Há muito que a Administração do Estado moçambicano investe numa espécie de instituto prático de produção forçada de marginais, pessoas sem pudor, sem respeito pelo Estado e pela sociedade por mecanismos que visam a degradação do desenvolvimento humano, do exercício da cidadania e do espírito do patriotismo em várias dimensões, incluindo no sector da justiça, educação e saúde.
Um desses mecanismos é o notável investimento na cultura de “lambebotismo” e de exaltação incondicional do Partido no poder e da figura do Presidente da República. Através deste mecanismo, transforma-se até significativos quadros da República e académicos de grande relevo em marginais do sistema de governação do dia. Os “lambebotas” mais agressivos chegam a ser os promotores do discurso de ódio e assassinato de carácter de pessoas de bem e críticos da má governação e das injustiças.
Mais grave ainda é que há sinais de que praticam actos preparatórios para a efectiva eliminação física de cidadãos que se acredita estarem a incomodar o sistema de governação. Muitos desses “lambebotas” aceitam a transformação nesse tipo marginais na promessa de ganhar uma posição de revelo nos órgãos ou instituições do Estado, incluindo empresas públicas sob a protecção do Partido no Poder.
Trata-se, pois, de uma “imposição” de meio de sobrevivência humilhante para ter acesso às fontes de riqueza, ou seja, dinheiro e outros bens, entanto que sinais de bem-estar individual.
A criação dos famigerados “esquadrões da morte” é outro mecanismo de produção de marginais, particularmente pela destruição da boa conduta dos agentes da Polícia da República de Moçambique (PRM) e das Forças de Defesa e Segurança (FDS), que se tende a consolidar como uma forma de actuação do Estado para execuções sumárias, torturas e agressão à integridade física dos cidadãos. Tornou-se normal conotarem os agentes da PRM e das FDS como marginais devido à prática frequente de abuso de autoridade e brutalidade policial. Uma verdadeira conduta de marginais por parte de agentes investidos de autoridade estadual.
Outrossim, o recorrente processo sistemático e quase que generalizado da denegação do direito à educação é dos mais praticáveis mecanismos de produção de marginais no País, seja pela destruição ou marginalização do ensino público em benefício das escolas privadas e particulares por serem altamente lucrativas para os seus donos e/ou acionistas do ponto de vista monetário; seja por não pagamento de salários condignos aos professores e garantias de condições apropriadas ou condignas para o processo de ensino e aprendizagem nas escolas públicas; seja por não investimento num sistema de educação de qualidade com material escolar e escolas em quantidade e qualidade necessárias.
Com efeito, actualmente, há muitas crianças e jovens, os chamados vândalos, cujo direito à educação foi-lhes denegado e, consequentemente, relegados à marginalidade, sobretudo, por falta de oportunidades de emprego, condições de vida familiar condigna e devido à fome que lhes foi imposta por essa institucionalização da prática de produção de marginais no País.
A dificuldade no acesso ao emprego, a propositada criação de espaço para o desemprego e não pagamento regular dos salários e subsídios dos funcionários públicos, com destaque para os médicos, enfermeiros, outros profissionais da saúde e professores, são outros mecanismos eficazes de produção de marginais em grande escala que afecta directa e negativamente várias famílias que ficam, por sua vez, marginalizadas e sem oportunidades de fontes de rendimento, do direito ao desenvolvimento e acesso à justiça social. Os funcionários públicos são, assim, remetidos a uma vida de biscates e, na pior das situações, lançados em esquemas de corrupção para a própria sobrevivência.
Em bom rigor, as lideranças do Estado tendem, em várias, situações, a empurrar os funcionários públicos para a prática da corrupção como modo de actuação da Administração Pública, criando várias barreiras, incluindo a excessiva burocracia na tramitação de processos, como forma de fomentar a corrupção e tornar os funcionários públicos em autênticos fora da lei. Isto é, em marginais.
Relativamente ao judiciário, enquanto último reduto dos cidadãos para a materialização da almejada justiça, nota-se, em certas situações, para não generalizar, que os magistrados, tanto judiciais como do Ministério Público, não respeitam o Estado de Direito que se traduz na correcta aplicação da lei, nem respeitam a função jurisdicional que consiste, fundamentalmente, em realizar a justiça e assegurar o respeito pelos direitos e liberdades dos cidadãos.
Os magistrados, mesmo os do topo que deviam ser exemplo de integridade, como os da Procuradoria-Geral da República, do Conselho Constitucional, do Tribunal Administrativo e do Tribunal Supremo, em significativas vezes, comportam-se como marginais, ainda que de elite, na medida em que na tramitação dos chamados “processos quentes” violam o Estado de Direito e os seus deveres profissionais com vista a beneficiar o Poder Político ou interesses da elite política e económica, em detrimento do interesse público, dos direitos humanos e da justiça.
No contexto do actual conflito pós-eleitoral que se vive em Moçambique, é fácil perceber que o mesmo conflito resulta da prática de produção de marginais de elite nos órgãos de justiça eleitoral, no Governo do dia, na PRM e FDS que pela conduta marginal, praticam a fraude eleitoral, brutalizam os cidadãos, na maioria os manifestantes, vítimas da marginalização no acesso ao bem-estar e serviços sociais básicos pela prática recorrente e sistemática da má governação. A profunda fraude eleitoral que se contesta foi originada por marginais, de vários níveis e de diversificados sectores, criados pelo sistema de governação do dia.
Portanto, não é possível a construção do Estado de Direito Democrático e de Justiça Social pelos marginais que não respeitam a integridade e a lei do Estado, de tal maneira que a reconstrução e/ou reforma do Estado moçambicano para a efectiva paz, estabilidade social, económica, política e cultural também depende de um combate sério e eficaz contra o processo da institucionalização da prática de produção de marginais, os fora da lei, que fomentam pobreza, injustiça e que comprometem o futuro das gerações vindouras.
João Nhampossa
Human Rights Lawyer
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos
Jurisconsulto em Litigância de Interesse Público