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quinta-feira, 01 outubro 2020 08:26

As cartas da vida da Dona Lili

A ilha dos espíritos celebrou o 202º aniversário. Clausurada, sem alaridos e nem hosanas. Uma comemoração, quase, esquecida e melancólica, com silêncios ensurdecedores, sem espaços e recantos engalanados. O maior convidado foi, apenas, o tempo. Esse tempo infinito que contempla, estarrecido, noites e luares misteriosos, auroras endiabradas, crepúsculos de mil cores e, os ventos que acenam mudanças políticas e climáticas.

 

Faltou tufo e fraternidade insular. Até o sol, enfraquecido, foi insuficiente para recriar o cruzamento milenar de sabores e sons. A torre de São Miguel não parecia, nem de longe e muito menos de perto, o espaço de maior dimensão multicultural da costa moçambicana. Na ausência de festividades, até os toques culinários do sirissiri e do lumino, viraram insossos. Nesta celebração carente, faltaram, curioso, até os políticos e suas ocas veleidades. Dois anos antes, eles quase afundaram a ilha porque era conveniente comemorar.

 

Imaginei como seria o diálogo, por estes dias, com a Dona Lili. O que será que ela diria sobre esta efeméride e sobre a ilha de Moçambique? Falaríamos sobre a terra de Moisés, filho de Mbiki, ou Mussa Bin Bique, tantos outros assuntos curriculares e marginais, que dão alento a alma e ao espírito Nharsa. A dona Lili, do clã Tivane, faz parte de um grupo de escritoras de cartas. Um grupo que já foi expressivo. Agora agoniza. Os escritores de cartas têm a mesma origem, amor pelo próximo. Começam como um hobby e, depois, ganham gosto. É o analfabetismo das maiorias que valoriza o conhecimento, as habilidades dos dedos e da tinta.

 

Escritores de cartas, salvo raras excepções, são confidentes muito especiais e de extrema confiança. Pessoas que escutam com ouvidos de padres e espírito confessionário. Depois de discutidos os contextos e passadas as confissões, estas jamais são reveladas para quem quer que seja. Espécie de cofre-forte. Estes escritores, preferencialmente, mulheres, transcrevem para o papel centenas de segredos, as novidades familiares, rabiscam as alegrias e os nascimentos dos novos membros, descrevem, enfim, as novas cabeças do rebanho que engrandecem as fortunas, falam das colheitas, pragas e enfermidades. Mas, estas cartas suavizam, também, as tristezas da dor e do luto dos vizinhos e membros da aldeia.

 

As cartas não representavam, apenas, uma ligação mecânica entre quem quer transmitir episódios e factos, pois, transportam e estabelecem uma relação de fraternidade confidencial entre os correspondidos e seus entes distanciados. Dona Lili, minha escritora favorita de cartas, lá das bandas de Chicumbane, desde o longínquo Maio de 1933, escreveu milhares de cartas. Perdeu a conta e as memórias. Não sabe qual delas foi a melhor ou a menos inconveniente. Até para os desterrados na Ilha escreveu. Por isso, eu queria mesmo saber que carta ela escreveria, por esta ocasião dos 202 anos.

 

Imagino a Dona Lili escondida no argumento de que os primeiros correios de Moçambique foram estabelecidos na ilha, em 1811, depois do Sultão de Zanzibar ter perdido o controlo sobre o local. Não poderia ser diferente, pois, esta foi a primeira grande cidade moçambicana. Para a ilha e da ilha, esse histórico espaço de confluências culturais, deu aso a centenas de milhares de cartas. Umas para destinos mais próximos, outras, para lá das linhas do horizonte. Então, a Ilha deveria ser, igualmente, um local favorito e predilecto para escritores de cartas, metrópoles e ultramares.

 

Acredito que dona Lili começaria por felicitar a resiliência desse povo e dessa porção de terra que resiste às ondas mais severas e aos ventos mais devastadores. Os ilhéus precisam de se manter distanciados de qualquer conflito e viver a paz que Deus lhes proporciona. Depois, ela desejaria que mulher nenhuma passasse pelos horrores da guerra e da insurgência. Nenhum filho deveria tirar a vida de nenhuma mãe.

