Eu sei que vocês andam ocupados em gravar músicas para os vossos candidatos. Sei que fazem isso em nome dessa coisa estranha que se chama cidadania. Eu sei. Também sei que cada um escolhe o seu caminho. Eu sei de tudo isso.
Meus queridos músicos, eu não sei se isso de cantar “vivas, vivas” de boca aberta, à espera de um naco de pão, é mesmo essa coisa estranha chamada cidadania. Eu não sei se vale a pena fazer do estúdio um pequeno santuário para recolher míseros dízimos políticos e nem sei se a vossa língua, depois de tanto ser usada, ainda reconhecerá o sabor delicioso de uma fatia de um bolo que se chama honra.
A lista é longa de músicos que caíram num lodaçal de nada mesmo depois de terem usado a língua como tapete para diversos candidatos. Quantos músicos morreram de malária nos corredores do hospital central sem uma moeda para comprar uma rede que lhes pescasse a vida, quantos músicos morrem em silêncio e depois transformam os seus fãs em pais para custear uns metros de uma cova no cemitério? Os queridos candidatos, nessa altura, enviam comunicados de pesar e nada mais.
Vocês são os responsáveis pela vossa pobreza, vocês perpetuam a fome, a miséria e a desgraça... Não é por acaso que, hoje, a associação dos músicos virou um bar, não é por acaso que hoje vocês dependem de feriados para ter espectáculos e concertos. Não é por acaso que transformam a música, em períodos eleitorais, em um pequeno corredor que dá acesso à copa na qual ficam toalhas de mesa cheias de restos…
E amanhã, quando a campanha terminar, correrão atrás de banhos-marias dos nossos casamentos e aniversários, trocarão as ordens dos coordenadores da campanha pelas ordens feitas pelo dedo indicador dos padrinhos nos noivados e cantarão “vivas” de amor a casais que não conhecem: isso só para terem algumas moedinhas. E assim vão vivendo, meus queridos músicos.
E, amanhã, quando um manto de febre cobrir-vos o corpo, correrão para o povo mendigar moedinhas para comprar uma cápsula de paracetamol. Eu sei que amanhã aparecerão nas telas a dizer que esse país não considera os músicos e vão chamar nomes a empresários sem, no mínimo, mencionar os vossos queridos candidatos.
Em outros países, tão pobres como o nosso, quando chega o período eleitoral, os músicos vigiam as ideias dos candidatos sobre as suas ideias culturais, os músicos não ficam em estudos gravando louvores políticos, eles apertam os candidatos em debates e correm, à estalada, os candidatos que se esquecem que os músicos também são profissionais como os médicos, engenheiros e advogados.
Queridos músicos, desejo-vos uma boa campanha eleitoral. E espero, que amanhã, usem as vossas músicas para, também, cantarem as promessas que não serão cumpridas pelos vossos candidatos.
Há cinco anos, o meu primo perdia o braço na campanha eleitoral. Primo Silva estava pendurado numa camioneta com uma bandeira do seu partido. Ele que era desempregado, mas prometia emprego a outros desempregados, falava em programas de habitação e quando prometia estradas melhoradas e alcatroadas, o primo Silva escorregou e caiu da camioneta. E uma das rodas traseiras da camioneta passou por cima do seu braço direito. Era o começo de uma nova campanha.
Primo Silva foi carregado pelos seus companheiros e o seu braço, virado para o além, seguia de trás como uma pata partida de um cão. No hospital José Macamo, o primo Silva levou anos e anos contemplando o seu abraço rebelde que não obedecia aos seus movimentos. Ele levou anos para ser atendido, porque chegou com o abraço embrulhado na bandeira do seu partido e os médicos eram de um outro partido. Agradeço ao Dr. Ivan, que morreu ano passado, grande amigo, que em nome da nossa amizade passou por cima de todos os partidos e engessou o braço partido do meu primo em nome do partido.
