Por: Jorge Ferrão[1] e Patrício Langa[2]
Em 2022, o ensino superior em Moçambique completa 60 anos. Com efeito, foi a através de um decreto-lei 44530 de 21 de Agosto de 1962, que foram criados os Estudos Gerais Universitários em Moçambique e de Angola. Surgiam assim as primeiras instituições do ensino superior (IES) nos países africanos de língua oficial Portuguesa.
Seis décadas passadas podem representar um tempo histórico significativo para um país fundado em 1975, mas incipiente para o ensino superior como instituição milenar competindo apenas com a igreja em termos de antiguidade. O termo ensino superior, aqui, é tomado como se referindo a todas as formas de educação terciária, pós-secundária, incluindo a do tipo universitária, e politécnico. De facto, se nos atermos a história do ensino superior antigo, a África pode até reclamar-se o berço deste tipo de educação antes de mesmo de Cristo, com a Academia de Alexandria no Egipto fundada em 331 AC.
As famosas Universidades de Timbuktu, no actual Mali, fundada em 1100, a Universidade do Cabo, na África do Sul, fundada em 1829, mas também as universidades de Cartum, no Sudão (1902), Makerere no Uganda (1921), Ibadan (1948) na Nigéria, e Nairobi (1956) no Quénia são a evidência de que o ensino superior nos países de expressão Portuguesa fora de Portugal (PALOP) ainda esta no seu despontar.
Com a excepção do Brasil, cuja historia indica que a primeira instituição de ensino superior foi a Escola de Cirurgia da Bahia, criada em 1808 e a posterior as faculdades de Direito de São Paulo e de Olinda, em 1827, os PALOP tiveram que esperar até ao inicio da década de 1960 pelo ensino superior.
Nos casos de Moçambique e Angola o percurso inicia com um processo respaldado na mudança da política colonial em relação às colônias, a crescente demanda dos colonos e assimilados, associada a pressão inestimável das Nações Unidas que apelava a criação de mais condições de ensino, nas então colónias portuguesas do ultramar. Ainda assim, o ensino superior nestes países nasce com o pecado original da exclusão dos nativos. Pecado este cujo legado, seis décadas depois ainda se procura redimir.
Assim, celebrar seis décadas de ensino superior constitui em si um acto de regozijo, particularmente, quando se faz num contexto de independência política do jogo colonial relativamente consolidado. Não obstante, os avanços, os desafios são reflexo de um subsistema da educação ainda emergente, num país que ainda busca seu rumo no concerto das nações. Em 60 anos em média criamos 6 novas universidades a cada década. Os desafios que temos em seis décadas muitas vezes olvidam que se equiparam as mesmas aspirações de sistemas nos quais cada década nossa equivale a um centenário. Alias, no Hemisfério Norte, de onde nos inspiramos e herdamos a ideia moderna do ensino do superior, as IES são até milenares. Sem ser cáusticos, precisamos ser condescendentes em qualquer que seja a avaliação das seis décadas. Até porque mais do que a própria avaliação é dos critérios que mais precisamos nos ocupar para análises concernentes a projecção das próximas décadas.
Os desafios do ensino superior incluem um sistema que procura definir o seu caracter, com IES com maior pendor para o magistério em detrimento da pesquisa, corpo docente em processo formação, necessidade de estudos específicos sobre o desenvolvimento do subsistema, e melhoria dos processos de formulação de políticas públicas mais assertivas, entre outros. Tal como Angola, não admira, pois, que tenhamos percorrido a mesma trajectória, experimentando desafios muito semelhantes e, fundamentalmente, que o processo de consolidação se mostre, ainda, muito distante do seu final.
Sendo que o ensino superior se caracteriza não só pelo ensino, mas também pela pesquisa, extensão e inovação para a produção de conhecimento com impacto na sociedade, a comemoração dos 60 anos deste subsistema em Moçambique é uma oportunidade ímpar para se repensar o subsistema, as instituições e o seu papel na transformação da sociedade. Nesse repensar, cabe um debate profundo sobre as políticas do ensino superior, o lugar da pesquisa e extensão na formação dos estudantes, a formação de docentes, que, conjugados, e num contexto de inovação, concorrem para a qualidade almejada neste subsistema.
Entre avanços e retrocessos, desafios e oportunidades o ensino superior passou por diferentes processos de continuidade e rupturas. O esforço e empenho de jovens académicos, com todas as limitações, esteve sempre presente e tem sido o garante das mudanças, aprimoramentos e paradoxalmente dos problemas correntes. Não existem dúvidas e nem reservas que as IES nacionais foram as grandes responsáveis pela formação da maior parte do capital humano em Moçambique, que providencia e garante serviços essenciais ao Estado, sector privado, familiar e noutras esferas económicas, culturais e até na manutenção dos serviços dos ecossistemas.
Todavia, prevalecem questões estruturais, de governação e coordenação do sistema, atitudes autocráticas e de poder discricionário dos gestores, tanto nas IES públicas como nas privadas. Os investimentos em infraestrutura, planos temáticos e curriculares são fundamentalmente desenquadrados, o tempo de formação questionável, esquemas de corrupção, e, coincidentemente, a ascendência e precedência da política sobre a academia ou, por outras, a politização da academia que desvirtua o sentido da autónima “real” (e não apenas no papel) das IES que, noutros contextos, paradoxalmente tende a ser protegida pelo Estado.
