“Carta Aberta”
I. As últimas de 2024 (em Portugal de Marcelo Rebelo de Sousa) mostram, através das legislativas, um cenário político cada vez mais assustador e perigoso. Disputadas por AD (PPD/PSD-CDS-PP-PPM); IL, BE, PS, PSD, etc., a questão que aqui se põe, a de saber se a democracia constitucional portuguesa – ao nível da qualidade da democracia internacional como exemplo do que é civilização democrática, do que é democracia constitucional, do que é rotativismo democrático (alternância democrática), do que é partilha de poder (democracia pluripartidária) – permanece firme sobre os alicerces do 25 de Abril ou se se trata de um ‘retrocesso democrático civilizacional’ parece-nos inevitável. Vozes há, mais ou menos otimistas e outras nem tanto! As otimistas, falam da existência da chegada da “tripolarização do poder” (AD-PS-CHEGA) – apesar de, em nossa opinião, não a reconhecermos como tal pela natureza belicista do Partido liderado por André Ventura na medida em que ao nível conjuntural e estrutural implica que haja consensos que nem sempre podem facilitar o processo de governabilidade à AD. Ou seja: um acordo com o CHEGA, não nos parece (em ciências políticas) aceitável; uma aliança com a extrema-direita de Ventura seria claramente um pacto com o ‘Diabo’; mancharia a própria AD e o histórico doloroso sobre a conquista da democracia portuguesa. Não é por acaso que Marcelo e Montenegro se “distanciam” de um eventual acordo político com o CHEGA.
II. Aliás, lembremos nas palavras de Marcelo o seguinte: (i) “(…) é importante, numa democracia que celebra 50 anos que não acompanhemos a evolução de democracias mais antigas e mais velhas que é o de aumento da abstenção em eleições que são todas elas muito importantes”; (ii) “os portugueses vão votar e, naturalmente, ponderarão aquilo que é o significado do seu voto e os portugueses têm demonstrado desde o 25 de Abril uma maturidade e uma sabedoria antecipando em muitos casos aquilo que muitas vezes só se percebe no futuro…” (Marcelo R. de Sousa, 10 de Março para o 1º Jornal da SIC notícias). Discurso realista de Marcelo, mas vejamos até onde vai o “realismo” de Marcelo na prática democrática. Primeiro ponto, Marcelo, ao jogar a democracia para as mãos do Povo, força os eleitores, quase todos, a terem de decidir tudo nas últimas 24 horas… isto é, na boca das urnas sendo resultado disso muitos dos votos, inconscientes. As sondagens de muitos meios de comunicação social, da Universidade Católica portuguesa – politizadas (ou não) para influenciar as decisões dos eleitores flutuantes – apontavam para este cenário de incerteza político-eleitoral sobre em quem votar. O grande pretexto usado foi o de que não pode ser primeiro-ministro quem não foi a votos. Ora, a pergunta aqui é: se o “voto de Marcelo” vale tanto quanto à indispensável e necessária estabilidade parlamentar… talvez seja hora de rever a Constituição para permitir que, reconhecendo a legalidade da dissolução parlamentar, situação superveniente possa ser decidida por meio de um referendo e não apenas por uma decisão presidencial (presidencialismo pós-dissolução?). E, olhem que mau Professor Catedrático… sempre atrasado… vem dizer sobre a importância do 25 de Abril nas vésperas das eleições, sobre os cuidados a ter com a implantação de uma “sociedade de radicais”, tudo isso para disfarçar ainda mais os seus intentos palacianos… numa altura em que já tinha “permitido” que o fascismo e o nazismo se instalassem na democracia portuguesa pluralista de Luís Vaz de Camões.