Depois, o coordenador da campanha evacuou o primo Silva para a casa. Primo Silva, com uma pedra de gesso, chegou a casa com um braço, não conseguiu rodar a maçaneta da porta do quintal, ele que tinha dito que o seu partido ia abrir todas as portas do país. Arrastou-se com o defunto do seu braço, pingando milhares de dedos também mortos, para o interior de casa. A manga da camisa era um pequeno caixão e os botões serviam de parafusos que trancam os mortos na terra.
Depois teve de deixar de lutar pela democracia para lutar pelos gessos nos corredores de diversos hospitais; teve de trocar os panfletos do seu candidato por enormes papéis com fotografias do seu abraço. Era uma outra campanha que ele fazia. E até fazia promessas aos deuses, porque queria de volta o seu braço.
Hoje, o primo Silva, ali no bairro da Liberdade, tem um braço desprendido do seu corpo apesar de permanecer ali com ele, passa as tardes enxotando com insultos os putos do bairro que troçam dele “mano Silva braço de compasso”. Os putos riem-se dele. Primo Silva está neste momento na Liberdade à espera de um candidato que diga "vota em mim, vou trazer de volta o seu braço".
Confesso que fiquei de rosto rente à barriga quando vi a guita que os diversos partidos tiveram para a campanha eleitoral. Há muita guita neste país. Diga-se uma coisa: nós somos um país pobre, mas cheio de dinheiro. Um país sem grandes saídas, mas que sempre se vira quando o assunto é arranjar dinheiro para distribuir...
Nós somos um país pobre, mas cheio de dinheiro; a frase pode ser complicada, pode ser poética demais; se calhar podia dizer com todos os grumos de saliva: nós somos aquele bêbado que não deixa nada em sua casa, mas, aos fins-de-semana, varre contas e contas em todos os bares. Nós somos a riqueza mais pobre da nossa estupidez.
Só temos dinheiro para a campanha eleitoral. Não temos dinheiro para o professor que faz horas extras e ao fim do mês recebe notas de reclamações, não temos dinheiro para injectar e curar a magreza das contas bancárias dos médicos, não temos dinheiro para meter na algibeira do juiz que martela, todos os dias, a nossa justiça torta e com poucos pregos, não temos dinheiro para o polícia que arrasta a AKM carregada de ferrugem, na baixa da cidade, e assiste aos raptos de boca aberta.
Afinal, anda, nos corredores da campanha eleitoral, tanto dinheiro assim! Afinal, há tantos partidos assim? Eu conheço um tipo que sempre concorre às eleições, de cinco em cinco anos, abre um estaleiro novo no Chamanculo e tem um quintal cheio de carros. Esse fulano é presidente do partido, é também secretário-geral, é também tesoureiro, é também chefe de limpeza da sua sede (sua sede é uma mochila de costas cheia de papéis), é também presidente da liga juvenil composta só por ele próprio, é também membro único da liga da mulher, é também assessor jurídico e ocupa todas as pastas da assembleia geral composta só por ele próprio.
Esse tipo, este ano, teve uma boa guita, uma boa mola. Quando começar a campanha vai fazer o que já nos habituou ali no bairro: comprar pacotes de massa, canetas de feijão, umas caixas de cerveja e pôr os miúdos desempregados do bairro a marcharem com a única bandeira que ele usa há séculos desde que descobriu esse negócio de viver de campanhas. E depois vai pingar uns cartazes em algumas avenidas, estampar umas duas camisetas para ele e a esposa e aparecer na TV sem um mínimo de vergonha para dizer “as nossas delegações estão a trabalhar, vamos ganhar”. Eu acho que ele ainda está estonteado, pois nunca recebeu tanto dinheiro assim.
Infelizmente, em Moçambique, tudo que tem o nome campanha envolve muito dinheiro, muita guita mesmo. Quem nunca viu o mar de dinheiro que anda nas campanhas de vacinação que só terminam vacinando os salários gordos dos coordenadores provinciais sentados nos escritórios? A campanha nacional de combate ao HIV/SIDA, muitas vezes, combate a fome dos chefes, a campanha de combate à malária muitas vezes só serve para construir mansões de chefes no lugar de comprar redes mosquiteiras.