Apesar dos avanços em termos de acesso ao ensino superior, com a expansão numérica e geográfica de IES um pouco por todo país, fruto da visão de política pública dos diferentes Governos, a base de conhecimento que sustenta os processos decisórios sobre o ensino superior assenta em convicções fortes, com princípios normativos – do dever ser – em contraste com a fraca evidência produzida através de estudos de base.
Os quadros normativos e reguladores do sistema revelam um problema fundamental dum sistema político descentralizador apenas na retórica, mimético (do Copy & Paste) de modelos exógenos mal re-contextualizados, mas também com tendências centralizadoras e autocráticas na prática. Com efeito, trata-se de um sistema que emula a sua insciência na medida em que se desenvolve num ciclo vicioso de relatórios técnicos comissionados e produzidos por agências de consultoria generalistas e profissionalizadas, que subcontratam, a preço rendeiro, académicos cuja autoridade e legitimidade radica do simples facto de advirem das IES e conectados aos circuitos do lóbi da consultaria.
Assim, documentos estruturantes da Governação do sistema são produzidos através de esquemas em cima do joelho, com um teatro das auscultações no Norte, Centro e Sul, dos parceiros, apenas para legitimação politica do processo, e com o beneplácito de agências de financiamento que justificam a sua existência através da reprodução da nossa mediocridade enquanto nos endividam. Sim, é, do algoz Banco Mundial e entidades congéneres que concorrem para a reprodução da incapacidade interna de produção de política pública das próprias instituições do Estado através de seus projectos de desenvolvimento de capacidade e assistência técnica. É um sacrilégio para o ensino superior que em pleno 2021, os Planos Estratégicos e outros documentos directores sejam produzidos em esquemas de consultoria, que promovem a exploração de académicos moçambicanos por empresas parasitárias que dominam os espaços do lóbi das consultorias, relegando as próprias IES ao mero papel de entidades auscultadas.
O ensino superior vive, portanto, copiosas encruzilhadas. Por um lado, a pressão das demandas duma sociedade cada vez mais ciente e crente dos benefícios do retorno do investimento no ensino superior, apesar duma apreciação e avaliação baseada no bom senso, informada por uma visão redutora e instrumentalista do ensino superior como o trampolim da mobilidade social através do emprego formal, no Estado, e nas Organizações não Governamentais (ONGs), mercado preferencial para a transação da reputação dos títulos e credenciais académicas. Por outro lado, a saturação prematura dos lugares de emprego, particularmente, no aparelho do Estado, mas também nas ONG com maior proeminência, que prematuramente desfazem a ilusão da empregabilidade, dos graduados, num sistema cuja taxa de participação entre Jovens dos 18 aos 24 anos não atingiu sequer 10% em sem mil habitantes, reforça o estado de crise do sistema. Este paradoxo gera a ilusão da escassez, mobiliza empreendedores educacionais a criarem novas IES, por razões adversas a educação como bem-público, mas funcionam na propalada lógica neoliberal da mercantilização e co-modificação da educação, abordada por um de nós (PL), noutros escritos.
As IES, e, em particular a universidade, no conceito mais genérico, sempre tiveram um sentido de utopia e de um espaço de encontro de tradições e quebra de horizontes do conhecimento humano. A universidade é, igualmente, um espaço onde se cultivam a sociabilidade com a diferença de pensamento, com o pluralismo democrático, e igualmente, a esperança da humanidade. Esperança porque a sociedade deposita confiança nos processos deliberativos associados ao pensamento crítico, em principio, que radica da formação superior.
Assim, as universidades seriam, também, ao longo destes 60 anos, parte do projecto de consolidação da nação com representatividade dos diferentes grupos sociolinguísticos, suas tradições e utopias. As IES constituem espaços convencionais onde a expectativa seria a criação do designado ‘bildung’, quer dizer, à preparação da pessoa humana visando produzir cidadãos responsáveis, maduros, autônomos e capazes de refletirem sobre os seus próprios problemas, e da sua sociedade.
Este exercício constitui o lançamento de um repto. O repto que ocasião que se aproxima da efeméride do sexagenário nos oferece para repensar o etos ensino superior no país. Lançamos o repto neste mês de novembro, demasiado simbólico e representativo para o ensino superior, quando celebramos o dia mundial da ciência e o dia dos estudantes, que enfrentam as vicissitudes de um sistema de ensino superior emergente. O impacto da pandemia que escancarou, em 2020, as fissuras e fragilidades do sistema diante das restrições, incapacidade e outras aporias que provaram o quão longo será o caminho a percorrer na edificação de um ensino superior robusto.
No entanto, mas do que lamentar a ausência do óbvio, que a pandemia apenas veio desnudar, este tempo oferece-nos a possibilidade, de outras possibilidades, isto é, da reinvenção. Sim falta tudo para muitos, e há tudo para poucos, mas há também a oportunidade da ausência do padrão, da tradição, pois tudo se tornou experimental e não há espertos (experts) em matéria de sobrevivência melhor que nós. Portanto, se a inclusão digital parece ser um problema de fundo, não poderemos negligenciar o potencial da reinvenção social. Se existe algo para o qual poderíamos prestar atenção só celebrar o sexagenário é a capacidade recreativa, inventiva, dos Moçambicanos, mesmo em condições adversas.
Ao celebrar os 60 anos do ensino superior teremos de, entre outras, pensar que tipo de ensino superior queremos para que tipo de sociedade. Celebrar estes 60 anos tem de assumir um papel bem mais profundo e incisivo. Redefinir o papel e a função do ensino superior num contexto de múltiplas necessidades sociais e humanas, para que as IES continuem impondo-se e respondendo aos desafios da sociedade com recurso ao pensamento crítico tão caro a sociedade.
