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segunda-feira, 23 dezembro 2024 18:34

Moçambique, uma revolução sem revolucionários

Escrito por

 RevoProt

Há um processo revolucionário em curso em Moçambique. "PREC" (Processo revolucionário em curso) foi a sigla usada em 1974-1975 para designar a radicalização da Revolução dos Cravos, cujo 50º aniversário é comemorado no presente ano. O contexto é totalmente diferente, excepto num ponto: em ambos os casos, ninguém imaginava o que iria acontecer, ou seja, que um evento reconhecidamente importante (em 1974 em Portugal, um golpe de Estado militar; hoje, em Moçambique, eleições mais uma vez fraudulentas) provocaria um processo revolucionário. Mas a eleição de Trump e agora a queda do abominável regime de Assad na Síria silenciaram completamente a crise neste país da África Oriental, desde 20 de Outubro.

 

Na verdade, não é apenas mais um protesto contra eleições fraudulentas, como acontece frequentemente em África. Aparentemente, tudo começou a partir daí, é claro. As eleições de 9 de Outubro de 2024 foram, na opinião dos observadores internacionais, descaradamente fraudadas. O governo concedeu a si próprio um resultado (mais de 70% dos votos) em que ninguém acredita e que apresenta disparidades numéricas que a Comissão Nacional de Eleições (CNE), inclusive, se declarou incapaz de explicar, o que não a impediu de reconhecer a sua validade. A fraude é comum em Moçambique, especialmente desde as eleições de 1999 que muito provavelmente a oposição já tinha ganho – mas a comunidade internacional ficou aliviada por a Frelimo ter permanecido no poder. Um partido ex-marxista-leninista, um partido experiente nas relações com a comunidade internacional e um bom gestor da viragem neoliberal. Em 2004, 2009, 2014 e 2019, a fraude repetiu-se (com mudança de modalidades) a tal ponto que as regiões mais tradicionalmente favoráveis à oposição viram a sua taxa de abstenção recrudescer: que sentido teria o acto de votar? Em 2024, mais de metade dos moçambicanos não foi votar (mesmo tendo em conta o facto de alguns terem votado sem conhecerem os procedimentos e a favor de eleitores inexistentes). Tais regiões também foram as menos enumeradas (as máquinas apresentaram sempre avarias), a fim de reduzir o número de eleitores, enquanto, por outro lado, este último revelava uma cifra de 130% dos habitantes da fiel província de Gaza. Então, porque as eleições de 2024 são diferentes? Existem, pelo menos, dois conjuntos de razões que podem ser apresentadas.

 

Uma mudança de período

 

Em primeiro lugar, a população moçambicana é extremamente jovem, mais de metade dos habitantes tem menos de quinze anos e, por isso, a maioria dos eleitores não viveu a guerra civil (1976-1992). Os efeitos desta mudança demográfica começaram a ser sentidos em 2013, quando a oposição, se não fosse por um apagão atempado no momento da contagem dos votos, venceu as eleições autárquicas em Maputo e Matola, as duas principais cidades do sul, o coração histórico da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo, partido que liderou a guerrilha anticolonial de 1964 a 1974): os novos eleitores das duas referidas cidades agora podiam votar no partido que emergiu da rebelião pró-sul-africana, a Resistência Nacional de Moçambique (Renamo), o que teria sido impensável na época dos seus pais. O ponto de viragem aprofundou-se a partir daí: os partidos que emergiram do período pós-colonial (ou seja, o período "marxista-leninista" de 1975 a 1989, a guerra civil de 1976 a 1992, o período neoliberal pós-guerra civil durante o qual os dois partidos que dela emergiram mantiveram o sistema bipartidário moçambicano, 1994-2019) foram progressivamente mais contestados.

 

Este quadro ilustrou uma mudança no período histórico, o fim do período pós-colonial, sendo que a memória da guerra civil não se revelou mais estruturante para a vida política do país. No entanto, a Renamo quase conseguiu tornar-se o instrumento da contestação "pós-pós-colonial" do poder: depois de retomar uma guerra de guerrilha de baixa intensidade em 2012-2016, duplicou o número dos seus votos e deputados em 2014. Mas o seu líder indiscutível, Afonso Dhlakama, morreu no maciço da Gorongosa,  a partir de onde tinha estado a liderar operações, em Maio de 2018, tendo sido substituído por um general pouco expressivo que vivia na cidade há mais de vinte anos. A fraude nas eleições gerais de 2019 foi massiva (censo tendencioso, pressão máxima sobre os eleitores, expulsão de observadores, assassinatos, recusa de todos os recursos apresentados, etc.). Ainda assim, a Renamo continuou a ser o principal partido da oposição, e o seu candidato às eleições autárquicas na capital, Venâncio Mondlane, voltou a ser o vencedor em 2023. As eleições municipais do país foram alvo de fraudes óbvias, mas mereceram a aprovação da Comissão Eleitoral, excepto em quatro municípios. A mensagem subjacente indicava que no ano seguinte (em 2024), os comités locais da Frelimo poderiam 'ir em frente', pois não se tratava sequer de esconder a fraude, mas de deixar claro para todos que as eleições serviram para manter a Frelimo – que proclamou a independência do país em 1975 – no poder. Para as 150 famílias que são “donas” do Estado há cinquenta anos e passaram de burocratas "marxistas" a empresários, era totalmente impensável perder as eleições. Mas relativamente à massa de novos eleitores, a Frelimo já não era aquela que tinha conquistado a independência, construído escolas, hospitais, electrificado parte do país e resistido a uma guerra de guerrilha apoiada pelo apartheid.