III. De facto, nunca, nunca na história democrática portuguesa a direita-centrista se aliou com um partido da extrema-direita radical. Nisso tudo, vemos Marcelo! Para nós, o grande autor da “tripolarização do poder” em Portugal, numa cadeira de rodas, de mãos-atadas modo “António Guterres perante as nações em guerra.” Não tenhamos ilusões, Marcelo “lança” a extrema-direita radical e o cenário de ingovernabilidade e austeridade na democracia portuguesa com pretexto na eleição e na inadmissibilidade de um cenário que integrasse um ‘primeiro-ministro interino’ de acordo com a democracia direita (Referendum); uma solução de estabilidade política, económica, social e cultural assente numa maioria relativa como a que foi encontrada e rapidamente dissolvida. Evidentemente, a conjuntura internacional, os conflitos armados internacionais (Rússia vs. Ucrânia; Israel-Hamas, etc) dariam um grande empurrãozinho ao populismo do CHEGA e óbvio que MARCELO sabia disso… Marcelo, suficientemente estudado nestas matérias, agiu com “intenção” dolosa; a intenção de aniquilar “parcialmente” a dimensão cultural – exigência da Carta das Nações Unidas, da Declaração Universal sobre os Direitos do Homem e do Tratado internacional que regula as questões sociais; a intenção de facilitar a ascensão da extrema-direita em Portugal e com isso tornar-se o autor da “tripolarização do poder” em Portugal, pelo menos de uma falsa ideia de “tripolarização do poder”. Como se há de calcular: é impossível negociar com radicais, narcisistas, machistas, mentecaptos, sectários e oportunistas que em nome dos seus interesses individuais e de um Portugal com um espírito ainda muito colonial (pelo número de idosos que tem, que viveram a época colonial e que não abandonam as ideias coloniais) vêm os seus ódios e sentimentos de vingança (íntimos e camuflados), resplandecer. É, pois, com hipocrisia que julgam o socialismo liberal sendo que também elas vivem dela… a história política tem vindo a provar que pela natureza humana e das leis os ciclos se repetem se não formos vigilantes…
IV. Uma “tripolarização do poder” como a que se pretende a todo o custo não vai a bem da democracia, da democratização da sociedade. Antes! A bom senso, vemos a bipolarização do poder continuar na prática democrática. Do mesmo modo que uma mulher adulta finge orgasmos para agradar quem ama, a ilusão da “tripolarização do poder” não deixa de ser importante aos olhos da comunidade internacional. É sempre importante manter o casamento aos olhos dos povos, mesmo que ambos (os cônjuges) saibam que não existe mais comunhão plena (…). Os media, uma vez mais, são os que mais sabem dar de comer aos ignorantes esses venenos promovendo essas falsas ideias. Um veneno que nos vai matando aos bocados… Não é o Ventura o principal autor da “tripolarização do poder”, é o “São MARCELO” – o troca tintas, o que se veste de “Bom Samaritano.” As “asneiras” e as “infantilidades” de Marcelo parecem infindáveis, nem SANTOS SILVA conseguiu escapar a rasteira dada por Marcelo… primeiro, estão os seus interesses individuais e políticos. Legitima a geringonça; depois, promove uma maioria parlamentar que certamente sabia que tarde ou cedo havia de resvalar para a ditadura da maioria… inflama o ego do Governo, com isso faz reacender nas massas o descontentamento mais ou menos generalizado; a bomba atómica é instalada e acionada por via da PGR, a tática mais perfeita! Onde há um campo colonial aberto, tudo flui naturalmente. Claro que a conjuntura internacional, dissemos, dão aqui um grande empurrão. Ninguém desconfia da “Justiça” – são sempre os homens de Deus (Roma locuta causa finita). Portanto, temos na Constituição formal portuguesa um sistema constitucional semi-presidencialista, mas que na prática MARCELO continua o Rei soberano, o grande mostro – o leviatã hobbesiano, o príncipe maquiavélico que emana o Estado sob as vestimentas mais sagradas do Estado – o respeito pelo Estado de Direito democrático e de Justiça social; um Estado de Direito que afasta o sistema presidencialista. Marcelo, sem fazer parecer, funciona como um verdadeiro camaleão. Tanto arrota santidade perante o grande público como destila o seu veneno em trajes do Rei João sem Terra, o tirano que forçou a imposição da Magna Carta em 1215. Assume a figura do Sto. Padre, o Francisco, e (ao mesmo tempo) o de Imperador-tirânico como se de uma monarquia ditatorial se tratasse.
VI. O “caso Galamba” foi o auge; a não exoneração de Galamba inflamou o ego de MARCELO, o menino mimado que não pode ser contrariado e/ou desafiado. Afinal ele é o grande Monarca. Custou a Costa (e seu Governo constitucional) – que tentou cumprir com excelso zelo e inegável diligência política as regras estabelecidas pelo Estado de Direito os seus direitos políticos constitucionais – uma demissão seguida de dissolução parlamentar que nos parece até hoje fruto dos violentos coices de MARCELO – um golpe de Estado palaciano bem estudado… Apesar disso, a estratégia de Marcelo terminou mal, isto é, para além de só conseguir criar uma mera “geringonça” (AL) na fase pré-eleitoral, o maior efeito dominó foi a má fama da existência de uma extrema-direita radical na democracia portuguesa e na democracia da União europeia (UE). Sobre a extrema-direita radical, dissemos, tendo em conta a formação académica de Marcelo, custa-nos muito a acreditar que tenha sido um “acto político” intencional… Como reza a religião de Marcelo, em Provérbios: “quem provoca o Rei, arrisca a vida.” Um duro golpe que certamente Costa (seu Governo) e a esquerda liberal ressentir-se-ão para sempre. Zezinho, o Sacerdote da Congregação Jesuíta, figura incontornável na doutrina e literatura cristã-católica, na sua Música Nênia chora. Chora perante a sepultura da democracia pluralista, (…) pela falta de inclusão e nós, seres sensíveis, choramos com ele por amor ao próximo: “tem piedade de nós Senhor, tem piedade do teu Povo; confiamos e mentiram para nós; É teu povo que não sabe mais o que esperar; Já não sabe mais em quem votar; Trapaceado e explorado e sem ninguém; Confiou e foi traído lá nas urnas; Manda-nos profetas; Manda gente honesta; Manda novos líderes, Senhor; Estes de agora não nos amam...” estamos certamente diante de um novo murro das lamentações made in MARCELO REBELO DE SOUSA.