 

Os motivos para contar episódios e facetas insulares, não devem escassear. Vão desde as cartas que abordam política, tortura e desterro, velas de barcos que se furaram pela força dos ventos, peixes assustadores que afundaram embarcações. As mais dolorosas seriam as que descrevem o sofrimento de pescadores que se fizeram ao mar, e jamais regressaram da faina. Suas almas ficavam, eternamente, nas ondas verdes desse mar que nutre sonhos e canções.

 

Dona Lili cresceu no meio de livros. Seus pais eram ávidos leitores e tinham, sempre, um pedaço de papel em suas mãos, comentando um com o outro, o que haviam lido, ou estavam prontos para ler para os seus filhos. Conta que, lá pelas bandas de Banhane, muitas das mulheres, cujos maridos trabalhavam no Rand, não sabiam ler e escrever. As notícias dos seus maridos só chegavam por carta. Foi assim que começou a escrever para ajudar e nunca mais parou.

 

A paixão pela leitura tornou a Dona Lili, não apenas numa leitora voraz, mas, também, numa activista pela causa. Celebra quando vê pessoas lendo livros, não importam os espaços, e estranha a ausência de bibliotecas públicas, em boa parte das instituições de ensino e outras. Se surpreende quando pessoas, até influentes, afirmam, com certo orgulho, não se lembrar da última vez que leram um livro, por mais pequeno que este seja.

 

Hoje, em meio à pandemia, os escritores de cartas quase ficaram privados do exercício da sua profissão favorita. Na realidade, a chegada dos celulares e dos meios de comunicação massiva, quase silenciou esta actividade. Ainda assim, Dona Lili escreve cartas. Tem um conjunto de clientes fiéis e devotos. Confiam mais nas suas cartas do que em qualquer outro meio à disposição.

 

Equivocado pensar que a modernidade os derrotou. Continuam activos e presentes. Diferentes da ilha e dos seus aniversários públicos esquecidos. Os escritores de cartas sobrevivem indiferentes ao COVID e a todas as pandemias. Nosso monólogo terminou com as acusações a modernidade. Sofremos com os desacertos e a intranquilidade.

 

Eu quis terminar este momento, resumindo o livro “Amada” da premiada escritora Toni Morrison, onde a escrava fugitiva Sethe, mata a sua filha, para que ela não sofra, na vida, e nem tenha a mesma sorte que a sua mãe, esquecida nas celebrações. Privada de liberdade e paz. Esta paz que tarda acontecer e, também, nos faz reféns do prazer de ler e desfrutar de cada canto deste vasto país. (X)

quarta-feira, 30 setembro 2020 08:10

Os "Peregrinos da Pátria"

Pertencer a um partido político da oposição em quando se é  funcionário público, na República de Moçambique, é o mesmo que assinar um tratado oficial de traição. Principalmente, quando se é residente naqueles distritos onde as vias de acesso são difíceis e problemáticas. Onde a consciência política ainda é primitiva e o pensar diferente é motivo para tornar qualquer cidadão em búfalo ou elefante fora da reserva.

 

Embora não seja apenas nos distritos onde existem os peregrinos da Pátria (aqueles que pensam que podem mudar Moçambique estando doutro lado da bandeira e das convicções políticas, sociais e culturais). Os Peregrinos da Pátria muitos deles vivem em constante medo e na linha do tiro. Mas eles nunca desistem, porque sabem o que querem, pretendem e defendem.

 

É como Vasco Choe; um brilhante professor que já corre nisso há 14 anos. Um corajoso que mesmo sabendo que a sua vida corre perigo entende que a pátria precisa de bons peregrinos. Choe já convive com os lobos há anos. Mesmo quando é dado ordens de transferência para os confins de Chinde, consegue andar em prontidão combativa.

 

A situação que vive Vasco Choe é mais uma das várias que acontecem todos os dias em Moçambique, na África e no Mundo. Onde as pessoas são perseguidas e aniquiladas. A diferença é que Choe é um peregrino patriota, disposto a ir até às últimas consequências, defendendo suas convicções, mas de uma forma ética.