Não poderemos continuar dissociados dos adventos que movimentam o mundo da quarta Revolução Industrial, do advento da ciência artificial, da robótica e nem a redefinição da grelha de cursos que mais condicentes com as novas profissões. Não podemos ser apenas vitimas de mudanças climáticas, sem que sabíamos debater suas origens e consequências diferenciadas. Estes tempos apontam para cenários verdadeiramente desafiadores, e que obrigarão Moçambique a repensar na direcção do seu ensino superior de forma geoestratégica e mais estruturada.
Nos próximos anos, os desafios serão acrescidos. Os impactos das sociedades de conhecimento colocam competências tecnológicas e digitais como activos ultra importantes. Seguir as novas tecnologias e os efeitos da revolução cientifica e tecnológica, evitará que sejamos marginalizados e esquecidos pelo tempo. (X)
[1] Reitor da Universidade Pedagógica de Maputo
[2] Sociólogo, Faculdade de Educação, da Universidade Eduardo Mondlane
Ao longo da vida, tenho sido galardoada com alguns prémios. Não questiono as suas dimensões, as organizações que as outorgam, ao mérito e seu alcance geográfico. O mundo sempre encontrou formas de expressar reconhecimento e apreciação. Porém, sempre assumi, de forma muito consciente, que estas menções honrosas são dedicadas e atribuídas, em primeiro lugar, aos moçambicanos e a todos que têm um compromisso para com este povo. A experiência me ensina a discernir o simbolismo e o realismo de qualquer premiação. Não importam as circunstâncias, existe sempre uma mensagem por detrás de qualquer premiação.
Pessoalmente, mesmo sendo avessa a estas premiações, assumo o princípio de que todos merecem um reconhecimento pelo trabalho que realizam. Reconhecimento e condecoração sempre foram o factor mais importante da condição humana. Eles ocorrem e podem ser entendidos como elogio por tarefas bem-sucedidas ou valores pessoais. Mas, tem de ser, sobretudo, sinónimo de identificação com uma causa e a aceitação de que seguimos causas correctas e justas, que estimulam um engajamento naquele que acreditamos ser o caminho a seguir.
Reconheço, ainda assim, que esta indicação tem um sentido diferente; não apenas por ter sido a primeira nesta categoria, mas, e fundamentalmente, porque retoma as questões essenciais, nesta fase crítica do planeta e da humanidade. Investir na humanidade não pode significar apenas uma alusão ou apanágio. Tem de ser assumido como um propulsor cujos retornos são, por si só, apropriados, úteis e ajustados aos diferentes desafios contemporâneos. Testemunhamos momentos dramáticos no planeta; a nossa própria existência parece estar em jogo. Da pandemia, que continua ceifando vidas de milhões; das mudanças climáticas, que devastam a esperança de dias mais seguros; dos conflitos sociais e militares; das crises económicas, de governação e de lideranças, parece que cavamos a nossa própria sepultura, a cada dia e ano que passam.
O meu pensamento, neste momento, e ainda com esta condecoração em mente, continua dedicado às mulheres e crianças do meu país. Para elas, em particular, dedico as minhas energias para que elas possam desfrutar e sonhar com um Moçambique que lhes seja acolhedor, amigo, seguro e de sonhos.
Tenho acompanhado o retorno às aulas presenciais, os esforços sobrenaturais para que se ofereça um ensino que diminua as profundas desigualdades educacionais neste Moçambique em que estamos imersos. Sigo, a rigor, as condições das infra-estruturas educacionais, o reduzido número de horas lectivas, enfim, a sempre debatida atractividade da carreira de professor, com salários insuficientes e jornadas fragmentadas, que tornam o processo de ensino pouco efectivo. Eu não tenho dúvidas que com o advento da Covid-19, as desigualdades educacionais e a insuficiência de aprendizagem se aprofundaram. Muitos dos alunos ficaram isolados, sem acesso às plataformas e outros meios digitais menos afluentes. E reverter estas desigualdades exige um esforço gigantesco de toda a sociedade.
Seria injusto pensar, apesar de tudo, somente nos alunos, excluindo, deliberadamente, os seus principais condutores e mentores: os professores, sobretudo, aqueles que são os mais engajados e comprometidos, mais esforçados e que não se deixam influenciar por práticas corruptas e nepotismos. Existem muitos que são sérios e que merecem um reconhecimento e uma vénia. Professores que, com acções mais proactivas, formam a linha da frente e asseguram a transmissão mínima de conhecimento e de valores, princípios e regras de sã convivência e disciplina.
Portanto, que este prémio humanidade, do Instituto de Iniciativa de Investimento Futuro para a Humanidade, seja, igualmente, um reconhecimento generalizado para todos os que auxiliam na transformação equitativa e qualitativa da educação, na sua relevância e na abordagem que transforma a aprendizagem na ferramenta que abre os caminhos para uma vida digna, honesta e solidária. Esse tem de ser o caminho da educação. Uma escola onde se aprende e se ensina, um espaço onde se sonha, se pode ser feliz e se caminha de mãos dadas rumo ao humanismo.