A campanha contra a corrupção só enche escritórios de relatórios e no fim de tudo a corrupção é que vence, pois, fica bem ao canto a rir-se por ter criado mais corruptos quando tentavam combatê-la. Tem sido sempre assim. E agora temos a campanha eleitoral, meu Deus. Tudo que é campanha tem muita guita, em Moçambique. Já agora, quem não se recorda da campanha nacional de vacinação contra a COVID-19 que só fez os chefes sorrir de felicidade e riqueza por detrás das máscaras? Tudo que é campanha tem muita guita…
Senhor Júlio Parruque, os negociadores de ruas e terrenos alheios estão de volta no bairro Matola Gare. Há uma rua que acaba de ser vendida, no bairro Matola Gare, ali nas complicadas azinhagas do quarteirão 06. Essa rua não tem um segundo de sossego, nunca há um mínimo esboceto de sorriso nos rostos das famílias que dependem dessa rua para terem acesso às suas casas. Essa rua foi improvisada depois de se vender uma rua principal.
A primeira negociata da rua, ano passado, foi enxotada pela presidente Calisto Cossa e os mercadores de ruas levaram sumiço num rufo: a rua ficou livre, a rua voltou a ser rua depois de ter sido tatuada como um quintal. E agora a rua foi novamente vendida. E os negociantes, com um olhar dardejado, respondem a qualquer rosto que lhes põe a vista em cima “Calisto Cossa já saiu, queixem onde quiserem”.
As estruturas conhecem essa rua, mas ninguém faz nada. Esta, de certeza, é a primeira, de várias ruas que ainda serão engolidas por este grupo. Há gente que já se prepara para ver mais ruas vendidas.
Essa rua, que foi vendida, é entrada e saída de diversas famílias, é uma rua que os mocinhos, carregados de cadeirinhas e mochilas, usam como caminho quando vão à escola lá nas bandas da linha férrea. Se calhar, senhor Júlio Parruque, a partir de amanhã teremos de pendurar uma pequena placa a dizer “isto já não é entrada, saída e nem caminho”. O comprador da rua, o segundo, já esteve no local, já viu a rua que será seu quintal nos próximos dias. E a frase de ordem ecoa aos estrondos nos ouvidos dessas famílias “Calisto Cossa já saiu, queixem onde quiserem”.
Senhor Júlio Parruque, na Matola Gare as ruas são vendidas aos molhos como legumes, outras famílias são arrancadas terrenos e existem outras que são obrigadas a assistir, sem nada a fazer, os seus terrenos sendo comidos por uma fita métrica desses ilustres negociantes. Neste exacto momento que escrevo este texto, senhor Júlio Parruque, há diversas famílias que se preparam para se colarem asas e voarem para terem acesso às suas residências.
Ninguém mexe nesse grupo, ninguém coloca um basta a esse grupo, ninguém tira o apetite por essa e várias ruas a esse grupo. Parece que ninguém tem força suficiente para parar esse grupo. Na Matola Gare, eram os ladrões que tiravam a tranquilidade de todos, mas agora é esse grupo que vai arrancando as ruas, esse grupo que vai transformando ruas em poços e minas de moedas.
Venderam uma rua, senhor Júlio Parruque. O senhor Calisto Cossa, de forma excelente e corajosa, tinha colocado um basta a esse grupo, mas o grupo ressurgiu e já anda, à socapa, a fazer inventários de ruas para vendê-las. O grupo desce, pé ante pé, a farejar ruas e terrenos para enriquecer. E, agora, vomita a todos na cara a frase “Calisto Cossa já saiu, queixem onde quiserem”.
