O processo de libertação nacional e o pós-independência permitiram que moçambicanos de várias regiões buscassem novas oportunidades de vida, alguns devido a circunstâncias obrigatórias e outros por motivos profissionais. A reestruturação estatal levou muitos militares macondes e não só a se deslocarem em massa para Maputo, onde estabeleceram residência e formaram famílias. Algo profundo com eles veio - a identidade cultural.
Desde que se fixaram por aqui, os ritos de iniciação e as manifestações culturais do povo maconde sempre estiveram presentes. Uma área específica tornou-se a catedral deles - a capela da zona militar e as casas à sua volta. Esse local não se tornou apenas um centro de encontro para os macondes, mas também um ponto de convergência para todos os moçambicanos.
O espaço não está em condições e sequer um dia mereceu algo que pudesse incentivar a prática e a preservação da identidade cultural. Maltratados, mas resilientes, jovens descendentes e naturais de Cabo Delgado ainda mantêm viva e firme a prática de mapiko, n’goma, nkamango, likumbis e demais manifestações.
Apesar de não estar em condições ideais, esse espaço, especialmente próximo à capela, deve ser reconhecido como uma reserva cultural urbana de importância internacional. Deveria ser um local dedicado à preservação da história e das tradições macondes que por ali se enraizaram.
Infelizmente, a zona militar é subutilizada e merece uma reestruturação. Poderia se transformar num ponto turístico de destaque na cidade, semelhante à Mafalala, mas com um toque sofisticado, oferecendo hospedagem, restaurantes e eventos culturais regulares.
Precisamos de uma visão que reconheça e promova as manifestações culturais já presentes no local. Turistas nacionais e internacionais têm interesse em testemunhar a arte e aprender mais sobre a cultura maconde e não só.
Que a vontade de transformar em condomínios de luxo aquela zona não mate o traço único dos macondes, que carregaram consigo do planalto e, hoje, exaltam na capital de todos nós.
O processo de libertação nacional e o pós-independência permitiram que moçambicanos de várias regiões buscassem novas oportunidades de vida, alguns devido a circunstâncias obrigatórias e outros por motivos profissionais. A reestruturação estatal levou muitos militares macondes e não só a se deslocarem em massa para Maputo, onde estabeleceram residência e formaram famílias. Algo profundo com eles veio - a identidade cultural.
Desde que se fixaram por aqui, os ritos de iniciação e as manifestações culturais do povo maconde sempre estiveram presentes. Uma área específica tornou-se a catedral deles - a capela da zona militar e as casas à sua volta. Esse local não se tornou apenas um centro de encontro para os macondes, mas também um ponto de convergência para todos os moçambicanos.
O espaço não está em condições e sequer um dia mereceu algo que pudesse incentivar a prática e a preservação da identidade cultural. Maltratados, mas resilientes, jovens descendentes e naturais de Cabo Delgado ainda mantêm viva e firme a prática de mapiko, n’goma, nkamango, likumbis e demais manifestações.
Apesar de não estar em condições ideais, esse espaço, especialmente próximo à capela, deve ser reconhecido como uma reserva cultural urbana de importância internacional. Deveria ser um local dedicado à preservação da história e das tradições macondes que por ali se enraizaram.
Infelizmente, a zona militar é subutilizada e merece uma reestruturação. Poderia se transformar num ponto turístico de destaque na cidade, semelhante à Mafalala, mas com um toque sofisticado, oferecendo hospedagem, restaurantes e eventos culturais regulares.
Precisamos de uma visão que reconheça e promova as manifestações culturais já presentes no local. Turistas nacionais e internacionais têm interesse em testemunhar a arte e aprender mais sobre a cultura maconde e não só.
Que a vontade de transformar em condomínios de luxo aquela zona não mate o traço único dos macondes, que carregaram consigo do planalto e, hoje, exaltam na capital de todos nós.