 

É comum ver jovens que perdem a vida porque decidiram ser heróis das suas comunidades. Que perdem emprego porque acreditam que podem fazer melhor de quem detém o poder actualmente. As nossas diferenças nos tornam eternos Peregrinos da Pátria. Foi assim com Jesus Cristo, Martin Luter King Jr, Abraham Lincoln, Patrice Lumumba, Nelson Mandela, Steve Biko, Filipe Samuel Magaia, Urias Simango, Joana Simeão, Mahamudo Amurane, Ibraimo Mbaruco, a senhora baleada em Cabo Delgado e tantos outros.

 

As figuras acima mencionadas viviam como Vasco Choe; vítima das raízes e embondeiros da intolerância política, social e cultural. As nossas sociedades neocolonizaram-se e precisam de novos lutadores pela liberdade completa e rejuvenescida.  

 

O Peregrino da Pátria, Vasco Choe, é um dos vários cidadãos que sofre a ira da ditadura não institucionalizada. Um cidadão que é barrado ao direito à palavra nas visitas presidenciais, num intuito de não revelar a podridão que assola as estruturas governamentais naquele distrito insolar. Em 2019, durante o período eleitoral, Choe candidatou-se a deputado através de uma lista de um partido da oposição, todavia não conseguiu um lugar na dita "escolinha do barulho". 

 

Entretanto, na campanha eleitoral, o Peregrino da Pátria, Vasco Choe, conseguiu mobilizar outros Peregrinos da Pátria com influência política, económica e social a nível do distrito; tudo isso acabou lhe custando uma transferência para um povoado longínquo onde terá trabalhado nos seus primeiros cinco anos de professorado. 

 

A decisão de transferência visava aniquilá-lo profissional e fisicamente, tudo por ser mais um Peregrino da Pátria – eterno lutador pela justiça social, igualdade, desenvolvimento e amante da verdade. No entanto, Choe conseguiu contornar a as espinhosas políticas, ficando atento para os próximos episódios da novela.

 

Texto inspirado em um facto real. O personagem citado no texto vive, actualmente, o cenário relatado.

quarta-feira, 30 setembro 2020 05:56

O crime do 'Apóstolo' Adelino

Quem já leu a obra 'O Crime do Padre Amaro', de Eça de Queiroz?  Eça de Queiroz conta a história do romance proibido entre o jovem padre Amaro, recém-chegado à cidade de Leiria, e a menina Amélia, a filha da dona da pensão onde o jovem sacerdote se hospedara. Uma paixão pecaminosa que resulta numa gravidez indesejada que acabou por matar a jovem donzela. Após a morte da Amélia, Amaro continuou padre noutra paróquia abençoando e perdoando sacrilégios alheios. 

 

Nesse clássico literário, Eça retrata a hipocrisia e a corrupção moral e ética do clero da santa igreja e da burguesia daquela época. 'O Crime do Padre Amaro' é uma obra oportuna quanto actual, tanto é que ainda inspira. No caso concreto, o 'Apóstolo' Adelino vem fornicando as reservas da aposentadoria dos moçambicanos, numa relação amorosa e apaixonada religiosamente deverás condenável. Hoje, já viciado, chegou ao ponto de solicitar a compra de um bilhete de voo para a sua mulher para ir passear na baía de Pemba. Aliás, não era para o I-Ene-Esse-Esse comprar o bilhete apenas, era, também, para tratar de todas as demarches de reservas e marcações dos vôos como a sua querida madame merece. 

 

Nem era falta de dinheiro. Era arrogância mesmo. A ideia do 'Apóstolo' Adelino era mostrar a sua apaixonada esposa - como sempre o fez, acredito - que ele sabe f*der o dinheiro dos suados e por demais coitados cidadãos. Era para mostrar que ele não brinca em serviço: em casa assim como no trabalho, no quarto assim como no gabinete, na cama assim como na secretária, com bilau assim como com carimbo da instituição. Mostrar que ele manda. Mostrar que, quando ele está em cima, as pessoas gemem e obedecem. 

 

O 'Santo' Adelino pertence a uma burguesia moral e eticamente chula. Uma élite com verminose parasitária. Um conluio de sanguessugas. Um protótipo de insurgentes civilizados e urbanos. Um feitio de Nhongos engravatados e perfumados. Uns gatunos armados em bonacheirões. 