O meu primeiro encontro com Nelson Saúte foi nas ruas poéticas dos meus antigos manuais escolares, ainda me recordo como se fosse hoje. Os meus manuais escolares, forrados de papel de jornal com rostos de mortos da necrologia, tinham no interior diversos versos de Nelson. O meu pai forrava os meus livros sem se importar com a pilha de mortos e pesadíssimos anúncios de adjudicações de contratos que carregava todos os dias para a sala de aulas.
Eu lia os poemas de Nelson numa gulodice que até hoje me impressiona. Depois de muitos dias de confiança, fui autorizado a carregar Nelson para a casa, em forma de livro, por bibliotecários da Associação dos Escritores Moçambicanos. “Maputo blues”, um livro belíssimo que me embasbacava de encanto a cada poema, porque eu, nos meus sonhos molhados e desmedidos de infância, queria também ser poeta e ser uma mítica figura que vivia em livros. Ainda oiço cada trepitar de todos os poemas desse livro neste momento.
E depois, de tempos a tempos, via Nelson entrando sem licença na casa dos meus pais pela televisão. Eu sorria, porque sabia que, em meu quarto, tinha também metade de Nelson escondido no seu jeito de poeta em meus manuais. Ainda tive as belíssimas cartas do “Escrevedor de destinos” em meu quarto, mas a minha pacata veia poética, que nessa altura estava verde, ficava amadurecida quando sentia o sal do “Maputo blues”.
Nelson Saúte, depois de um tempo decidiu lançar, pela sua editora, Marambique, o belíssimo livro de Noémia de Sousa “Sangue Negro”. E eu, comboiado pelos excelentes declamadores do Arrabenta Xithokozelo, estive no evento a dizer um poema de Noémia de Sousa. Nelson estava lá: elegante, conversador e com uma sensibilidade artística impressionante. Depois do lançamento, ainda tive a ousadia de esticar a minha mãozinha a Nelson. E ele olhou para mim uma data de tempo, não me apertou a mão, estava certíssimo, eu ainda era um miúdo; Nelson fez-me, apenas, umas festinhas ternas na minha cabeça despenteada enquanto ajeitava a voz debaixo de ruídos de comboios que partiam, ali nos CFM, para dizer “muito bem, rapaz. Muito bem, rapaz”.
E depois foi no Instituto Camões, numa palestra sobre Noémia de Sousa, que revi Nelson. Recordo-me que ele partilhava o pódio com o sublime poeta Eduardo White. Ambos falavam de Noémia de Sousa. A dado momento, Eduardo White, um poeta fervoroso, levantou-se, totalmente esgazeado, atacou Nelson com enormes palavras e fez um longo discurso cheio de calão e insultos enquanto usava as suas próprias mãos como duas batutas para escorraçar o moderador do debate. Nelson continuou no pódio, tonto de uma humildade desarmante que não me sai da memória. Ali sofreu em silêncio todos os bombardeamentos e insultos numa dignidade impressionante. Nos poucos segundos que o poeta Eduardo White dirigia-se, de forma abrupta, ao moderador, Nelson aproveitava para pingar no microfone suas vivências com Noémia de Sousa. Eduardo White, na sua altura de agitar o céu, depois de tudo, ainda disse ternurentas palavras sobre Noémia de Sousa que nos comoveu a todos.
Hoje, Nelson é esse grande guia que nos comanda nesse exercício canino de farejar memórias. Farejar todas as paredes com nódoas de memórias, polir lápides, abrir túmulos tão cheios de nós e fazer missas aos grandes homens que nunca cabem na nossa minúscula memória, se calhar por serem grandes. É uma grande honra pertencer ao tempo presente habitado, também, por Nelson Saúte. Não podemos ter receio e nem medo de o dizer “Nelson é um grande homem do nosso país”.
O escritor francês Vidalie dizia que devíamos todos usar suspensórios para que a alma nos caísse um pouco menos sobre os calcanhares. E além de suspensórios, eu acho que os todos os países precisam de homens como Nelson para que a memória lhes caia um pouco menos sobre os calcanhares.