VII. Espero que lhe sobre um grande peso de consciência. É com profundo desgosto que começo a acreditar que fomos iludidos. Pensávamos que apreciávamos o nosso Mestre-Catedrático por nos falar no espírito quando afinal só nos falava na letra. Mas as ciências já nos tinham advertido que um bom professor catedrático nunca se mete na política. O discurso inicial, o de nem a esquerda, nem o centro e nem a direita, mas o Povo no seu todo cego a pureza da nossa alma. No fim, revelou-se um grande promotor e defensor oficioso do seu Partido; depois de ter conseguido a estabilidade económica por conta das excelentes habilidades políticas de negociação com Bruxelas por parte de quem acaba de governar, Marcelo sacode o capote sem mestria nem elegância; sacode o Governo de Costa sem piedade, sob a deixa de um processo-crime para cima da democracia socialista. Ainda bem que continuamos democracia! A democracia de Abril, a dos nossos egrégios avós, não morre com a “ditadura” de Marcelo e Ventura. A dignidade da pessoa humana, muito apregoada e defendida (ao nível do direito internacional, regional/comunitário e estadual) não se defende só em papéis, vive-se; não se defende só para certos grupos, para ou entre iguais; defende-se a dignidade de e para todos, na medida e proporção da sua diferença, pelo simples facto de serem pessoas humanas. Não se defende só a disciplina, mas também o Amor. Viva Abril.
PhD in Law - Lisboa; Professor Auxiliar & Investigador da Universidade Católica de Moçambique. Antigo Director-Adjunto Pedagógico da Faculdade de Direito da Católica (UCM). Colunista do Jornal Impresso Canal de Moçambique (2012- ao presente).
Não me canso de percorrer o mercado Mafurreira, tenho-o entranhado todos os dias, quase todos os dias nas manhãs, sem procurar, no entanto, nada em especial a não ser a necessidade de rever as mesmas pessoas com as quais lido há anos, e assim, nas saudações que vão acontecendo quase mecanicamente, busco espraecer-me, mais do que querer comprar qualquer coisa. Todavia, vou notando em cada passo, que as minhas amigas deixaram de ser as mesmas vendedeiras dos tempos em que o negócio fluía, perderam o entusiamo.
Já são quase doze horas e muitas delas, a maioria, ainda não “fizeram” cem meticais. Outras nem sequer o mínimo que seria preciso para comprar pão para as crianças que esperam lá em casa, não há negócio. As pessoas passam nos corredores, apreciam os produtos colocados nas bancas, porém não compram, nem sequer perguntam o preço, o que torna o cenário ainda mais desesperador para as negociantes que podem voltar para casa de mãos vazias, e não poucas vezes, com os produtos deteriorados.
É triste querer comprar tomate, cebola e pimento, numa conta que não chega aos cinquenta meticais e ficar a saber que a senhora que me atende não tem troco, “nunca vi esse dinheiro desde que amanheceu”, e eram duzentos meticais que eu trazia. A companheira do lado também, sentada num saco feito esteira com as pernas flectidas e o corpo apoiado no braço, sem qualquer esperança, ainda não vendeu nada, e se vier a fazê-lo será com muita sorte. Então esta situação magoa.
Tivemos tempos em que as coisas floresciam. Havia muita conversa e risos no mercado, entre o movimento do dinheiro que entrava e dos produtos que saíam. O brilho no rosto das mulheres, que nos deixavam sentir o estado vivo da alma, ressurgia em cada gesto e isso era o sinal inequívico da aurora. Era assim, intensamente ao longo de toda a manhã, todos os dias, e aos finais de tarde quando os funcionários voltavam para casa e passavam por alí e enchiam o saco plástico para a alegria da família. Hoje não, o desespero é total, ninguém compra nada, não há “mola de impulsão”.