 

Como é que um empresário do calibre do Adelino 'Book' (que mereceu confiança dos seus pares para os representar numa instituição séria) não consegue comprar um bilhete à Pemba para a sua amada esposa?! Ademais, depois de recusada a sua pretensão, como é que conseguiu o bilhete?! Não era mais fácil pedir emprestado aos seus colegas empresários?! Lá no partido não há quem o pudesse emprestar?!

 

O que mais irrita é que o Adelino ainda insiste em querer nos convencer que ele continua santo e imaculado, e que tudo não passa de uma tramóia da sociedade civil. Insiste em querer nos convencer que ele é o discípulo de Jesus Cristo que, por mera inveja mundana, foi afastado dos salmos da Bíblia Sagrada. E, pior, há quem acredita na sua pureza. Por isso, o crime do 'Apóstolo' Adelino vai continuar órfão. Desta vez, foi um coito interrompido, mas não é o fim deste infame estupro coletivo. Esta farra é antiga com provas bastantes... e vai continuar. Nem sei por que é que não nos deixam gerirmos sozinhos as nossas pensões! Não sei que lógica é essa de colocar o patrão a gerir o dinheiro de reforma dos seus empregados!

 

Quem se importa? Ninguém. Não me espanta que, tal como Amaro, o todo santo e imaculado Adelino siga incólume na pseudo-gestão do dinheiro dos seus humildes compatriotas e contemporâneos. Não me surpreende que os contribuintes morram estuprados e o Adelino continue firme nos seus degraus rumo à presidência do cofre. Se a falsidade fosse líquida, o Adelino 'Livro' morria asfixiado no seu próprio suor. Se ao menos houvesse Prémio Nobel da Cara-de-pau!

 

- Co'licença!

terça-feira, 29 setembro 2020 07:09

Este amor platónico dá-me cabo

Sempre que passo por aqui nas manhãs, em obediência a rotina das minhas caminhadas de manutenção física, ela está a varrer o quintal, mais ou menos às mesmas horas. A casa dela fica ao longo da “Rua branca”, que sai do Handling e termina no Posto Médico. É um troço pouco movimentado, sobretudo a esta hora em que as pessoas ainda se preparam para sair e enfrentar o desafio da vida. Mesmo assim, depois de virem cá fora, as coisas não vão alterar muito porque a cidade de Inhambane não tem muito para onde ir.

 

É uma mulher que pode estar entre os cinquenta e os sessenta, mas ainda vibra. Sinto isso na forma como me olha. Há qualquer coisa naquele coração, mas eu tenho medo de avançar para perceber de perto  o enigma. Se calhar é uma ilusão de óptica da minha parte. Provavelmente ela nem me vê como nada. E se na verdade me acha opaco, então está absolutamente protegida pela razão. Mas eu não deixo de alimentar a esperança que me habita desde o primeiro dia que os meus sentimentos mudaram de frequência, ao entrar em contacto com aquele ponto luminoso.

 

É ela que comanda a minha mente ao raiar do dia. Penso nela, logo salto da cama. O meu corpo inteiro entra em consonância consigo mesmo, e mesmo antes de beber a minha mistura de beterrada e cenoura e banana para me energizar, estou apto. Estou insuflado do sonho de ver alguém que me arrebata competamente. Então o meu dia começa nas nuvens. Ou seja, tenho algo importante em que pensar, mesmo que essa sensação seja boba. O que importa é abrir o leito da imaginação e deixar o rio correr livremente. E o rio é a minha paixão.

 

Não conheço o nome dela, e eu nunca quis sabê-lo por via de terceiros. Isso pode esvaziar todo este enredo que vou construindo não propriamente de forma desinteressada, mas sem pressa, como o faço com os livros que escrevo na minha fascinante solidão. Posso esperar o tempo que for necessário, até porque estou preparado para perder algo que nunca ganhei. Algo que me atrai sem que eu saiba o que vai dentro daquela cintilação. O pior é ela um dia dar-me um beijo, e tornar-se, a partir daí, na minha futura ex-companheira. É esse o medo que tenho. O medo de magoar. De voltar a magoar uma mulher.

 

Ontem  passei novamente daquele espaço que se tornou especial na minha vida, ao ritmo da passada habitual e ela já estava ali, como sempre, desde o primeiro dia que a vi. Desta vez não está a varrer, e tudo leva a crer que vai sair, pois no lugar da capulana, veste uma saia florida que vai até um pouco abaixo dos joelhos, traja uma blusa amarela, e as duas peças entram em perfeita combinação. O cabelo grisalho com tranças finas e brincos de ouro e sapatinhos rasos de cabedal, dão-lhe o estatuto de celebridade. Ela é uma estrela.