Não queria terminar sem deixar uma palavra de apreço à outra premiada, a cantora americana Gloria Gaynor, uma personalidade comprometida com o humanismo. O galardão reconhece sua distinta e brilhante carreira, o seu empenho exemplar no bem-estar do seu povo e, naturalmente, no próprio progresso e impactos positivos na humanidade. Gloria Gaynor, com a sua “I will survive’, uma das minhas canções favoritas, tem sido um exemplo inequívoco para os artistas e o para mundo. Não é por acaso que a sua canção mais famosa tem sido recriada por dezenas de cantores de diferentes gerações.
Recebi, por estes dias, entusiásticas felicitações de amigos, colegas, conhecidos e até pessoas anónimas. Não podendo retribuir para todos, da mesma forma, aproveito para agradecer humilde e sinceramente à todos que acreditam e que fazem de tudo para ajudar na estabilidade deste país, se empenham para que Moçambique seja desenvolvido, respeitador dos direitos das mulheres, das crianças, dos direitos humanos; aos agentes e instituições que promovem o bem-estar social, as artes e cultura, enfim, à todos cujo esforço e empenho têm impactado esta trilha do progresso e esta jornada mais sustentável e brilhante para a humanidade. (X)
De cada vez que me debruço sobre a literatura moçambicana, de forma deliberada ou fortuitamente, parece impossível não mergulhar nesse imaginário de palavras e sons dos mais talentosos escritores moçambicanos e, claro, desse iconoclasta amigo Ungulani. Cultivo uma inqualificável empatia com a maior parte dos escritores da sua geração, também minha, porém, nutro especial e inquebrantável respeito e admiração pelas anteriores gerações de escribas.
Revisitando emblemáticos escritos na delícia do conforto de que proporcionam a alma, se tornou quase impossível escalonar as melhores obras, sob o risco de omissão de outras. São todos produto da emancipação deste país, do sonho azul da revolução e dessa esteira literária de combate. De um modo, ou de outro, devemos gratidão aos instauradores da literatura moçambicana, e que a transformaram num movimento único, assumido e memorável. Independente das épocas e períodos históricos, cada uma das gerações impregnou a manipulação da palavra e da imaginação, tatuou a resistência a escritos não panfletários e a renegação do seu próprio destino. Enfim, sem eles, não teríamos embarcado na sobriedade, credibilidade e honestidade. Na libertação do pensamento livre e descomprometido.
Cumpliciei com Francisco Cossa, Chico, nome mais familiar, ao longo de décadas. Por vezes, com mais proximidade, noutras, nem por isso. Nada que tenha beliscado esta amizade. Na panóplia de momentos pitorescos, nas tertúlias, no santuário de bebedores, guardamos inesquecíveis e insuperáveis momentos de inigualável convergência. Ele, como Mestre, e eu, como aprendiz. Uma amizade que se reconstruiu em irmandade, com esse implacável recurso à negação da fatalidade e do senso comum. Já nessa altura, ele demonstrava uma capacidade de imaginação e um poder efabulatório muito acima do normal. Estava escrito nas estrelas que ele terminaria escritor.
Não tardou que se agigantasse, e se transformasse em Ungulani. O Ba Ka Khossa. Esse trocadilho de nome, que representa um país e suas raízes literárias. Ungulani Ba Ka Khossa, esse talentoso homem de Inhaminga, região central de Moçambique, se assume como moçambicano de todas as províncias. Uma espécie de um gigantesco polvo, cujos tentáculos se confundem com as metástases da cultura de cada grupo étnico. Nesta convocação, o revejo como parte das minhas amizades iniciáticas. Formando como professor de história, com um substracto assente em obras literárias.
Ungulani foi céptico sobre os caminhos da literatura moçambicana num dado momento histórico. Sentia descaso com as autoridades, insensibilidade das escolas e instituições gestoras. Entendia que o rumo não seria a poesia fácil, despida de técnicas, rigor, e outros atributos convencionados. Fincava sua fé na prosa e na ficção. Mas, nunca perdeu as esperanças. Hoje, já fala da literatura moçambicana com paixão e optimismo. Poderia ser melhor, mas já sente um reviver do compromisso com o discurso sóbrio, com os escritos inspirados na tradição oral, com a exploração dessa originalidade Bantu e suas múltiplas línguas nacionais. Essas são as marcas que farão a identidade da nova vaga de escritores.
Eventualmente, nos conhecemos naquele invulgar movimento, anunciado por Samora Machel, a 8 de Março, que concentrou no Maputo jovens estudantes que se converteram em ousados professores circunstanciais. Anos mais tarde, reencontrei-o, assumindo postura burocrata no ministério da Educação e Cultura. Partilhava a sua sala com Ana Elisa Santana Afonso. Ela seguiu a carreira na UNESCO, Ungulani ficou-se por aqui e com seus livros. Na época, Ungulani e Ana Elisa ajudaram a resolver pepinos de colegas que não souberam ler e nem entender o sistema. A juventude não permitia outros entendimentos da revolução e nem imaginavam os riscos associados ao pensar e sonhar diferente.
Anos mais tarde, Ungulani já estava engravidado do consagrado Ualalapi. Esse livro se converteu num dos 100 melhores do século, no continente africano. Merecidamente. Esta foi a obra que exacerbou os entendimentos sobre as lanças dos guerreiros do Império de Gaza. Reavivou Gungunhane, sua astúcia e malícia, explorou o papel de suas esposas. Mas, foi o livro do apocalíptico império de Gaza com suas virtudes e defeitos e personagens que se imortalizaram.