 

Como resultado – o segundo conjunto de razões – a Frelimo tornou-se uma elite insolente e rica, especialmente desde a descoberta de enormes depósitos de gás no norte, a abertura de minas de carvão a céu aberto (ultra-poluentes por quilómetros de distância), minas de pedras preciosas (das quais os garimpeiros artesanais foram brutalmente expulsos para concedê-las a joint ventures dominadas por empresas estrangeiras) ou areias betuminosas. Todas as circunstâncias fizeram com que a elite vivesse por meio de comissões e serviços que só beneficiavam as sociedades das pessoas no poder, com enormes escândalos de corrupção. Em suma, um poder que é paulatinamente mais sentido como um autêntico enclave dentro do país.

 

A revolução em curso não é, portanto, apenas democrática – um protesto contra a fraude institucionalizada – tem uma profunda motivação social. Não são os slogans que se tornam os mais frequentemente apregoados ou escritos em cartazes "O povo no poder", "Revolução", "Queremos a independência do colono negro" (no sentido de "fora com os novos colonos negros"). Mas como chegamos aqui?

 

A transição falhada da Renamo

 

A Renamo não tem logrado acompanhar a evolução sociodemográfica da sua base. Enquanto o seu eleitorado era paulatinamente mais massivo nas cidades do sul – historicamente estabelecido principalmente nas cidades do norte e no campo – recusou-se a apresentar novos líderes urbanos e educados, renomeando os velhos soldados guerrilheiros. Assim, quando Venâncio Mondlane, engenheiro, conhecido por ter sido um ex-analista de rádio e televisão com um tom persuasivo, originário do sul como a maioria da elite da Frelimo, um evangelista, coroado com os seus sucessos autárquicos em 2013 e 2023 – tinha sido impedido de concorrer em 2018 – quis ser o candidato presidencial da Renamo (sem ser necessariamente o presidente do partido), ele foi impedido de participar do congresso de Abril de 2024 que reelegeu o presidente do partido, general Ossufo Momade, como candidato presidencial. Mondlane concorreu então como candidato independente e obteve o apoio de um pequeno partido que emergiu de uma modesta cisão na Frelimo, o Podemos ("Nós Podemos", Partido Optimista para o Desenvolvimento de Moçambique). De modo célere, tornou-se evidente que o novo eleitorado da Renamo que tinha surgido a partir de 2013 – na verdade mais "anti-Frelimo" do que "pró-Renamo" – e que afluiria aos suas comícios em todo o país, estava rapidamente a tender para esta nova geração de empresários políticos. Nas eleições autárquicas de 2023, organizou, sem o acordo do seu partido, desfiles na capital para celebrar a sua vitória antes de a Comissão Eleitoral proclamar vencedor o candidato da Frelimo, o que significa que não se mostrou favorável à submissão das suas queixas a órgãos de recurso totalmente controlados pelo governo. Fez o mesmo nas eleições gerais (provinciais, legislativas e presidenciais) de Outubro de 2024, estabelecendo uma contagem paralela com computadores e pessoas competentes – algo que a Renamo nunca tinha conseguido fazer. Ainda antes do anúncio oficial dos resultados, anunciou, com as actas das assembleias de voto em mãos, a sua vitória por mais de 60% dos votos em todo o país (excepto, provavelmente, na Zambézia, onde a oposição tradicional teria vencido). E apelou à população moçambicana para fazer valer tal resultado. A Renamo entrou em colapso, e foi relegada para terceira força política do país, com cerca de 10% dos votos e apenas 15 deputados a nível nacional.

 

Para mostrar a sua determinação de não ceder, o governo – sem dúvida – ordenou que o advogado pessoal de Venâncio Mondlane, Elvino Dias, e o representante nacional do partido Podemos, Paulo Guambe, fossem crivados de 25 balas cada um na noite de 18 para 19 de Outubro, no coração de Maputo. Venâncio Mondlane refugiou-se no estrangeiro (primeiro na África do Sul, onde também escapou por pouco a um assassinato). Mas desde então, todos os dias, no seu canal no Facebook, ele tem instado os seus apoiantes a levar a cabo mais acções de rua, o que é religiosamente aguardado por grandes multidões – indo, frequentemente, no entanto, além das palavras do líder.