Os intervalos das onze para o “matabicho-almoço”, outrora passados quase em regabofe, com peixe frito, pedaços de frango, salada e pão, chá quente com limão, e bastante tagarelice para alimentar o coração, passaram a ser frustrantes e dolorosos. Há um silêncio na Mafurreira. As mulheres passam maior parte do tempo a dormir no chão sobre as capulanas sem sonho, ninguém compra nada.
Ainda no mesmo espaço temos as peixeiras que passam o tempo todo espantando as moscas sobre o marisco. “Compra, amigo! Se não tens dinheiro, leva, vais pagar amanhã! Mas essa condescendência toda pode significar que está-se no fim da linha, ou no princípio do fim da linha, e o peixe vai apodrecer, e se calhar nós também.... estamos a apodrecer!
Quando a chuvada arrasadora do fim de semana desabou sobre o Grande Maputo, eu apostei que ela arrastaria consigo o habitual apagão de eletricidade.
Foi sempre assim. Ao mínimo ruidoso trovejar, o mundo ficava às escuras, um barulhão entre trevas.
Chuva e escuridão, tanta maldade junta, uma natural e outra decorrente da incompetência ou desleixo humano (chamem-lhe o que quiserem, rede de distribuição precária, etc).
No meio do desconforto, o habitual desfile das nossas lamúrias, vituperando contra o Governo e o bando de incompententes que gerem a EDM.
Minha aposta caiu no fundo do vaso sanitário. A chuvada trouxe à tona a habitual pobreza das nossas infraestruturas, tanta incúria acumulada na área do saneamento e ordenamento urbano.
Minha aposta foi qualquerizada. A EDM derrotou-me de forma retumbante.
Durante a chuvada fui paulatinamente desgrudando a vista de um apagão relampejando lá nos confins de um horizonte imaginário, O apagão, que já era uma obsessão, um desejo reprimível, não chegou.
Pela primeira vez na minha memória, Maputo enfrentou o caos da chuva longe da escuridão.
Para mim, isso é obra. No meio de muita ineficiência e inconsistência na gestão do sector empresarial do Estado, a EDM mostrou que é possível fazer o mínimo: cumprir sua missão sem as recorrentes trevas. Valeu. Serviço público deve ser assim.
“e se tu és negro, e eu sou branca,
a mesma terra nos gerou”
Alda Lara (in “L.M. Guardian”, 6 de Janeiro de 1952)
A 25 de Março de 1949 morreu em Lisboa o escritor João Dias aos 23 anos deixando uma obra precursora da ficção narrativa moçambicana que seria editada postumamente. A 8 de Junho de 1950, Noémia de Sousa escreve o poema “Godido” e dedica-o à memória de João Dias: “Dos longes do meu sertão natal, / eu desci à cidade da civilização. / Embriaguei-me de pasmo entre os astros / suspensos dos postes das ruas / e atracção das montras nuas / tomou-me a respiração. / Todo esse brilho de névoa, ténue e superficial / que envolve a capital, / me cegou e fez de mim coisa sua”. Assim começa esta homenagem que adiante exclama: “Ah, mas eu não me deixei adormecer! / Levantei-me e gritei contra a noite sem lua, / sem batuque, sem nada que me falasse da minha África, / da sua beleza majestosa e natural / sem uma única gota da sua magia! / A luz verde incendiou-se no meu olhar / e foi fogueira vermelha na noite fria / dos revoltados”. Noémia terá desde logo uma intuição certeira em relação ao contista desaparecido e da sua importância: “Ainda grito, / porque quero ser ainda, sempre, pela vida fora, / o que fui outrora”// “Como tu, meu irmão negro, desorientado e perdido, / na cidade cruel.../ Como tu!”
Muitos anos depois, em 1990, interpelei Noémia de Sousa e quis saber se ela conhecera João Dias: “Foi a mesma coisa com o Rui de Noronha. Nunca convivi com o João Dias. Via-o na rua. Depois soube que ele tinha vindo para Portugal, mas devia ser miúda nessa altura. As irmãs dele foram, durante algum tempo, visitas de minha casa. Eram amigas das minhas primas. Falavam muito do irmão, que era o único rapaz, que andava no liceu, e todos aqueles sonhos à volta dele, que iam mandá-lo para Portugal. Eu nunca tive nenhum contacto com ele. Vi-o às vezes na rua. Encontrávamo-nos na matinée de domingo”.
João Bernardo Dias era filho de um nome insigne do jornalismo – Estácio Bernardo Dias, da geração dos Albasini e de “O Brado Africano”. Nascera a 21 de Maio de 1926 (o mesmo ano em que nasceria Noémia de Sousa), na então cidade de Lourenço Marques. Colaborou, entre outras publicações, em “O Brado Africano” e dedicou-se, para além da ficção narrativa, ao jornalismo e à crítica cinematográfica. É curioso que o mítico grupo dos ruis, anos mais tarde, também se interessavam pelo cinema. Rui Knopfli fez crítica de cinema, Ruy Guerra é hoje um dos nomes mais importantes do Novo Cinema Brasileiro. A ligação com o cinema é um esteio literário interessante e por explorar.