“O Cidadão Armando Emílio Guebuza e a Cidadã Maria da Luz Dai Guebuza não passam por momentos de muita felicidade, em suas vidas privadas! Lembre-se que a filha, Valentina Guebuza, foi barbaramente assassinada e o filho, neste momento, encontra-se enclausurado devido às famosas “dívidas não declaradas”. Contudo, porque Armando e Maria não se conheceram num passeio de praia ou de lazer, são pessoas que se conheceram no sofrimento, com a celebração dos 50 anos de casamento, vulgo “BODAS DE OURO”, mostram-nos que na vida existem momentos de felicidade e de tristeza, mas o mais importante é saber viver e conviver com tudo, porque a vida continua. Obrigado Armando Emílio Guebuza! Obrigado Maria da Luz Dai Guebuza, por mais esta lição de vida.”
AB
“A única coisa de que me lembro vivamente é de um acidente que tive. Estava fazendo um carrinho de criança. Para fazer as rodas utilizava caniço e era preciso cortá-lo com a faca para fazer o encaixe. E então, saiu-me este dedo aqui. Fiquei marcado para toda a minha vida.”
Armando Guebuza, In 69 anos, 1943 – 2012.
Não fui convidado, na celebração dos 50 anos do casamento entre Armando Emílio Guebuza e Maria da Luz Dai Guebuza, mas assisti parte da cerimónia, através das redes sociais, que desde as primeiras horas foram divulgando o evento ao pormenor, tornando-o mais popular do que se podia imaginar. A força das redes sociais, hoje, é superior a qualquer canal televisivo e as redacções de órgãos de comunicação, quer públicas ou privados, devem ter consciência disso.
Aquilo que para certos círculos poderia se considerar sem relevância nacional ou pública, tornou-se o assunto de suma importância, na minha opinião, por duas razões, a saber:
1) Armando Guebuza, para além de funções recentes de Chefe do Estado, desempenhou funções relevantes desde 1963. Sim, em 1963, quando decidiu aderir à FRELIMO em pleno Lourenço Marques e, nessa altura, já era uma pessoa a ter em conta, no âmbito do associativo estudantil;
2) Armando Emílio Guebuza é um exemplo no que diz respeito à solidariedade matrimonial, quer como Presidente da República e, sobretudo, como cidadão, mostrou, publicamente, o comprometimento familiar, estando sempre ao lado da sua amada esposa. O caro leitor pode questionar sobre a educação dos filhos, mas isso pode ser a consequência da entrega à causa do povo, do empenho nas tarefas político-partidárias e do Estado Moçambicano que, como se pode ver, ocuparam Armando Guebuza, pela vida inteira. Veja abaixo.
As tarefas aqui elencadas referem-se, tão somente, ao período do Governo de Transição e no Pós-independência. Mas, na verdade, Armando Guebuza, como referi atrás, vem se ocupando de causas de todos nós, desde a tenra idade. Das pesquisas que fiz sobre Armando Emílio Guebuza, por exemplo, fiquei a saber que começa a fumar na Cadeia Civil de Lourenço Marques, para onde fora preso, enquanto estudante e deixa de fumar nos anos 1967, devido à pressão de activistas anti-tabagistas. Entretanto, retoma o consumo do tabaco nos anos 1980, aquando da independência do Zimbabwe, passando do cigarro para o Charuto e do Charuto para o Cachimbo. Muito interessante esta constatação para mim, porque mostra, de forma clara e objectiva, que mesmo aquilo que aos olhos do mundo parecia vício de um jovem como outros, não é bem assim!
Falar de Armando Emílio Guebuza, é falar de um cidadão comprometido com a causa nacional, quiçá, com causas do mundo. Armando Guebuza é um cidadão cuja presença não deixa ninguém indiferente, seja porque se simpatiza com ele ou porque se trata de alguém com quem não se tem nenhum prazer de cruzar na rua. Mas, para todos os efeitos, provoca a sensação de presença de alguém, a quem se deve respeitar ou simplesmente odiar. Essa é, na minha opinião, a personalidade de Armando Emílio Guebuza. A nível pessoal, não tenho muito a dizer, mas a forma como se apresenta publicamente, com a sua esposa Maria da Luz Dai Guebuza, faz de Armando Guebuza um homem de quem nos devemos inspirar.
