mercado cambial), Tomás Salomão exibiu um ar de serenidade absoluta, tentando mostrar que era capaz de inverter a situação em benefício do banco.
Mas não. As contravenções tinham demasiado gravosas, lesa-economia, e justificariam, para uns, as medidas de choque anunciadas pelo banco central. E, de certo modo, o Xerife, em véspera de renovação de mandato (16 de Setembro), aproveitou o cenário para cimentar seu poder político diante de uma elite frelimista sem margem de manobra: a espada das dívidas ocultas está severamente apontada em direcção às suas cabeças.
O endividamento oculto (incluindo as evidências sobre um famigerado “new man”) fragilizou tremendamente a capacidade de "leverage" desta elite política diante do FMI, e Zandamela sabe disso, e usa isso para demonstrar sua independência (a do banco Central, como regulador) e isso é bom para o sistema financeiro no geral. O problema é que ele fá-lo sem decoro, não medindo os efeitos secundários das suas intervenções sobre a economia e negócios. No caso vertente do SB, ele ignorou completamente o efeito perverso sobre os clientes do banco.
Mas, a grande lição (e este é o tópico central deste texto) que fica deste caso é o inicio do fim da promiscuidade entre política e negócio nos lugares cimeiros da banca. A prática vigente, de o capital apontar uma figura política para liderar, embora que simbolicamente, seus negócios, esperando dele uma mãozinha de proteção em caso de reconhecida improbidade, está a chegar ao fim. Basta olhar para a nóvel composição dos órgãos sociais do BCI.
A incapacidade demonstrada por Tomas Salomão, que não conseguiu empurrar a Comissão Política da Frelimo para uma trincheira de musculação contra Zandamela é o indicador mais paradigmático dessa transição. Não creio que os accionistas do SB segurem Salomão por mais tempo. A ver vamos... A classe política saiu severamente beliscada desta trama. E Tomás Salomão poderá acabar deixando o SB pela porta dos fundos. Ele mostrou-se completamente irrelevante lá.
O único comportamento que lhe pode safar - não perante os accionistas mas perante a sociedade - é ele demitir-se de cabeça erguida, mostrando à sociedade uma ainda esperada postura de bom senso...inaugurando nesta mesma sociedade, pela primeira vez, uma postura de dignidade jamais vista em Moçambique...a postura da demissão quando chegamos ao fim da linha...(Marcelo Mosse)
Três Humanistas, Três Ciências, Três Pedidos
Por José P. Castiano e Jorge Ferrão
Ninguém, no melhor dos seus sonhos, poderia imaginar que, da distante, inóspita e diminuta missão anglicana de Messumba, na igreja de S. Bartolomeu, no Niassa, três jovens tocariam os sinos da vida e seguiriam caminhos tão equidistantes, impactando nos corações de milhares de seguidores. Depois da formação inicial, seguiram para a escola de artes e ofíciosde Massangulo. Carlos Machili virou carpinteiro; Filipe Couto, sapateiro; e Brazão Mazula, encadernador de livros.
Pode não ter sido a missão de Messumba que criou neles o sentido primário e ético de vocação. Todavia, o sentido, talvez superior, de “missão” foi propiciado pela forte formação teológica e filosófica que foram recebendo. Depois, partiram o Mundo, i.e., Itália para o caso de Machili, Alemanha para o padre Couto e Brasil para o Brazão Mazula, sem descurar outros universos por onde passearam sua classe e virtudes. De certa forma, esta formação superior proporcionou-lhes uma relação mais racionalizada para com as suas crenças e Fé. Daí terem assumido as suas crenças temporais com o sentido de “missão”.
Os alemães, pela boca de Max Weber, têm um encanto especial pelo termo “vocação”. A vocação não está, somente, ligada ao seu sentido prático e profissional, porém, e sobretudo, ao espiritual. A “missão” que cada indivíduo recebe, uma vez terminada a sua formação, se transforma num chamamento para a perfeição, honestidade e, principalmente, no sentido de um servidor do outro. Não é por acaso que, em alemão, a palavra Beruf significa profissão. O verbo beruffen significa mesmo chamamento.
Convocar e celebrar estes três “iluminados” de Massangulo, num mundo conturbado e em agitação plena – terrorismo em Moçambique, “free Zuma”, Bolsonaro, Ndhlavela, vitória da Itália – foi um acto proporcional e de pura nobreza. Existirão, sempre, infinitas razões para “vasculhar” as pontas que mais os uniram, e os que os dividem. O denominador comum, convenhamos, assenta nessa “trindade” oriunda de uma educação missionária de um local “esquecido”, e que transcendeu e se afirmou como referência obrigatória no panorama mundial.
Se estas razões forem insuficientes, teríamos, então, de apelar ao nacionalismo, ao contributo para a causa e luta de libertação nacional e, no pós-independência, ao aficando empenho na educação das novas gerações. Um “triunvirato” que continuará presente em nossas consciências, nesta e futuras gerações.
Esta trindade não é santa. Aliás, gerou, ao longo de anos, consensos e descensos, empatias e apatias, animosidades e hostilidade. Não obstante, se reconhece uma trajectória e um percurso, que transcendeu do reduto Niassa, perpassando o mundo, para assumir missões maiores num mundo designado Moçambique, e para uma universalidade por via de uma academia universalista. Todos eles, oriundos dessa formação teológica-filosófica, abraçaram, posteriormente, a academia moçambicana como produtores de pensamento e como gestores/reitores nas duas maiores instituições públicas e estruturantes – a Universidade Eduardo Mondlane, para os casos de Brazão Mazula e Filipe Couto; e a Universidade Pedagógica para o caso de Carlos Machili.