Numa entrevista a Michel Laban, Noémia de Sousa relembra-o: “Pareceu-me sempre uma pessoa muito metida consigo e solitária. Faço ideia o que deve ter sido o liceu para ele – frequentou o liceu em Lourenço Marques – o que deveria ter sido, naquela época: o único negro que andava no liceu. Deve ter sido uma experiência horrorosa.”
João Dias, através da personagem Godido sobretudo, mas também de outras personagens, relata-nos, nos seus contos, essa experiência dolorosa do quotidiano dos negros. O autor foi vítima dessa discriminação e viveu dilacerado numa sociedade preconceituosa e extremamente racista. Mesmo nos textos ulteriores, nos quais se relata a experiência como estudante em Portugal, é possível detectar o vexame do racismo e da discriminação.
No pórtico do seu livro póstumo escreve João Dias: “Lei de bronze! Com os seus armamentos de ferro, o reino de Godido era então o mais forte da região. Superava quantos lhe apareciam. Em todo o sítio a voz do vátua era indiscutivelmente a voz de baixar a cabeça e saudar Bayette! Bayette!!! E não se toleravam insubmissões. De uma vez, para castigar um induna revolto, o régulo chamou-o à sua cubata e ele próprio lhe enterrou uma navalha nos pulmões. A vida de glória enchia todo o povo vátua que corria de norte a sul, escangalhando com majestade tudo que lhe aparecia pelo caminho.”
Desde os seus escritos da adolescência que se nota o seu espírito indómito e combativo, revoltado e insubordinado. Aliás, aos dezassete anos escrevera: “Mais uma vez bradamos pela justiça porque todo o homem sujeito à opressão tem o direito de reagir, de destruir tudo o que se oponha a sua liberdade”. Foi incompreendido. Viveu, na sua passagem de cometa por este mundo, sempre dilacerado com esse anátema da incompreensão. Escreveu uma obra escassa, mas significativa. A sua escrita, fortemente marcada socialmente, tendo como personagem recorrente Godido. É uma personagem-metáfora. Nela se faz a alegoria de um tempo, a representação de uma sociedade, a figuração do colonialismo e das suas acintosas tropelias e enormidades. “Godido será gente? Talvez...talvez tivesse nascido cão; e talvez seja homem.” “Porque és negro e de negro não passas”. “Sua negra! Cadela! Safa-te quanto antes. Sua...” (“Godido”) “Canalha!!!” (“Sonho negro”) “Se fosses como teus irmãos, mero carregador do cais, ou desentupidor de fossas!...não levantarias novos problemas a ti e a nós. A vida seria suavemente menos alcantilada. Serias feliz porque eras do teu mundo, e te bastava nele.” (“Individuo negro”).
João Dias estudou Direito em Coimbra durante três anos e posteriormente transferiu-se para Lisboa. Morreu, aos 23 anos, vítima de doença incurável. Para além dos escritos que enforma a edição póstuma de “Godido e outros contos”, deixara alguns escritos de juventude e colaboração diversa em “O Brado Africano, “Itinerário”, “L.M. Guardian”, “Agora”, “Gazeta de Coimbra”, “Via Latina”, “Meridiano”, entre outras publicações.
Em 1952, chancelado pela África Nova, impresso na Casa Minerva, em Coimbra, sob a iniciativa dos amigos Alda Lara (de Angola), Orlando de Albuquerque e Vítor Evaristo (de Moçambique), com o patrocínio da secção Moçambique da Casa dos Estudantes do Império, é dada à estampa, a reunião “Godido e outros contos” de João Dias. Albuquerque, poeta e médico, que se casaria com a poeta e médica Alda Lara, redige a introdução: “João Dias morreu quando começava a mostrar-nos a reais possibilidades do seu talento. A obra que nos deixou é pequena e inacabada. Entretanto, mesmo assim, é suficiente para nos dar o quanto das suas possibilidades e justificar a iniciativa de alguns dos seus amigos em lha editar, evitando que, lamentavelmente, se viesse a perder no esquecimento que, tarde ou cedo, acaba por cobrir aqueles que a morte leva...”