Acredito que existam muitas pessoas anónimas, como o casal Guebuza, contudo, no que diz respeito a figuras públicas, sobretudo, figuras políticas, Armando Emílio Guebuza e Maria da Luz Dai Guebuza são um caso particular, um caso a parte! Isto, claro, na minha opinião pessoal, por isso, dedico-lhes esta reflexão, uma reflexão por ocasião dos seus 50 anos de casados e devo dizer, aqui e agora, que esta reflexão surge, ou melhor, a ideia de uma reflexão surge depois de ver a abertura de sala por ocasião do casamento ou das bodas de Ouro. Uma música bem sugestiva, uma música que revela a essência de Armando Emílio Guebuza, um Pan-africanista!
“Talvez sejamos o único continente que partilha tantas cores nas bandeiras nacionais onde predomina o verde, amarelo, azul, preto, branco, que procuram expressar, de forma gráfica, o nosso património material e imaterial, bem como o orgulho que sentimos de sermos africanos, donos dos nossos recursos e o reconhecimento de quão custou a nossa liberdade e o nosso apego à paz e à unidade”.
“Retribuindo a solidariedade que recebemos, acolhemos nas nossas Zonas Libertadas, em Moçambique, neste processo de Luta de Libertação, ainda como Movimento de Libertação, outros nacionalistas que connosco vinham aprimorar os fundamentos da guerra de guerrilha. Depois de hastear a nossa bandeira multicolor, acolhemos igualmente os movimentos de libertação e cidadãos perseguidos por se oporem aos regimes ditatoriais nos seus países”,
In Armando Guebuza, Adis Abeba, por ocasião dos 50 anos do Pan-Africanismo e Renascimento de África.
O Cidadão Armando Emílio Guebuza e a Cidadã Maria da Luz Dai Guebuza não passam por momento de felicidade social, lembremo-nos que têm o filho preso e ainda choram a morte da filha, mas sendo uma família criada e temperada no sofrimento, não quiseram deixar este marco histórico, ou seja, os 50 anos de casamento passarem em claro, mostrando as famílias moçambicanas que na vida há de tudo, o importante é saber viver e conviver com isso. Mais uma vez, motivo de evocar e homenagear este casal que se conheceu nas matas de luta de libertação nacional de Moçambique e, apesar de estarem em nova fase, continuam juntos e firmes, vieram, publicamente, renovar o matrimónio. Obrigado família Guebuza, por este gesto humano!
Adelino Buque
Mas o que retornou ao pó de onde veio é a minha carne, não sou eu. Eu continuo viva em espírito, levitando nos mesmos palcos que fizeram de mim a parte pequena da luz do universo. Estou nesses escaparates em silêncio, sem dizer nada, mantendo porém o entusiasmo e a euforia dos tempos em que, como uma das pétalas do Eyuphuru, esvoaçava com alegria, usando a minha voz de passarinha matinal. Não me canso de agradecer aos briosos rapazes macuas que me encontraram na rua sem direcção e disseram, Zena, venha connosco!
Vivi os momentos mais felizes da minha vida, amalgamada numa banda alimentada por búzios de Muhipiti, parecia eu o motor, mas não, o motor era o próprio Eyuphuru, então esses rapazes eram a minha catapulta, sem eles jamais seria alguma coisa.
Recordo-me ainda das actuações inolvidáveis que fizemos no Mundo, com batuques e violas acústicas, aplaudidos sem parar pelas massas populares que vinham até nós, de vários cantos, atraídos pela nossa perfomance e pela voz do Gimo e da minha também. O Eyuphuru colocava-me como a estrela deles, são eles que me davam a luz, como o sol que faz isso à lua. Na verdade a luz que acendia em mim não era minha.