Ainda nessa época, ele falava da sua paixão sobre o escritor colombiano Gabriel García Márquez. Essa apreciação pode ter ajudado a reafirmar um laço que estava escrito pelo destino. “Cem anos de solidão” é considerado o maior exemplo do género literário do designado realismo mágico. Gabriel Garcia Márquez retracta, no livro, eventos sobrenaturais, num tom objectivo e pragmático, enquanto, os normais e factos históricos, como pura fantasia.
Acredito, firmemente, que Francisco Khossa, o Chico, repensou no apelido Ungulani, como o próprio nome fictício do vilarejo Macondo, do livro de Márquez. Mas, a Agustina Bessa-Luís e Jorge Amado nunca saíram do seu vocabulário. Para Ungulani, qualquer grande escritor precisa de ser um bom leitor.
Ungulani nunca se preocupou em defender a investigação histórica, mas tem na essência o mérito de lhe conferir credibilidade e prazer de leitura dessa narrativa histórica. Como historiador e escritor, Ungulani coloca todo o seu saber naquilo que produz e pretende transmitir, tornando a história em verdadeira representação literária e, ao mesmo tempo, em arte de encenação. Esta é a conclusão de um amigo comum, o Marcelo Panguana. Mas, o Ungulani encerra, em si mesmo, várias facetas, estórias e personalidades. Um homem inspirado e, insofismavelmente, ligado às grandes leituras da sua época.
A crítica literária tem sido muito complacente e assertiva para com o Ungulani. Ba Ka Khossa foi consagrado como contista de reconhecido mérito, amadurecido pela diversidade e abordagem na sua inquestionável produção literária. Ele se transformou em alguém que recorre ao metaforismo e à magia na recriação de personagens. Ungulani fará parte do distinto grupo dos mais nobres escritores do seu tempo, com essa capacidade de reconstruir, como ninguém, a saga que têm sido os anos de conflito armado no país.
Ungulani, fazendo alguma justiça é, igualmente, um devoto e apaixonado fiel de Luís Bernardo Honwana. Ele o considera o Pai da literatura moçambicana. Tem as suas razões e não ousamos questionar esta distinção. Aliás, também defende que a charrua é a melhor revista literária do mundo. Assim tem sido Ungulani, um destemido provocador, um desarrumador de ideias e um iconoclasta, como o define Nelson Saúte. Ungulani, enfim, será sempre o símbolo-mor da nossa geração, um desalinhado; alguém que pauta pela sublevação, desapegado dos ditames desta e outras épocas. Permanece alheio às lides do aparelho ideológico e discordante das ideias que reprimem a liberdade de criação.
Temos uma particularidade. Amamos o Niassa, a Sibéria moçambicana. Ele, porque passou algum tempo para se auto-educar, e eu porque aprendi a amar a natureza e seus animais. Acreditamos na magia deste pedaço de terra. Um dia, Niassa se converterá no melhor espaço do mundo. Quando não existir mais água, o lago vai matar a sede de toda humanidade e saciar a sua ganância. Até lá, seremos gratos por ter convivido, desfrutado e beneficiado dessa veia literária tão mordaz quanto profícua. (X)
Abdulrazak Gurnah foi anunciado hoje como Prémio Nobel da Literatura deste ano. A Academia Sueca prossegue, nestes últimos anos, a sua estratégia disruptiva em relação aos favoritos, laureando nomes totalmente inesperados. Sabia que hoje seria anunciado o vencedor deste ano e tinha a ideia de que o mesmo pudesse ser um autor oriundo de uma zona diversa daquela que acumula mais prémios: o Ocidente.
Eu diria que esse propósito não foi cabalmente cumprido. Gurnah nasceu, em 1948, no antigo Sultanato de Zanzibar e de lá saiu aos 20 anos, tendo feito a sua vida e a sua carreira no Reino Unido. É um escritor britânico. Parece-me um dislate quando se diz que se premiou um escritor tanzaniano. Quando ele nasceu, a ilha de Zanzibar nem sequer pertencia à Tanzania. Existia a Tanganyika e o Arquipélago de Zanzibar, que teve sempre um estatuto e jurisdição colonial independente. E mais: aqueles que abandonaram a ilha na sequência da revolução, quase todos, nunca se identificam como tanzanianos. Sobretudo os de origem indiana. Eram e são cidadãos britânicos.
Este autor parece-me ser um caso semelhante ao de V.S. Naipaul, que ganhou o Nobel há precisamente 20 anos, e que nascera em Trindade e Tobago e sempre se viu britânico. Também chegou jovem e fez toda a carreira no Reino Unido. Foi provavelmente o mais virtuoso cultor da língua inglesa entre o século passado e este. Aliás, o intrépido V.S. Naipaul chegou a cortar com uma editora (a Secker) por esta ter redigido na contra-capa de um livro (“Guerrillas”) que ele era um “romancista das Índias Ocidentais”.
Esta tarde ligou-me uma jornalista da RTP a pedir a minha opinião sobre Gurnah. Disse-lhe que falaria na contra-corrente, como anoto agora. Qual era importância do tema colonial, que estava no centro da obra deste escritor? – quis ela saber. Pessoalmente – disse-lhe - não sou um entusiasta das temáticas coloniais e/ou das perspectivas pós-coloniais em voga na Europa. Creio ser uma forma ocidental de ver a História. Nós subscrevemos a perspectiva da libertação: luta de libertação e não guerra colonial, independência versus descolonização, pós-independência e não pós-colonial. Os africanos veem a História numa óptica divergente ou até mesmo antagónica.