Em 1987, no jornal “Domingo”, Nikos Kakurios, interroga-se: “João Dias: escritor maldito?”: “Embora sabendo que havia sido publicada uma obra intitulada “Godido” não havia forma de ter acesso ao livro.” “A curiosidade sobre esta estranha maldição de um livro que nem os meus amigos com bibliotecas pessoais de qualidade possuíam ou conheciam sequer”. Um grupo de jovens cria nesses anos 80 a Brigada João Dias. A “Charrua” faz-lhe menção no seu número inaugural (Junho de 1984) e publica o seu conto mais emblemático.
Trinta e sete anos depois da primeira edição, a Associação dos Escritores Moçambicanos haveria de reeditar esta obra seminal em Agosto de 1989, com um prefácio de Cyprian Kwilimbe, que foi um entusiasmado divulgador da obra e figura de João Dias, lutando, ele também, contra o esquecimento. Kwilimbe, que participou da aventura da revista “Charrua” escreve no referido prefácio: “Com uma ressonância ao mesmo tempo individual e universal, João Dias, numa linguagem clara e rica, bradou pela justiça humana: individual porque ele mesmo sofreu a injustiça; universal porque descreveu as arbitrariedades e a injustiça comuns no mundo através da História.”
Hélder Muteia, da geração da “Charrua”, assina o texto da contra-capa: “Várias vezes humilhado e vexado, João Dias nunca se rendeu ao acanhamento e, entregando-se inteiramente à luta, numa originalidade que sempre o caracterizou na arte e na vivência, deixou por onde passou, gravado bem o fundo, o cunho de uma personalidade ímpar”.
Noémia de Sousa intuíra a sua importância, Orlando de Alburquerque vaticinara-lhe um lugar cimeiro na fundação da literatura moçambicana, Cyprian Kwilimbe apostrofava a questão central do racismo e do preconceito que sofrera na sua obra, Hélder Muteia relevava a “voz humanitária e realista”. João Dias seria, quanto a nós, a consciência inicial da moçambicanidade na nossa ficção narrativa, que se elevaria, quinze anos após a sua morte, na pluma esplendente de um outro jovem, Luís Bernardo Honwana, com a sua obra genial “Nós Matámos o Cão Tinhoso”.
Para além dos quinze textos que integram a edição inicial de “Godido e outros contos”, o livro traz um novo prefácio, sem excluir o anterior, apondo-lhe um poema, de Alda Lara, em jeito de posfácio: “É tempo companheiro! / Caminhemos.../ Longe a Terra chama por nós, / e ninguém resiste à voz / da Terra...// Nela, / o mesmo sol ardente nos queimou, / a mesma lua triste nos acariciou, / e se tu és negro, e eu sou branca, / a mesma terra nos gerou..”
A denúncia, o grito, a revolta. A imputação do colonialismo, a acusação contra o racismo, a incriminação contra as desigualdades marcam a obra de ambos. Os dois são contistas – João Dias e Luís Bernardo Honwana - de apurado sentido estético e de um poder de observação poderoso. A economia da linguagem e a riqueza vocabular também os aproxima. Os textos são curtos, marcantes e marcados. Sobretudo socialmente. A obra de João Dias é claramente incipiente, denuncia ainda certas tibiezas, como lhe apontava Orlando de Albuquerque, mas é, ao mesmo tempo, um referencial histórico fundador.
“Godido” é, no entanto, um texto precursor, pioneiro, vanguardista. O seu autor é um arauto, alguém que anuncia, que nos dá notícia de um tempo novo na nossa literatura. “Nós Matámos o Cão Tinhoso” estabelece o cânone e será a obra referencial da nova ficção em Moçambique. É uma obra fundadora. É, no entanto, tributária, de certo modo, de “Godido e outros contos”.
Num ensaio notável e pioneiro, ulterior a dois textos importantes, um de Rui Knopfli de 1974 e outro de Orlando Mendes de 1980, Fátima Mendonça, numa periodização da literatura moçambicana, em 1987, refere: “Em 1949 morria em Lisboa um jovem moçambicano, estudante de direito, João Dias, que deixava inédito um conjunto de textos, “Godido e outros contos”, publicado postumamente pela C.E.I. (1952). É neste período que “surge uma literatura marcada pela rejeição do carácter colonial do contacto com Portugal”. “A sua génese encontra-se no clima provocado pelas alterações históricas determinadas pelo final da 2ª guerra mundial”, considerava Fátima Mendonça, sem omitir as condições políticas específicas ocorridas em Portugal na sequência do movimento à volta de Norton de Matos em 1948 e que teve repercussões no caso moçambicano, acrescento aqui, no caso da geração de Noémia de Sousa e da sua acção reivindicativa, política e cultural.