 

Revolução plebeia

 

Na verdade, os manifestantes, na capital e noutras grandes cidades, mas também em cidades muito pequenas por todo o país, seguem sobretudo rapazes muito jovens e muito pobres que vão além dos slogans pacíficos de V. Mondlane, incendeiam a sede do partido Frelimo, atacam esquadras e tentam roubar armas, as comissões eleitorais distritais, que destroem as estátuas dos dirigentes, que os ameaçam revelando as suas moradas, e por vezes até os matam (como em Inhassunge): o medo começa a mudar de lado. Mas a classe média, que dificilmente se manifesta (excepto médicos, advogados, professores que já estiveram na luta antes) indica o seu apoio com intermináveis ​​panelaços nocturnos. A repressão é brutal, embora felizmente ainda não tenha provocado o banho de sangue que poderíamos temer: há provavelmente já mais de uma centena de mortos (em virtude do uso de munições reais, particularmente na grande cidade do Norte, Nampula), milhares de feridos e 3000 detenções.

 

O que é notável nestes protestos é que não existe qualquer dimensão étnica neste país tão heterogéneo. Do norte (mesmo nas zonas afectadas pela guerrilha islâmica) ao sul do país, há manifestações, ataques a locais simbólicos de poder, estátuas demolidas – incluindo a do líder maconde, Alberto Chipande que proclamou: “Daqui ninguém nos tira” (“Ninguém nos vai tirar daqui [do poder]”, cuja estátua foi demolida em Pemba, a principal cidade mais próxima das zonas da jihad. Há também orações públicas nas ruas, carros abandonados no local para bloquear o trânsito, a estrada nacional n.º 1 (Norte-Sul) esteve bloqueada, bem como a fronteira com a África do Sul. O governo dispõe de uma poderosa força policial militarizada, a Unidade de Intervenção Rápida, de formidáveis ​ serviços secretos (Serviços de Informação e Segurança do Estado, que monitorizam sobretudo a população), com uma força policial total de cerca de 100 000 pessoas, enquanto o exército dispõe apenas de alguns milhares de homens. Mas este exército até agora não cometeu qualquer violência contra os manifestantes.

 

Revolução ou caos

 

Como evoluirá a situação? Alguns sugerem a Venâncio Mondlane a possibilidade de formar um “governo de unidade nacional”. Isto já foi tentado no vizinho Zimbabwe, quando a ZANU-PF (Frente Nacional Nacional Africana-Patriótica do Zimbabwe), que tinha usado grande violência para permanecer no poder, conseguiu então que a oposição exausta se lhe juntasse no poder. A presidência e os principais ministérios que permaneceram na ZANU serviram sobretudo para desacreditar a oposição. Um governo de unidade nacional só pode, portanto, ser concebido após a organização de novas eleições monitorizadas internacionalmente.

 

A solução mais razoável seria que, antes do Natal, o Conselho Constitucional aceitasse anular todo o processo eleitoral e adiá-lo para uma data posterior, mesmo que isso significasse manter o presidente em fim de mandato, Filipe Nyusi, por alguns meses. Nada na sua história sugere que este Conselho o faça, mas não é impossível, dado o medo agora sentido pela elite cuja negação oficial (as manifestações são apenas actos de bandidos e terroristas manipulados desde o 'estrangeiro) não esconde o espanto horrorizado: a Frelimo já não é o povo e a Frelimo já não reconhece o seu povo, incluindo estes jovens que a odeiam de norte a sul do país, mesmo em Gaza. Não é impossível que o exército intervenha para restaurar a ordem – uma mudança para a política que não faz parte da sua tradição desde a independência – o que não significaria necessariamente apoio ao poder existente. Mas seria errado acreditar que o sujeito plebeu que já se manifesta há seis semanas regressará silenciosamente ao seu bairro de lata na periferia urbana, mesmo que seja encontrada uma solução política de transição. No dia em que Venâncio Mondlane regressar a Maputo, haverá uma multidão gigantesca para o receber e exigirá que seja imediatamente o novo Presidente. Esta multidão acredita nele, mas as exigências sociais estão aí, será necessário partilhar a riqueza e organizar novas eleições, será necessária uma profunda revisão institucional, com estruturas eleitorais verdadeiramente independentes do poder. Venâncio Mondlane quase não tem programa, não tem verdadeiro partido, mas o processo revolucionário em curso quer justiça, dignidade e mais igualdade.

 

A diplomacia francesa, por seu lado, faria bem em distanciar-se do poder moçambicano. Já na península de Afungi (extremo norte), onde a Total tem as suas instalações de gás, as mulheres manifestaram-se com cartazes indicando que “Moçambique não pertence a França”. Não há solução sem cancelar completamente as eleições e isso poderia ser dito. (Lundi Matin)

 

*Michel Cahen, historiador, é director emérito de pesquisa do CNRS no centro "Áfricas no Mundo" na Sciences Po Bordeaux.

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