Para mim não é importante destacar a origem ou querer forçar uma certa nacionalidade, mas sim a sua obra. E mais: não vejo, por conseguinte, neste prémio, uma distinção a um escritor africano. Nem sequer falo do facto de ele ser mestiço e não ver nisso um impedimento para o considerarem britânico. Coibo-me até de interrogar: será por essa razão (o facto de ele ser mestiço) que o querem forçosamente tanzaniano? Ele é britânico. Escreveu sempre no Reino Unido, foi lá publicado e consagrado. Na Tanzania ninguém o conhece e nem sequer é lá editado.
Vi, aliás, algures referido que depois de Wole Soyinka (Nobel em 1986) ele era o segundo escritor africano negro a ganhar o prémio. Outro disparate. Abdulrazak Gurnah não é negro. Não me parece sequer que isso seja importante, no caso. Nem creio ter sido esse o critério. Premiou a obra. A Academia, caso quisesse outorgar a láurea a um escritor negro africano, cuja escrita fosse de raiz marcadamente africana, tinha, quanto a mim, duas possibilidades: ou dar o prémio ao queniano e veterano Ngugi wa Thiong´o (eterno candidato) ou premiar Chimamanda Adije Ngozi, autora nigeriana, das mais brilhantes da nova literatura africana.
Pergunto-me, agora e a terminar, sem sequer fazer chacota: passa mesmo pela cabeça de alguém considerar Freddie Mercury – que é, curiosamente, o meu mais favorito cantor -, nascido também em Zanzibar, justamente dois anos antes de Abdulrazak Gurnah, um cantor tanzaniano?
Maputo, 7 de Outubro de 2021
Falar da vida e obra de Sua Eminência O Cardeal Dom Alexandre José Maria dos Santos é, e será sempre um exercício que exige elevada capacidade de abstração para narrar todo um percurso e uma trajectória (caracterizados por suas incansáveis lutas, suas vitórias e porque não suas derrotas), e todos eventos que caracterizaram a odisseia religiosa, educacional e humanística desta que é uma figura incontornável na história do nosso vasto Moçambique. Para não pecar por soberba, e não perder de vista o objectivo deste texto de agradecimento, enaltecimento e despedida, focar-me-ei apenas no cerne - Um Homem ao serviço de muitas causas.
A Época Medieval é cronologicamente considerada o período mais longo da História da Humanidade (com mais de 1000 anos). Período este que viu florescer o surgimento das primeiras Universidades no mundo. Nesta época, a Filosofia e a Teologia viveram de forma única a rivalidade entre a fé religiosa e a razão científica; um conflito que opunha a religião à ciência e desafiava a cada instante a tentativas de conciliação e harmonização destes dois domínios do saber sem necessariamente anulá-los, numa fórmula traduzida na fé alicerçada na razão e, na razão que ajudaria a perceber a fé. (Intellectus quaerens fidem, et fides quarens intellectum.
Um dos mais brilhantes e notáveis pensadores da época em alusão foi São Tomás de Aquino - (figura que desempenhara tremenda influência na cosmovisão teológica e educação de Sua Eminência O Senhor Cardeal Dom Alexandre), que durante o seu percurso académico foi instruído por Alexandre Magno (Ou Alexandre o Grande). Curiosamente, o nome Alexandre, mestre de Tomás de Aquino é o nome de baptismo do Senhor Cardeal - Aproximações e coincidências que corroboram para ideia da grandeza do nome em referência.
De certo, nestas breves linhas será complicado trazer o espelho dos 103 anos em que o Cardeal viveu e fez viver, disseminando a fé, espalhando a esperança, semeando amor, educando o seu povo e proliferando ensinamentos. E nesses 103 anos teve o prazer de colher os primeiros frutos da sua incansável luta por uma sociedade mais capaz, mais justa e intelectualmente emancipada. E são esses frutos que devem se encarregar de assegurar e alargar o escopo do outrora iniciado.
Dom Alexandre foi muito mais do que uma figura religiosa e eclesiástica destacada, e comprometida na causa do bem estar social, do crescimento, da coesão no seio da Igreja Católica e do catolicismo em Moçambique, do Ecumenismo vibrante e da difusão da mensagem de Deus por todo o lado e em várias línguas. Para ele a fé tinha o poder de quebrar barreiras e unir povos (sejam eles considerados civilizados ou indígenas), e para isso as línguas nativas serviram de veículo e ferramenta estratégica de penetração e evangelização nas comunidades.
Foi um incansável peregrino da paz; astuto e apaixonado amante pela ideia de uma educação para todos e em todos níveis. Sua filosofia e ideia transformadora era clara – somente investindo mais e expandindo a educação se poderia criar bases sólidas para emancipar e desenvolver a nação, e consequentemente sonhar com um Moçambique mais inclusivo e mais próspero. Daí a sua luta assaz contra a pobreza absoluta e o seu compromisso vincado com a formação sistemática do Homem.
Sua grandeza transcende a imagem que muitos de nós temos – Patriarca da Igreja, primeiro Sacerdote e Bispo moçambicano. Na verdade Dom Alexandre foi um cultor, um educador visionário e um humanista douto com visão ampla da realidade do país e com cega convicção de que a educação do homem conduziria à libertação e à emancipação das mentes dos moçambicanos.