Escrevo este texto porque soube que Nelson fez 57 anos de idade. Mas a energia de Nelson, nos seus textos, continua a de um rapaz de 20 anos, aliás, foi assim que o vi pela última vez: um moço de 20 anos de idade sentado numa sala, ali no museu dos CFM, de perna cruzada e engolido por um enorme jornal. Se calhar é este jornal que hoje me falta para forrar todas essas memórias sem me importar com os rostos da necrologia e os contratos de adjudicações.
Chega-te só um bocadinho mais perto, Chico. Tenho uma pergunta para ti. Não precisas de fazer essa cara trombuda, não precisas de dispensar o teu sorriso só porque disse que tinha uma perguntinha para ti, faz favor, Chico. Aliás, nem precisas de maquilhar esse teu rosto com pinceladas de rugas...
É só uma pergunta que tenho para ti, Chico. É não é preciso me olhares de banda, Chico, é apenas uma perguntinha. Uma simples perguntinha que me está a dar cabo da cabeça desde que acordei. Entendes isso, Chico??
Olha, Chico, ouvi esta manhã uma fofoca feia sobre ti. Uma fofoca tão feia, horripilante e tão pesada que até me levou completamente às lágrimas. Não te chateies comigo, Chico: dizem que tu morreste no Hospital Central de Maputo, hoje. Não sei se viram um fulano qualquer como tu estendido na cama do hospital: com cabelos tricotados de fio brancos, com um sorriso brilhante e logo coscuvilharam que morreste.
Dizem que tu morreste, Chico. Tentei mastigar essa notícia aos urros como um bicho, mas tinha de te perguntar. Peço desculpas, Chico, por isso. Peço desculpas porque ainda não sei se isso é uma fofoca e já estou aqui com os olhos nublados de lágrimas. E nem são lágrimas: são uns pingos quaisquer que não me deixam ver-te, por isso, chega-te só um bocadinho mais perto, Chico…
Olha, Chico, pelo teu silêncio vou pensar que é tudo verdade. Deixa-te de mariquices, Chico, e diz-me de uma só vez se é verdade ou não: morreste? Deve ser tudo uma piada. Tu que tens tanto jeito para viver, tanto jeito para sorrir, onde terás aprendido essa asneira de morrer? Morrer é uma coisa séria e tu devias dizer qualquer coisa.
Se achas que vais ouvir de mim um “descansa em paz” ou um “vai em paz”, estás totalmente enganado, estás totalmente enganado, Chico. Quem merece descansar em paz somos todos nós que sentiremos, todos os dias, saudades tuas. Bom, se essa fofoca for verdadeira. Chega-te só um bocadinho mais perto, Chico...
Não te entendo, Chico. Continuas em silêncio e a fofoca já começa a ser falada por toda a gente. Chega-te só um bocadinho mais perto, Chico, e diz-me que é tudo fofoca dessa gente viciada em dizer: “que a terra lhe seja leve”. Estou com uma ansiedade do caraças de te ver surgindo, nesta manhã de sábado, totalmente chocado com essa fofoca e a dizer: “é tudo mentira, estou vivo”.
Assinaram-se os acordos gerais de paz, em 1992, e até hoje nunca ouvi uma mínima voz humildando-se e pedindo desculpas pelos horrores dessa estúpida guerra. Ninguém, até hoje, já procurou mediadores para preparem os acordos de pedido de desculpas às milhares de famílias destruídas e fuziladas em nome do desenvolvimento, democracia e marxismo. Ninguém!
Quem já pediu desculpas ao Rogério Dimande, meu antigo professor, que foi higienizado as duas mãos por uma catana, enquanto assistia aos seus pais sendo deslocados vivos por uma corda para as profundezas de uma latrina? Quem já pediu desculpas a mim, pelos setenta e tal familiares meus fuzilados no Massacre de Homoíne?