Hoje estou aqui de novo para agradecer ao Eyuphuru, não me canso, é por isso que sou feliz. Quando eles vão aos palcos, agora que sou uma galaxina, vou também e fico em silêncio ouvindo tudo e no fim do espectáculo recuso-me a ir com eles aos camarins, desço ao chão da plateia onde me junto ao mar de gente e ovaciono juntamente com aqueles que sempre nos aplaudiram. E como tenho esta possibilidade, aclamo também o Gimo Remane lá longe.
Sou eu, a vossa paixão, que um dia teve o privilégio de ser um poço elegido, ao mesmo tempo uma passarinha, como é bom! Afinal o meu corpo não passava de uma carcaça onde minha alma morava! Mas passei toda a vida cuidando dessa carne agora putrefatacta e tornada banquete dos vermes, com banhos diários e perfumes e batons e cremes, para que houvesse nela o brilho. Porém isso não me entristece, sem o corpo que me acolhia, não teria sido conhecida por vós.
Agora estou aqui em cima ouvindo música sem fim, e cantando também em coros transcendentais no seio dos meus antepassados e dos anjos anunciados. Os movimentos que aqui se fazem são comandados pelas harpas e cítaras e solfejos. E tudo isso faz-me lembrar os tempos áureos do Eyuphuru, é por isso que vim hoje para dizer Ochukuru!
Quando do Julgamento do “Caso Carlos Cardoso” o juiz da causa (Augusto Paulino) apreendeu o Bloco de Notas de um declarante (o inspector António Frangoulis). Este sempre recorria ao bloco de notas – do tempo em que era responsável pela investigação da morte do jornalista Carlos Cardoso - para responder com alguma precisão a uma e outra pergunta do juiz.
Um outro, e já agora, famoso Bloco de Notas é o do Ricardo Salgado, o então presidente do defunto Banco Espírito Santos (BES) de Portugal. Em um dos casos em que ele é acusado, e que responde em tribunal, o grosso da matéria investigada foi baseada no seu Bloco de Notas.
Pelo mundo fora existem muitos e bons exemplos da utilidade do Blocos de Notas que não sejam apenas os do caso do campo da Justiça. Por exemplo, os casos de livros de memórias de grandes estadistas que muitas vezes têm no Bloco de Notas a sua principal fonte de informação.
Tenho fascínio para esta última utilidade pública do Bloco de Notas. Nesta senda, tenho pensando em endógenos Blocos de Notas – e de figuras públicas nacionais de responsabilidades acrescidas - que já deviam ter vindo a terreio em jeito de livros ou, no mínimo, que sejam disponibilizados para serem consultados por outros para esse efeito.
Deixar que o Bloco de Notas destas figuras públicas nacionais fiquem em silêncio e a mercê de apetites de roedores é um atentado ao património nacional. Devia merecer um artigo em código jurídico apropriado, a menos que se recorra ao dispositivo que deteve o Bloco de Notas do inspector António Frangoulis, acrescentado uma alínea: a de apreensão para efeitos académicos e literários.
Nando Menete publica às segundas-feiras
“Caminhai célere, ó jovem povo do Quiteve, e vinde ouvir a história de Malidza, que morreu de amor. Uma grande ternura agasalhava-lhe o corpo de ébano (que ela protegia para Kilomko, o guerreiro) e punha nos seus olhos cintilações habitadas pelos génios antigos das florestas. O colo guardava a macia tepidez das sombras e era tão silenciosamente como a luz que Malidza percorria as veredas, as savanas. Requestavam-na os mais expeditos; transformou em temeridade a audácia dos mais valentes. Caíram alguns no calor das refregas, peito trespassado pela lança dos guerreiros de Maruça. Havia nas suas gargalhadas duas coisas: a alegria da brisa das alvoradas que despenteia as árvores e, também das árvores, a frescura da seiva.