Dos vários momentos de partilha, fossem eles na Universidade, na Igreja e nos Seminários bem como em eventos vários públicos e privados, algo deliberadamente se repetia, entre a preocupação presente e os sonhos futuros: o paradoxo entre a riqueza do país e a incapacidade de transformar essa riqueza em algo útil para os moçambicanos. Segundo ele, Moçambique não é um país pobre; muito pelo contrário, é muito rico e mal explorado. O problema reside na falta de preparo e no défice enorme de conhecimento e precisa de mentes para transformar sua riqueza no bem-estar de todos.
As lentes visionárias do futuro, a crença na mudança de paradigma social, económico e educacional, e a transversalidade primeiro do seu pensamento, e depois da sua acção fizeram de Dom Alexandre José Maria dos Santos uma das figuras de Moçambique Contemporâneo de maior destaque, com projectos e obras transgeracionais que vão desde a formação de Padres dentro e fora do país, passando pela intermediação do conflito entre a FRELIMO e a RENAMO que culminou com a assinatura dos Acordos Gerais de Paz (1992), à formação de vários quadros superiores em várias áreas e domínios do saber.
Dom Alexandre, fora um dos mais sagazes impulsionadores das artes liberais e ciências do espírito no país, e desafiou centenas de jovens estudantes universitários e seminaristas (fazendo uso de ferramentas éticas, teológicas, filosóficas, e humanísticas) a pensarem com liberdade intelectual, e de forma crítica e analítica contribuírem para edificação de um Moçambique melhor. Fora um cultor do saber Ser, saber Estar e saber Fazer. Fora acima de tudo alguém muito preocupado com as questões éticas e com a dimensão da dignidade humana– ditames estes herdados da Filosofia Escolástico-Medieval de São Tomás de Aquino.
E é sobre estes e outros feitos de Sua Eminência O Cardeal Dom Alexandre, que nós, a geração do hoje devemos assentar a nossa reflexão e acção. Replicar vivamente sobre as gerações vindouras e incutir a necessidade permanente de pensar no Outro; Uma reflexão centrada no homem concreto como um fim e não como um meio. Viver e ensinar a criação de modalidades e estratégias de desenvolvimento do que fora iniciado por Dom Alexandre.
A coragem para iniciar novos e ambiciosos projectos, a ideia viva e prática do altruísmo, o espírito de criar e buscar novas realidades, e o desejo de ver um país mais educado, desenvolvido e próspero são algumas das licções práticas que Sua Eminência o Cardeal Dom Alexandre nos deixa. Foi mais de um século de um Homem talhado para a vida do bem estar do próximo. Saibamos viver e honrar os seus feitos, os seus ensinamentos e imortalizar sua obra fazendo do nosso país uma referência no rendezvous civilizacional.
Obrigado e até sempre Cardeal Dom Alexandre
Por: Hélio Guiliche (Filósofo)
Setembro tipifica os virginianos marcados pela objectividade e organização. Os que, de forma incessante, revisitam a perfeição. Este tem sido o apanágio no mês de todos os recomeços. Coincidentemente, o mês em que líderes das lutas de libertação nas colónias portuguesas, em África, viram a luz do mundo. Samora Machel de Moçambique, Agostinho Neto de Angola, e Amílcar Cabral da Guiné-Bissau. A estes virginianos, se junta o filósofo e educador Paulo Freire, brasileiro, porém, com um coração e uma intelectualidade espalhada pelos países, falsamente assumidos, como falantes da língua portuguesa.
Paulo Freire, o pedagogo brasileiro, e que se revestiu de utopias para a revolução anticolonial, envolveu-se, de forma profunda, no processo de descolonização das colónias portuguesas, estudando profundamente a gestação desses movimentos de libertação e, mais importante, teorizando sobre esses processos políticos e pedagógicos que se estabeleceram na década 60 e 70.
Paulo Freire capitalizou a experiência de ter convivido com os povos da Guiné-Bissau; por um lado, por ter estudado todas as obras de Amílcar Cabral e, por outro lado, por ter tido contacto directo ou indirecto com outros revolucionários da época. Existem algumas evidências de sua passagem por Moçambique e, em particular, por ter lido e abordado o posicionamento humanista de Eduardo Mondlane e, igualmente, desfrutado da visão política, acção militar do MPLA e desse romantismo poético de Agostinho Neto.
Ainda neste emaranhado de coincidências, não nos equivocamos sobre a forma como estas lideranças, incluindo o próprio Paulo Freire, inspiraram-se e foram influenciadas por Frantz Fanon, o psiquiatra, filósofo e militante anticolonial da ilha Martinica; autor das obras “Os Condenados da Terra” (1961) e “Pele Negra, Máscaras Brancas” (1952), e que marcou gerações de activistas de direitos civis.
Fanon foi crítico do momento histórico colonial, dos processos de alienação e da presença colonial nos países africanos. Adoptou o título de alienação e liberdade ou patologias da liberdade, para se referir a inevitável necessidade da libertação de África. Essa seria a única forma de afirmação das identidades e dos ideias da emancipação. Verdade que Fanon era radical. Aliás, como se transformaram em radicais os movimentos negros fora do continente africano. Fanon estava seguro das formas impostas pelo colonialismo, as suas subjectividades e como usaria o conhecimento, e a própria cultura, como elementos que perpetuariam a presença colonial e criariam divisões entre a sociedade africana. Para ele esta actuação subjectiva conduziria, inclusivamente, a perpetuação desse colonialismo muito para além das independências, se a leitura correcta não fosse dimensionada.