Não falo da Frelimo, da Renamo, do Governo, falo do pedido de desculpas que nunca ouvi, falo das acusações que todos trocam sem se dar um minuto para arrancar a dentadura do silêncio e colocar entre as gengivas uma simples frase: “pedimos desculpas a todos pelas mortes”.
De 1992 até cá, quem já se humildou, quem já condecorou com um pedido de desculpas a milhares de crianças, que hoje são pais, que cresceram sem saber o peso, a doçura das palavras pai, mãe na boca? Como alguém que nunca teve um pai pode ser um pai?
Em outros feriados, assistimos condecorações, distribuição de medalhas de mérito e coragem, graduação infantil de heróis. E hoje, 04 de Outubro, quem merece tudo isso? Haverá coragem de chamar todas as vítimas dessa guerra, sacudi-las o peso da morte e enchê-las de condecorações, medalhas e certificados? Haverá coragem de reconhecer que são heróis as crianças que cresceram sem pais, as viúvas que envelhecem sem saber dos corpos dos maridos e as famílias que até hoje tentam ter paz?
Haverá coragem de pedir desculpas a milhares de crianças que foram armadas e obrigadas a matar, aos massacrados e queimados vivos que nem em Roma foram chamados para pelo menos dizer: “vamos pensar no vosso pedido de desculpas”. Podia falar dos massacres, das mulheres estupradas e assassinadas, das mulheres que hoje criam filhos que fizeram nas matas em troca de um naco de segurança, mas falo de um simples pedido de desculpas.
A guerra civil acabou, mas quem já confessou que matou e pede desculpas? Quem, dos fazedores da guerra civil, já parou um minuto para confessar um pecado, um crime e apontar uma vala comum qualquer que ajudou a cavar? Quem desses chefes já parou um instante para orar, não pela democracia, não pelo desenvolvimento, não pelo marxismo, mas pelas pessoas que matou. Quem, embezerrado de arrependimento, pediu desculpas pelas minas que serraram pernas e transformaram em pó a vida de muitos moçambicanos? Quem já se humildou?
Escrevo este texto, o primeiro dos vinte, sobre o jornalista moçambicano José Belmiro. Serão, no fundo, vinte textos no total - ou talvez mais; acho que vinte textos são suficientes para empilhar o entulho da desonestidade desse grande jornalista.
Sou diminuto demais, confesso, para escrever sobre esse jornalista, mas a desonestidade brilhante que carrega em suas atitudes e discursos são impressionantes. Não façam fé em mim, também tenho sido desonesto, também tenho tido trambolhões, mas em matéria de desonestidade, estupidez e insensatez, acho que tenho muito a aprender com esse grande jornalista.
Um jornalista e amigo já me tinha falado das atitudes embonecadas que este jornalista usou para desfilar a cintura nos corredores da Comissão Nacional de Eleições para, no fim, mandar à fava quem lá o colocou. No fundo, ele fez o que fazem os capitães da desonestidade: encher a barriga, arrotar insensatez e depois mostrar a todos que a coisa mais importante é o prato e não a pia onde tudo termina ensopado.
José Belmiro, rodeado por um vagão de juristas carregados de sacos de códigos e leis, pensa que pode tudo, pensa que pode escarafunchar o nariz dos outros com a vara da sua desonestidade. Vem-me à lembrança uma passagem de uma carta do Papa Celestino VI, dirigida aos “condutores dos povos”, que me sinto na obrigação de citá-la: “o servilismo dos que vos rodeiam, menos para servir do que para explorar, alimenta em vós o orgulho e a ilusão do poder”.
José Belmiro foi desonesto comigo - ainda o é -, foi desonesto com tantos outros que ontem me contaram os seus episódios, os seus filmes de terror, os seus gestos amaneirados de usar as pessoas e a sua atitude de responsável quando se enforca num écharpe de jornalista e jurista. Haja paciência!