 

Cheguei a pensar que ficou ali a minha espera, antes de seguir seu caminho, para que a visse naquelas vestes. Tentei fazer um esforço para não dizer nada, mas o brilho era demais. Muito forte por demais.  E eu falei assim para ela, a senhora é muito bonita! E ela respondeu-me assim, você também!

 

Fiz-lhe um thxau com a mão, e ela retribuiu-me estalando os lábios dela em forma de beijo. E agora!

segunda-feira, 28 setembro 2020 06:50

Os cães do acampamento

Se há uma coisa que eu presto muita atenção quando chego num estaleiro de obra são os cães que andam por ali. Normalmente, são cães vadios que abundam as lixeiras da estalagem. São cães que engordam sorvendo do bom e do melhor que a lixeira pode dar. É regra: onde há obra em construção há acampamento, onde há acampamento há gente, onde há gente há comida, onde há comida há resto, onde há resto há lixeira e onde há lixeira há cão... cães, na verdade.
 
 
Entre os cães que abundam às lixeiras dos acampamentos há os que lhes cai a sorte de serem adotados por um dos operários e passa a viver lá dentro. É lhe atribuído um nome qualquer e vive lá dentro a comer lixo de luxo. Passa a comer lixo de primeira antes de ser deitado na lixeira pública. E digo-vos: esse tipo de cão é muito bravo. É muito mau. Quer morder todos que por ali passam. Quer mostrar serviço. Quer mostrar que a sua adopção foi uma ideia bastante acertada. Ladra muito, e quando não há motivo para ladrar, inventa. Quando não há inimigos, os cria. Morde de qualquer maneira. Vira o expoente máximo do excesso de zelo. Um cão muito perigoso. Raiva é com ele.
 
 
Mas a parte mais triste do filme do cão do acampamento é o seu futuro. É um futuro mais infeliz que o seu passado de vira-lata. Tem um fim triste e ele sabe disso. Ele sabe que a sua vida de cachorro chique tem dias contados, acaba com o fim da obra. O seu cronômetro é o decurso da obra. O seu calendário está escrito em letras garrafais 'prazo da obra' e pendurado na entrada do estaleiro. 
 
 
A verdade é que ninguém leva um cão do acampamento para casa ou para outro acampamento. Cada acampamento com os seus cães, assim como - só por simples analogia - cada governo com os seus puxa-sacos, se é que me faço entender. A um cão que se voluntariou para ser cão ninguém quer dar comida do seu bolso. No acampamento a comida é da empresa e no governo é do Estado. Por isso, com dinheiro alheio, qualquer um pode criar um 'dogui'. Não dói. 
 
 
Quando a obra termina e o estaleiro pré-moldado é removido, o cão volta à sua vida verdadeiramente de cão. E como as oportunidades não se avizinham, o cão 'fazido' vai morrer sem comer mais lixo de luxo de um acampamento de obra. Nunca mais. O mais triste é o fim daqueles cães das grandes empreitadas onde os estaleiros passam de um empreiteiro para o outro. As vezes os próximos inquilinos são predadores.
 
 
Quando eu trabalhava em Tete, houve um caso terrível. Estávamos a construir a primeira fase da mina de carvão da multinacional brasileira. Havia um estaleiro duma empresa sul-africana cuja lixeira era o maior restaurante canino da obra e que mais tarde passou para uma empresa filipina, e os cães viraram iguarias, sumiram. Foram saborosamente comidos. É assim mesmo: há inquilinos que comem cães dos inquilinos anteriores, assim como - mais uma vez só para exemplificar - há governos que matrecam lambe-botas dos governos anteriores sem dó nem piedade. Ser cão do acampamento não é brinquedo. Pois é, é caso para dizer 'se a obra anda, os cães não entram de férias'.
 
 
- Co'licença!

"Estamos a morrer a fome, papá Nyusi", gritou Florinda Gonçalves; uma mulher brava com uma fala revolucionária; lamentou em uma das línguas nacionais, Xichangana. "Nós temos coragem de falar com o governo sobre a caça furtiva", afirmou Florinda. 