João Dias foi um incompreendido. Há quem tenha visto nele um “germinador de ódios”, mas Godido e, por extensão, João Dias, são a metáfora pungente da vida dos negros numa cidade e numa sociedade extremamente segregada, as suas desventuras, o seu quotidiano, o seu infortúnio: dão-nos conta do destino de um povo que se viu historicamente privado da sua dignidade. Bem podem os defensores do indefensável proclamar os avatares do colonialismo, querendo apregoar que o colonialismo português era benevolente, altruísta ou generoso, a realidade histórica demonstra o contrário. Leiam, entre outras obras, “Godido”. Está lá a notícia do colonialismo e das suas perversidades.
Por outro lado, aqueles que ainda hoje persistem em fazer da cidade de Lourenço Marques justa, magnânima, copiosa ou supina, em artigos e invocações superabundantes, bastaria uma leitura destes contos para ficarmos esclarecidos sobre a cidade e a sociedade excludentes, uma cidade discriminatória, hostil, segregada, preconceituosa, intolerante, racista, classista, diferenciada. João Dias, que sofreu o facto de ser negro, soube descrevê-lo e denunciá-lo e os seus escritos são um alerta contra a desmemória e a mistificação da história.
Este e outros escritores de juventude, podemos subsumir, colocam João Dias entre aqueles que empreenderam, antes da geração dos libertadores, um acérrimo combate pela liberdade. Há uma geração, sobretudo do movimento negro, que combate o racismo, exige direitos para as populações das então colónias, criticam o sistema. Esse movimento negro tem importantes ligações ao pan-africanismo e aos movimentos civis negro-americanos. Parte dos chamados proto-nacionalistas, como Mário Pinto de Andrade, irá caracterizar a geração que antecede à “Geração Cabral”, são a consciência primeira da luta, do combate, do empenho ou contenda pela emancipação política dos africanos. É importante lê-lo também para perceber que o gérmen libertário vem de longe. A nossa história é redutora, lacunar e maniqueísta.
João Dias morreu muito jovem, sem tempo para aprimorar esses escritos e essa consciência combativa, mas o seu desagravo, o seu desacordo, a sua briga, a sua discórdia ou dissentimento são inequívocos. Também, daí, resulta, de algum modo, a sua importância. Sendo que, no seu caso, temos a fortuna do seu talento e do seu génio, que a morte prematura impediu que se desenvolvesse. Seja como for, é impressivo e expressivo os primórdios do cânone que aqui se intenta ou desenha. Não obstante o facto de ser uma obra fragmentária e inacabada.
Trinta e cinco anos depois da segunda edição de “Godido e outros contos” não temos conhecimento de que a obra inspiradora de João Dias tenha conhecido outra sorte que não seja a ventura das vicissitudes a que obras e autores semelhantes estão sujeitos neste país: o opróbrio do silêncio, a ignomínia da desatenção e do descaso, o desconhecimento e a negligência. A indiferença, o abandono, a omissão.
Quando passam hoje setenta e cinco anos sobre a sua morte precoce, queria aqui lembrá-lo, neste breve tributo. João Dias é sem dúvida um dos nossos intérpretes ou, se quiseram, um dos nossos melhores. Socorro-me do auxílio da esplendente pluma da Noémia de Sousa, outra vez, para esta reverência, vénia ou homenagem a João Dias:
“Por isso é que este meu canto ingénuo que soa banal,
traz no seu fundo mais fundo, Godido, meu irmão
a marca rubra dum selo fraternal,
constante e imortal”
KaMpfumo, 25 de Março de 2024
Há situações extremas que nos deixam com um enorme amargo na boca. A ser verdade a foto divulgada, uma enorme pompa e circunstância se criou em torno da inauguração de uma casa para um Administrador de um dado Distrito. A casa assemelha-se em tudo a uma dessas vivendas de luxo situadas nos bairros ricos de Maputo. Casas que não apenas custam enormes fortunas para construir, como depois para equipar e manter. Acredito que a ser construída pelo Estado é um modelo que irá ser replicado em todos os distritos do país. Um gasto significativo que perante tanta necessidade básica fica impossível não causar indignação.
A lista de necessidades básicas é extensa e mesmo infindável. Temos milhares de crianças sem carteira ou mesmo tecto para estudar, hospitais por construir, equipar e suprir dos mais elementares consumíveis, estradas por manter e construir, salários por pagar e melhorar e por aí fora. Mas assistimos a um chocante despesismo improdutivo que não pára de crescer e que consome uma não contabilizada fatia do orçamento público. Infelizmente, essa lista é tambem extensa. São as escoltas que se multiplicam, as viagens que não param, os constantes “retiros” que muitas instituições do Estado fazem em estâncias turísticas como se não tivessem salas nas suas instituições, banquetes e comemorações luxuosas repletas de champagne, vinhos e whiskeys que nada de mal teriam se não fossem pagos com o erário publico. Temos até dois governantes por província que consomem muito e não sei medir o que realmente fazem. Temos um Estado cheio de chefes e directores, cujas regalias dificilmente se traduzem na produtividade que deles se espera. Temos milhares de viaturas, muitas de luxo, muitas vezes em triplicado para o mesmo dirigente. E, por detrás disso tudo, uma enorme alocação de pessoal e meios necessários para manter essa máquina dispendiosa.