Capitão da desonestidade é uma designação que terei de um romance medieval quando um certo autor se referia a um padre que roubava os bens da igreja. E José Belmiro não rouba os bens da igreja, não desonra a igreja, mas ele faz um culto sagrado à desonestidade. Ele faz crescer empresas e empresas, remando com a bengala da desonestidade, esperneando as pessoas, usando as estilhas da força dos outros e, ao fim do dia, está-se nas tintas com todos e tudo.
Estou a meter os parágrafos à matroca, neste texto, simplesmente para criar um certo equilíbrio entre a desonestidade desse jornalista e as tantas personagens que andam consigo. Como alguém é capaz de ser tão desonesto assim? Como alguém que se diz empresário, jornalista, assessor e jurista acumula, também, todos os cacifos da desonestidade? Existe pouca gente honesta, pois os muitos desonestos que existem abocanham toda a desonestidade, deixaram apenas migalhas.
Dez famílias estão, neste momento, senhor presidente, sem rua para chegar às suas casas, porque o que era rua vendeu-se. O que era rua será coroado por um enorme muro nos próximos dias, senhor presidente. São dez famílias que terão de criar pontes imaginárias para chegar aos seus quintais, porque um grupinho da zona decidiu vender o que era rua. Claro que este não é o primeiro caso que acompanho na Matola-Gare, há muitas ruas que são vendidas e terrenos que são disputados por mais de cinco pessoas. E hoje são dez famílias que foram arrancadas uma rua.
Já escrevi, diversas vezes, sobre as negociatas de terrenos que acontecem na Matola-Gare, mas ninguém me ouve. Hoje falo de dez famílias, incluindo a minha, que foram arrancadas uma rua. Aquilo que era rua, com postes de electricidade, com um enorme corredor para autocarros, com um tubo geral de água será vedado nos próximos dias.
Isso acontece na Matola-Gare num terreno que foi arrancado a uma velhinha e vendido, debaixo dos seus gritos, à uma família que hoje pretende fechar uma rua. A velhinha, meu Deus, todos os dias põe-se debaixo da sua angústia e lamentava, tal como essas dez famílias, o seu terreno vendido. O grupo vendeu o terreno e hoje são essas dez famílias que estão concentradas nos seus quintais como água de chuva, pois não têm nem um pedaço de terreno para lhes servir de entrada.
O grupo tentou falar com a dona do mundo que comprou a rua e o terreno. E ela, porque tem dinheiro, porque tem amigos no município, disse apenas que ia doar um beco, um palmo de centímetros, para servir de entrada a essas dez famílias, senhor presidente. Um beco só para encostarmos o corpo e chegarmos às nossas residências, um beco que nos cederemos e passaremos, um a um, como formigas seguindo para um buraco.
Senhor presidente, falo de dez famílias e muitas que estão a surgir que dependem dessa rua. A velha, que era dona do terreno, todos os dias chora pelo seu terreno arrancado e hoje chora pela rua, porque sabe que já não tem onde encostar os seus passos e chorar pelo terreno que um dia foi seu.
Os terrenos são vendidos como tomates na Matola-Gare, mas ninguém se importa em deixar-nos uma rua. De tempos em tempos, somos obrigados a abrir novas ruas, novas entradas, mas dessa vez não temos nada a abrir, pois estamos sem mãos e estamos sem catanas suficientes para lutar pela rua que foi vendida. Viramos bichos que não precisam de ruas, senhor presidente.
Uma rua larga, uma rua que servia de corredor para nos evacuar às nossas residências deixará de existir nos próximos dias, senhor presidente. Dez famílias viverão isoladas numa ilha sem saída como bichos da Idade da Pedra. E como essas famílias sairão ao mundo nos próximos dias? Como essas famílias irão carregar os seus passos para dentro de casa?