Um dia apareceu na aldeia o nhamessoro para invocar Zúzu, o espírito das águas. Todas as moças acabadas de donzelar na última lua, espantadas ainda pelo prodígio grandioso de um pouco de sangue entre as coxas, dançavam então o seu espanto. Dois embondeiros soberanos, tão cheios de rumores eucarísticos como dois altares, cruzavam as ramagens por cima do terreiro lançando sobre as moças uma bênção de sombra. Malidza, como as outras, dançava. Dançava e ria. Kilomko, de longe, espreitava-lhe o corpo a requebrar-se nos espasmos da dança. Os seus feitos de guerra enchiam de espanto as aringas. Pela noite adiante, quando as famílias se acocoravam em torno das fogueiras, os mais velhos evocavam Kilomko e os mais novos tremiam de uma admiração sagrada.”
Carneiro Gonçalves (Contos e Lendas)
Este belíssimo texto tem oito brevíssimos parágrafos e é uma pungente e trágica história de amor. Kilomko encontrou Malidza, em certa madrugada, regressava ele dos seus combates. Diante do seu olhar, caiu-lhe a lança da sua mão invencível, pela primeira vez. Esperava desde então o fim das guerras para a desposar. Mas, um dia, o “nhamessoro” apareceu na aldeia para invocar o espírito das águas. No momento da dádiva, o mago poderia escolher a jovem que o impressionasse mais. Essa escolha recaiu sobre Malidza.
Mais não conto. A lenda está no livro “Contos e Lendas” ou em antologias de contos moçambicanos. O seu autor: Carneiro Gonçalves.
António Carneiro Gonçalves, nascido a 21 de Junho de 1941, morreu a 20 Janeiro de 1974, faz hoje 50 anos, num inexplicável acidente de viação, aos 32 anos, deixando não apenas este texto, que iria integrar o livro póstumo “Contos e Lendas”, editado pela mão do poeta Sebastião Alba (pseudónimo de Dinis Albano Carneiro Gonçalves), seu irmão, mas também contos que dariam para um outro livro e um romance escrito e reescrito. Era jornalista, deveria integrar, naquele ano, a redacção do “Expresso”, em Lisboa, viajava para a então Lourenço Marques, hoje Maputo, onde iria apanhar o avião para Lisboa, ia também no carro o poeta Julius Kazembe.
O prefácio do livro é um dilacerado elogio de irmão para irmão. Escreve Sebastião Alba: “Na noite de 20 de Janeiro de 1974, meu irmão ia ao volante, ao largo das estrelas. Seu companheiro de viagem ter-lhe-ia dito: “Carneiro Gonçalves, olha que noite!”; e o carro em que seguia despistava-se a vinte quilómetros de Vilanculos; ele morreria hora e meia depois, no posto sanitário dum areal nocturno. Tinha trinta e dois anos e – rigorosamente – o que sonhou. A mim, apenas quinze meses mais velho do que ele, fora destinado o definitivo infortúnio de escrever estas linhas.”
O texto de Alba é escrito vinte dias depois da tragédia e é o prólogo do livro que ele organizou. Traz duas lendas, entre as quais “Malidza”, contos e o fragmento de uma novela. Um ano antes, na revista “Tempo”, no suplemento literário dirigido por Rui Knopfli, que o entrevistara, o autor de “Contos e Lendas” deixaria a sua biografia sintética e magistralmente grafada: “Tenho trinta e um anos, vi a luz do dia em Braga, mas nasci em Tete. Faço questão de conhecer o Zambeze. Com os contos que tenho poderia pelo menos publicar dois livros. Lá virá o dia. Ensaiei um romance que reescrevi já algumas vezes. Ontem mesmo ia na primeira página...”
“Malidza” é um dos textos da minha mitologia literária. Acompanha-me desde o secundário. Nele fui sufragar o seu riquíssimo vocabulário, as expressões linguísticas, as metáforas. Um único parágrafo daria para discussão de uma aula inteira. O dicionário para encontrar o significado das palavras. O exercício da sinonímia. A riqueza vocabular, a riqueza semântica, a expressiva capacidade de contar, em pouco mais de três páginas, uma belíssima história seriam, para mim, uma grande lição de escrita.