Um exemplo desse despesismo e das necessidades básicas que ficam por suprir está hoje a acontecer. Como consequência da inexistência de um sistema de drenagem adequado, a chuvada intensa que caiu sobre a cidade está a provocar o sofrimento de milhares de citadinos a níveis chocantes. Esta situação não pode ser atribuída a mudanças climáticas pois as chuvas intensas são um fenómeno natural já há muito existentes. O problema de fundo tem sido apontado pelos especialistas e vem se agravando por um crescimento desprovido de planeamento urbano cuidadoso que inclui os sistemas de drenagem. Por isso as zonas correctamente urbanizadas pouco sofrem com as chuvas e as desordenadas enfrentam calamidades por demais conhecidas. Sem qualquer dúvida o enorme desperdício em consumos não essenciais tem de ser revertido.
Está na hora de quem de direito reequacionar toda a gestão publica e fazer cumprir o papel do Estado em tomar conta do país e das necessidades dos seus cidadãos. Uma tarefa muito complexa e difícil, mas totalmente necessária. Um trabalho gigantesco que, contudo, tem de ser feito se queremos ter uma gestão a nosso favor. E, enquanto agora temos de gerir esta emergência em que há que acudir as vítimas das cheias, deixemos de julgar que a caridade abafa as nossas consciências, e comecemos desde já a tratar do que tem de ser feito para que não haja necessidade de caridade e possamos viver tranquilamente com ou sem chuva.
António Prista
Não me canso de percorrer o mercado Mafurreira, tenho-o entranhado todos os dias, quase todos os dias nas manhãs, sem procurar, no entanto, nada em especial a não ser a necessidade de rever as mesmas pessoas com as quais lido há anos, e assim, nas saudações que vão acontecendo quase mecanicamente, busco espraecer-me, mais do que querer comprar qualquer coisa. Todavia, vou notando em cada passo, que as minhas amigas deixaram de ser as mesmas vendedeiras dos tempos em que o negócio fluía, perderam o entusiamo.
Já são quase doze horas e muitas delas, a maioria, ainda não “fizeram” cem meticais. Outras nem sequer o mínimo que seria preciso para comprar pão para as crianças que esperam lá em casa, não há negócio. As pessoas passam nos corredores, apreciam os produtos colocados nas bancas, porém não compram, nem sequer perguntam o preço, o que torna o cenário ainda mais desesperador para as negociantes que podem voltar para casa de mãos vazias, e não poucas vezes, com os produtos deteriorados.
É triste querer comprar tomate, cebola e pimento, numa conta que não chega aos cinquenta meticais e ficar a saber que a senhora que me atende não tem troco, “nunca vi esse dinheiro desde que amanheceu”, e eram duzentos meticais que eu trazia. A companheira do lado também, sentada num saco feito esteira com as pernas flectidas e o corpo apoiado no braço, sem qualquer esperança, ainda não vendeu nada, e se vier a fazê-lo será com muita sorte. Então esta situação magoa.
Tivemos tempos em que as coisas floresciam. Havia muita conversa e risos no mercado, entre o movimento do dinheiro que entrava e dos produtos que saíam. O brilho no rosto das mulheres, que nos deixavam sentir o estado vivo da alma, ressurgia em cada gesto e isso era o sinal inequívico da aurora. Era assim, intensamente ao longo de toda a manhã, todos os dias, e aos finais de tarde quando os funcionários voltavam para casa e passavam por alí e enchiam o saco plástico para a alegria da família. Hoje não, o desespero é total, ninguém compra nada, não há “mola de impulsão”.
Os intervalos das onze para o “matabicho-almoço”, outrora passados quase em regabofe, com peixe frito, pedaços de frango, salada e pão, chá quente com limão, e bastante tagarelice para alimentar o coração, passaram a ser frustrantes e dolorosos. Há um silêncio na Mafurreira. As mulheres passam maior parte do tempo a dormir no chão sobre as capulanas sem sonho, ninguém compra nada.
Ainda no mesmo espaço temos as peixeiras que passam o tempo todo espantando as moscas sobre o marisco. “Compra, amigo! Se não tens dinheiro, leva, vais pagar amanhã! Mas essa condescendência toda pode significar que está-se no fim da linha, ou no princípio do fim da linha, e o peixe vai apodrecer, e se calhar nós também.... estamos a apodrecer!