Não temos ilusões sobre os efeitos dessa caminhada na personalidade e carácter de cada um. A unicidade, aliás, teria sido nociva e perversa. Então, quais seriam, as crenças temporais através da quais, cada um deles, enriqueceu a sua fé e personalidade?
Na sua actividade como intelectual, Brazão Mazula é um profundo crente da possibilidade de Democracia, em África, baseada no uso da “palavra” (ou do “agir comunicativo”, tomando o sentido habermasiano). Ao mesmo tempo que fazia um diálogo profundo com filósofos como Hegel, Heidegger, Eric Weil, mas, sobretudo, com Marx e Habermas, Mazula foi também incansável em buscar, nos pensadores, africanos como Mulago, Hountondji, Eboussi-Boulaga, ou seja, na “esteira académica” africana, inspiração para fundamentar uma democracia baseada no uso da palabre e na “criação da riqueza”.
Mazula desempenhou um papel fulcral para que as primeiras eleições democráticas tivessem lugar. Assim, tem sido ao longo da sua carreira, e nos momentos mais sensíveis e de desassossego. Pelas obras que publicou, provou sua versatilidade e capacidade de negociar, construir pontes e essa identidade democrática, que continua distante de ser a ideal, finalizada, ou mesmo a mais reconciliatória.
Por seu lado, Carlos Machili, na palavra e em acto, foi, e ainda é, um grande crente da ideia de que “a qualidade da educação em Moçambique, somente pode (pro)vir da quantidade”. Não é excluindo uns ou uma parte da sociedade, ou seja, apostando numa educação e formação elitista e elitária, que vai se garantir a qualidade: “uma universidade deve ser mordida por mosquitos”. Ouvimos ele, inúmeras vezes, a defender. Às vezes mesmo sozinho, no meio de muitos experts em “educação de qualidade”.
Machili, pois, é um fervoroso crente da expansão do ensino superior para todo o país. Não quis ficar refém de uma linha elitista, emergente, que contra-argumentava suas pretensões. Contra tudo e todos, foi abrindo delegações da Universidade Pedagógica, por todas províncias. O que foi específico nele é que a quantidade, a expansão, não era algo que se deveria fazer em detrimento da qualidade, daí a sua insistência, quase que de forma insurgente – e ele é mesmo um insurgente intelectual – na necessidade de uma boa formação de professores (recusou e insurgiu-se, oficialmente, contra a formação 10+1 ou 12+1, esquemas inspirados pelo Banco Mundial).
Por fim, o Padre Couto, talvez por ter sido sapateiro, combinando com o facto de ser fervoroso admirador de Martin Lutero, o reformista alemão, é um fervoroso crente das potencialidades da juventude moçambicana. Ele deposita fé na capacidade que a geração mais jovem tem em ser irreverente, no seu sentido positivo. Isto é, de ela própria reconhecer os desafios do seu tempo-vivido. É por isso que insiste muito, nas suas aparições públicas, na não-glorificação e não deificação de actos humanos do passado recente da historiografia de Moçambique, por mais “gloriosos” ou “heróicos” que nos pareçam e apareçam. O que interessa é o futuro e a forma como a juventude estará preparada para actos naturais neste futuro.
É somente a partir desta trindade de crenças, iluminadas pela fé no futuro, que podemos entender os três “pedidos” que expressaram no acto da sua homenagem na UP-Maputo: “Não matem a filosofia nas escolas moçambicanas, pois a falta dela pode ser uma das razões principais para prevalência da violência que vivemos hoje” – ouvimos Mazula a pedir, para logo acrescentar alguma ironia: “não sei dar, só sei pedir”. O Carlos Machili, igual a si mesmo, expressou da seguinte forma o seu desejo: “uma universidade que não produz dinheiro, morre” para depois acrescentar que “deixem que este dinheiro produzido, internamente, seja gerido pelos departamentos e faculdades”.
Por seu lado, Filipe Couto, já cego, mas atento às dinâmicas actuais, pediu à juventude para, por via da Universidade Pedagógica de Maputo, fazer um trabalho profundo na compreensão da História e da historicidade de Moçambique. Só assim é que o futuro não será uma repetição, em forma de tragédia, do passado que nos parece e aparece como sendo heróico. Nunca houve, não há e nem haverá homens infalíveis. A grandeza humana na História, só se avalia pela forma como os homens e cada um, se confrontam com as suas próprias contingências e fraquezas de momento – parecia querer dizer ao evocar as personalidades de Urias Simango, Mateus Gwendjere ou Lázaro Nkavandame. Não se tratou de acender a chama dos esqueletos, mas de proporcionar uma revisão histórica, genuína e descomprometida, mesmo considerando que alguns se tenham posicionado do lado “reaccionário” da revolução.
Resumindo, de uma coisa temos a certeza: os três humanistas que viveram as suas crenças como “missão” da vida, não foram e nem formaram uma “santa” Trindade; bem pelo contrário, tiveram as suas angústias, emoções, talvez até erros, resultantes destas suas crenças. O certo é que todos foram forjados no “Niassa”, para o mundo. (X)
Por José P. Castiano e Jorge Ferrão