Aprendi ainda, com este texto, que a narrativa ou a prosa não eram expressões despidas de poesia. Antes pelo contrário. A bela prosa era também a expressão cabal de boa poesia. O ritmo das frases. As suas metáforas. As suas imagens. O seu encadeamento. As suas invocações. A escolha das palavras. As palavras certas na frase. As palavras escolhidas com desvelo. As palavras ditas com enlevo. As palavras escritas com inequívoca beleza. A musicalidade das palavras.
Em 2005, foi publicado em Portugal o volume “A Escrita de Anton”, de Carneiro Gonçalves (organização e estudo introdutório de Calane da Silva e notas biobliográficas de António Sopa), que recolhe os textos que haviam sido dados à estampa na recolha “Contos e Lendas”. Acrescenta-se-lhe uma lenda pelo menos, alguns contos, crónicas e um punhado de textos puramente jornalísticos. Li o longo texto do Calane da Silva, polvilhado de muita informação, que ajudam a compor o perfil deste escritor desaparecido precocemente. Chamavam-no os mais próximos de Anton, o nome do seu primeiro contista predileto, Anton Tchekov.
Rui Knopfli num texto remoto dizia-nos: “Carneiro Gonçalves comete às letras moçambicanas o ânimo e a frescura do seu discurso lesto e elegante, de um rigor que não pactua com fáceis efeitos de embelezamento, antes se cinge aos calculados riscos de uma disciplina que é, simultaneamente, a da cultura e a de uma ática simplicidade. (...) Razão, talvez, por que a sua prosa desencadeia em nós a fragrância de um vinho novo e generoso, acidulado e nobre.”
Sebastião Alba aduziria na sua lancinante evocação: “Meu irmão caminhava em sombra; caminharia sem se voltar até ao fim das nossas vidas. E, afinal, era o que a todos nos restava dele. Não estou certo de que tenha feito uma boa escolha, pois de quase nada estou seguro. Como sucede com muitos de nós, ele acreditava que aquilo a que se chama a visão de um artista é a sua primeira imagem poética do mundo, essa que ao longo da vida se busca fixar num fundo de luz permanente. Vinte dias após a morte dele, não posso ainda impedir-me de esbarrar no que se me afigura uma evidência pavorosa: a obra desde já irrealizável e a que, algum dia, lograsse acabar, tiveram para ele um mesmo e último sentido.”
Carneiro Gonçalves tinha uma estranha predileção pela lua. A lua ou o luar são títulos de seus contos ou escritos, atravessam as suas histórias. Naquela noite de 20 de Janeiro de 1974, ele ia ao volante e terá dito o seu companheiro de viagem: “Olha que noite! Que luar tão lindo!”. Carneiro Gonçalves, ao que parece, fascinado com o luar, despistou-se entregue a essa visão sublime que o prendeu ali para sempre.
No texto de Alba, redigido próximo da morte do irmão, não aparece a referência ao luar: “Que luar tão lindo!” Calane da Silva acrescenta-lhe essa frase e diz que a confirmou de um amigo indefectível de Carneiro Gonçalves, João Schwalbach. Sou amigo, há mais de trinta anos, do Julius Kazembe. Sei que ele ia com o Carneiro Gonçalves naquela noite, falámos eventualmente de Carneiro Gonçalves, mas sempre evitei abordar a história e os pormenores de um dos trágicos acidentes que marcam a história literária de Moçambique. Hoje, para além de “Malidza”, que recitei ao largo desta noite de lua envolta numa perseverante neblina, voltei a pensar no meu amigo Julius Kazembe e no trágico destino do Carneiro Gonçalves. Um dos melhores entre nós. Passam 50 anos sobre a sua morte e uma nuvem espessa de desmemória e deslembrança cobre-lhe o nome e a obra. O que, de todo, não é estranho entre nós, onde avulta o olvido e a omissão, o descaso e o desapreço.
Cidade do Cabo, 20 de Janeiro de 2024