Paulo Freire, embebido de uma postura mais latina, enraizado na vivência brasileira, incorporou inúmeras destas reflexões de Fanon e, sobretudo, dos movimentos da negritude, que começaram por surgir nas Antilhas, no próprio Brasil e nos EUA, fundamentalmente. O movimento da negritude permitia a revalorização da herança ancestral africana e contribua para que o negro tivesse uma auto-imagem positiva de si próprio, para além de propiciar maior visibilidade as suas acções e teorias.
Paulo Freire explora este momento e as experiências de sua interacção com os líderes africanos e retracta de forma inspiradora, nas suas principais obras, nomeadamente, “Educação como prática da Liberdade” (1967), e “Pedagogia do Oprimido” (1968). Convenhamos que Paulo Freire poderia ser indexado como um pan-africanista que ressurgia desse sentimento de solidariedade e consciência de uma origem comum entre os negros do Caribe e dos Estados Unidos e que lutavam contra a violenta segregação racial.
No seu livro “Pedagogia do Oprimido”, que é considerado como o terceiro livro mais citado em publicações académicas de ciências sociais no mundo, Freire revela, de forma inequívoca, o seu entendimento profundo sobre a objectividade e subjectividade desse movimento protonacionalista ou nacionalista, alicerçado na educação como factor dinamizador, assente na cultura como o alicerce que dinamizaria e engendraria uma nova fórmula de revolução, de libertação do povo e de transformação dos países africanos.
Nesta condição, e concomitantemente, Paulo Freire transformou-se, ele próprio, no grande teórico das experiências educativas das regiões libertadas da guerra colonial e modernizou, inclusivamente, a sua estrutura conceptual. Esta é a maior contribuição que, eventualmente, deu aos movimentos de libertação. Portanto, na sua interpretação, os processos de libertação e emancipação dos povos e países africanos, estes não passariam apenas pela via de acção e combate armado, mas, e sobretudo, por uma visão sobre a educação e cultura como imperativos e elementos indissociáveis.
Paulo Freire advogava, na sua teorização, uma educação que libertasse corações e mentes, e que colocasse aquele que aprende como sujeito produtor do próprio conhecimento, contrariando métodos mais retrógrados e que induziam, apenas, a repetição infinita de enunciados. Parece ponto assente que colocar o educando no centro do próprio ensino configurava a práxis que respaldava os programas de alfabetização dos guerreiros e dos jovens recrutados ou que aderiam a luta. Eventualmente, pelas teorias de Freire, estas práticas educativas e revolucionárias se converteram na base dos programas de alfabetização de adultos, quer no Brasil, como nos nossos países que adoptaram Freire como um orientador educacional de excelência.
Neste centenário, revemos a relação que Paulo Freire estabeleceu com Amílcar Cabral. Esse líder marxista e que, de acordo com Freire, fizera uma leitura africanizada de Marx, para arquitectar a dimensão e visão da luta de libertação anticolonial que conduzia. Ambos defendiam que não existia ninguém mais culto do que o outro, pois, as culturas eram paralelas, distintas e que se complementavam na vida social e cultural.
Nos nexos estabelecidos entre os dois pedagogos e libertadores, destacamos a avaliação negativa que acreditavam estar patente nos modelos e práticas coloniais de educação, porque o povo não deveria apenas compreender, abstractamente, a interacção das forças por detrás do desenvolvimento da sociedade, mas, antes, deveria formar uma pátria anticolonial, colocando a resistência numa espécie de expressão cultural.
Cultura em Cabral, Freire até em Fanon era, então, um denominador comum e dos mais importantes, quer na luta como na formação dos guerreiros. Seria impossível combater a presença colonial, renegando os valores culturais e não permitindo a aculturação das práticas sociais existentes.
Esta interacção e trajectória de Paulo Freire, junto dos líderes revolucionários africanos, ficará eternamente associada ao desenvolvimento teórico dos programas de educação nos nossos países. Deste modo, celebrar o seu centenário equivale a ressignificar a educação no século XXI, mesmo considerando as vicissitudes e os graves problemas estruturais, equidade e de auto-estima. Recordá-lo, neste centenário, parece ser obrigatório, proporcional e muito apropriado. É, igualmente, oportuno recordar as lições mais importantes como a de que “o educador se eterniza em cada ser que educa” ou que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para a sua produção”.
Como defensor da descolonização e da reafirmação determinista e criativa, as teorias educativas de Freire continuam a fazer sentido, sobretudo, quando argumenta que deveremos formar para a autonomia. Eventualmente, esse é seu maior legado. Os nossos países vivem ancorados em métodos ortodoxos e pouco evolutivos. A educação continua refém da ausência de investimentos e os professores cada vez menos valorizados e sem auto-estima.
Nestes tempos que se esfacelam os fundamentos de perspectivas de novos pactos em favor de novos entendimentos, e diante da crise na educação, um novo contracto social mais equitativo e abrangente será um marco referencial fundamental para se virar a história da consolidação das nossas independências.
Freire, Machel, Neto e Cabral, como testemunhas de um tempo, ainda podem ser lidos como um libelo contra o esquecimento, alheamento insensível para os fundamentos da libertação e moralização da sociedade. Que neste seu centenário, tão envolto em controvérsia no seu próprio Brasil, Paulo Freire possa voltar a ser fonte de inspiração que auxilie na união de esforços, recursos e talentos para enfrentarmos a batalha por um lugar ao sol e no trilho do progresso e desenvolvimento. (X)