 

Indo mais disse "aqui tem muita gente pobre, por isso é insulto para nós falarmos do que estão falar. Elefantes e girafas andam a fazer estragos e a matar pessoas. Pedimos ao papá Nyusi para que nos autorize a caçar animais de pequeno porte, porque aqui não há emprego e nem esperança de dias melhores".

 

Estávamos no povoado de Mucacaza, localizado a 101 km da vila-sede de Moamba, província de Maputo. Um lugar rodeado de fauna, flora e muita vida. Mucacaza tem 89 famílias equivalentes a 185 habitantes, conforme apuramos das autoridades locais.

 

Presente naquele local como caçador e contador de histórias de vida, eis que depois de uma longa viagem de carro em terra batida, cheguei a Mucacaza; a população a aguardava-nos ansiosamente para expôr as suas preocupações e fazer chegar a quem de direito. Com uma população jovem ensombrada pela busca de riqueza fácil nas reservas em redor de Mucacaza e na terra do rand. 

 

A juventude e as mulheres, cujas algumas são viúvas, por terem perdido os esposos, irmãos, amigos, filhos e vizinhos na selva atrás dos troféus dos animais como rinoceronte, elefante, leão e leopardo. Hoje com as medidas de conservação da fauna bravia endurecidas, os exímios caçadores de Mucacaza vivem dias tenebrosos e pedem socorro, porque as oportunidades segundo eles não aparecem.

 

Foi como Fernando Timba, residente de Mucacaza, repisou na mensagem para o papá Nyusi. "As pessoas vivem desenrascando devido à falta de condições. Aqui falta tudo. Vocês ficam satisfeitos quando vossos filhos não trabalham?" Questionou Timba. Acrescentando disse que “em Mucacaza não soubemos sobre os 20%, mesmo com as reservas em redor do povoado, e nas mesmas só trabalham estrangeiros”.

 

Carlitos Ntimane, um outro residente de Mucacaza disse que o elefante é o animal mais amado e acarinhado do que as pessoas. “Já perdemos muitas pessoas devido aos elefantes e há sete anos que procuramos explicações e socorro, mas ninguém nos apoia e nem nos respondem. Mais de 100 bois já morreram devido ao leão”.

 

Para os residentes de Mucacaza, as autoridades que velam pela conservação e governamentais só aparecem no povoado e não falam com ninguém e vão se embora. Por isso, para eles, enquanto filhos da pátria amada, precisam que o papá Nyusi, presidente da República de Moçambique, resolva a situação porque a fome não lhes faz raciocinar em prol da conservação ambiental, combate aos casamentos prematuros e muito menos às políticas de desenvolvimento propaladas pelo executivo de Maputo.

 

Em Mucacaza vive-se em situações de "Deus dará". Num contexto em que a única actividade rentável era e é a busca incessante pelo xibedjane. Mesmo próximo a barragem, o acesso à água é um martírio, aliada a falta de electricidade e os constantes riscos do conflito homem-fauna. Facto este que tem levado maior parte da população a retirar-se para vizinha África do Sul, onde alguns acabam tombando na saga da caça furtiva.

 

No povoado de Mucacaza, a mudança de consciência de que os tempos são outros e que existem leis que protegem as reservas parece ser um longo desafio, havendo vezes é que os caçadores furtivos são detidos na reserva e as autoridades, por medo de emboscadas da comunidade na transferência, transportam-lhes pelos helicópteros até a Vila.

 

Em Mucacaza existe uma escola primária completa em que maior parte dos alunos não chega a concluir a 7ª classe, porque devido às necessidades familiares, alguns alunos passam o tempo mudando de local em local em busca de melhores condições e sem seguir os procedimentos normais de transferência ou de mobilidade estudantil; facto este que, para alguns, acaba atingindo idades compreendidas entre 12 a 16 em classes como 3ª, 4ª ou 5ª classe, o que acaba desmotivando os mesmos de prosseguir com os estudos levando-os a enveredar pela caça furtiva ou outras actividades nebulosas. 

 

Texto elaborado no âmbito do trabalho jornalístico realizado em comunidades assoladas pela caça furtiva, nos distritos da zona sul de Moçambique.