Claro que eles fazem isso, porque essas dez famílias são um entulho de pobres. Há meses venderam a rua de um dos maiorais do bairro, mas tudo acabou mal: o maioral usou a força, que me dava muito jeito tê-la, mandou varrer a rua e tudo voltou à normalidade. O bairro todo aplaudiu. E hoje somos nós, dez famílias, que passaremos por isso tudo, porque não temos a força de varrer tudo como o maioral. Nos próximos dias, haverá um muro coroando a rua que nos servia de entrada, haverá uma porta impedindo-nos de entrar em nossas casas.
Depois de nós, as dez famílias, de certeza mais ruas serão contrabandeadas em toda a Matola-Gare. Temos, todos os dias, de dormir com um terço, na mesinha da cabeceira, para orarmos pelas nossas ruas. Todos os dias temos de pedir a Deus para cuidar das nossas famílias e das nossas ruas. Terá Deus, coragem e força suficientes para fazer tudo isso? Senhor presidente, são dez famílias e pedimos de volta a nossa rua e não um esconso em forma de beco qual entrada dos currais.
E estamos nesse silêncio, senhor presidente, porque os donos do bairro ditam as regras e calam os nossos barulhos com “nós somos donos disto tudo”. E as dez famílias, sem donos, como ficarão sem entrada? Senhor presidente, são dez famílias que nos próximos dias viverão isoladas como doentes de lepra por falta de uma rua. Escreverei até que tenhamos a rua de volta, mais dez ou vinte cartas, senhor presidente.
Era bom que tivéssemos um pequeno ministério dos filhos do senhor presidente. Um ministério sério que dirigisse, planificasse, assegurasse e executasse a legislação e políticas da vida dos filhos do senhor presidente. Os filhos do senhor presidente merecem respeito e carinho. As suas viagens, as suas aventuras e passeios merecem estar em arquivos como os ministérios fazem.
Um ministério que se ocupasse pela construção e manutenção de avenidas exclusivas para os filhos do presidente, que importasse os últimos carros, que programasse expedições dos filhos do senhor presidente e contratasse empresas que fornecessem oxigénio importado e sapatos capazes de derrubar dez aldeias pelo preço. Um ministério com alcatifas francesas que se lavam na África do Sul e secam ao sol de Egipto.
Era bom que tivessem um ministério que determinasse os seus subsídios, salários, seguros de risco por serem filhos de presidentes e regalias quando chegassem ao estatuto de ex-filho do presidente. Coitados! Seus pais passam a vida inteira trabalhando para levantar o País e eles, na sua total inocência, vivendo pelo pouco que têm como mesada. Sofrem muito os filhos do senhor presidente. Não têm tempo para os estudos porque se dedicam aos negócios para sobreviver.
Um ministério que publicasse vagas no jornal, que tivesse um orçamento bem definido e aprovado pela assembleia para sustentar a vida dolorosa dos filhos do presidente. Claro que o ministério teria um porta-voz para sempre nos falar, pela televisão, das viagens dos filhos do presidente, dos convidados para seus aniversários e dos seus carros que vão entulhando-se nas garagens.
Meus senhores, um ministério como tantos outros; com fotografias dos filhos do senhor presidente presas nas paredes, com um relógio de parede com ponteiros de ouro e com uma secretaria à entrada caçando o auscultador do telefone e espetando as suas enormes unhas nas chamadas.
Falo dos filhos dos presidentes e não do lixo de filhos que acumulamos no Chamanculo, não falo dos órfãos da Munhava que esperam a campanha para ter uma camisa nova, não falo daquela carruagem de desempregados que inunda uma casa de madeira e zinco na Mafalala e chamam pai a uma criatura que a única coisa que tem é barba, meus senhores eu falo dos filhos do presidente.
Talvez esse ministério incluísse nos manuais escolares a vida triste dos filhos do senhor presidente. As suas noites mal passadas nos hotéis de Qatar, os seus relógios de ouro que nunca ditam a sua hora, os meses que passam longe do seu amado país e a dor de serem filhos abandonados por um pai que cuida de todos nós, do país inteiro.