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quarta-feira, 07 agosto 2019 06:03

60 milhões para quem gerir?

Ontem, já quase no final da “passerelle” dos discursos alusivos ao “acordo oculto” da Paz Definitiva, quando Federica Mogherini anunciou os 60 milhões de USD para as etapas subsequentes, vislumbrei alguns olhares reluzindo de contente. Vai haver boa fruta! Tecnocratas e lobistas que lidam com a mola que cai nas contas do Governo já estão esfregando as mãos, planeando seus recorrentes esquemas.

 

Mas este dinheiro, os 60 milhões, está directamente ligado à Paz Definitiva. Mogherini não foi detalhada sobre quem vai ser o beneficiário directo dos fundos. Também não era momento para determinar os Termos de Referência para o uso do montante, embora ela tenha dado a entender que o dinheiro era destinado a financiar projectos com efeito na população em todo o país!

 

Não! O dinheiro da Paz Definitiva não é para combater nossa pobreza geral. Não é para entrar no orçamento do Estado e desaparecer nos duvidosos critérios de distribuição de renda do Governo ou ser capturado nos sinistros processos de procurementcorruptos que caracterizam as intervenções do executivo no terreno.

 

Nem é para trazer para Moçambique uma catadupa de ONGs europeias (que também já esfregam as mãos), para virem cá meter esse dinheiro nos seus bolsos, com projectos com altas taxas de assistência técnica, que consomem mais de 60% de orçamento só para salários.

 

O dinheiro, deve ficar claro, é para a Paz Definitiva. Por outras palavras, é para financiar a reinserção social dos combatentes da Renamo e ponto final! Isto deve ficar claro e definitivo nos Termos de Referência. Haverá custos com a integração dos oficiais da Renamo nas Forças de Defesa e Segurança, mas estes devem ser custos marginais. O Estado deve arcar com o essencial desses custos.

 

Os 60 milhões não devem ser entregues ao Governo. Em Moçambique já há organizações não estatais com experiência na gestão deste tipo de projectos de reinserção social e devem ser convidadas a dar o seu contributo. Com sua comprovada experiência e inserção cultural e geográfica no território nacional, esses dinheiros serão aplicados de forma mais efectiva para uma paz sustentável. Importa recordar que o calar das armas não significa necessariamente a Paz. É preciso que a pobreza e exclusão social e económica sejam atacadas por quem já provou, aqui na nossa terra, que sabe como isso se faz. Os 60 milhões nas mãos do Governo comportam um risco tremendo: o risco de todo o edifício pensado para a Paz Definitiva ruir mesmo antes de se escavar as suas fundações. 

terça-feira, 06 agosto 2019 07:16

Mbata Nhalégwè no lançamento do meu livro

Estou no acto do lançamento do meu primeiro livro, em 2001, na cidade de Inhambane. O título é esse mesmo: Inhambane Sem o Badalo, uma homenagem à figuras que estarão por todo o sempre ligadas aos cheiros desta cidade elevada - pela minha imaginação nas paródias - ao lugar mais sossegado do Mundo. É uma colectânea de crónias recebida com estupefação pelos cépticos, que me achavam incapaz de ressurgir das cinzas depois de longos anos chafurdando na lama. Desnorteado. Será também a obra que me fez sentir um pequeno deus, por isso autorizado a enfiar as mãos nos bolsos e assobiar em liberdade pelas ruas e pelos atalhos e pelas sinagogas, passeando em paz. Com vaidade.

 

No evento, de entre os demais ilustres e pessoas do vulgo, esteve lá um homem que vai ser lembrado eternamente pelos espectáculos de pico que proporcionava na baliza. Pela audácia. Chama-se Mbata Nhalégwè, um guarda-redes notabilizado no Clube Arrera Kwara, e depois celebrado em toda a província onde era alcunhado “guiwonga” (gato). Extravazava classe em todos os movimentos. Exuberância. Plenitude.

 

Mbata Nhalégwè ficava encostado ao poste, de braços cruzados, pernas em tesoura, quando o jogo fosse despejado – ou pelo corredor central, ou pelas “asas” - para a baliza contrária, como se estivesse à espera serenamente de alguém, ou lucubrando na memória. Mas quando o perigo corresse na sua direcção, ele dançava como um dançarino de mapiko, media os ângulos com as mãos, gritava para os defesas seus colegas, por vezes saía da área e  logo a seguir voltava a correr para o seu reduto de costas voltadas para a bola, deixando tudo o resto por conta dos sensores implantados no seu corpo e espírito.

 

Os pontas-de-lança, ou os médios ou médios-avançados, podiam desferir mortíferos remates enquanto Mbata retornava à baliza naquele movimento subreal, e este, assim mesmo, de costas para o jogo, em corrida, como um gato feiticeiro, rodopiava no ar e impedia a trajectória fatal da bola. Tinha manápulas mágicas. Buscava o esférico no ar num gesto de quem colhe, como um maroto inesperado, uma laranja no ramo mais alto da árvore. E é isto, e muito mais, que vai tornar Mbata um guarda-redes idolatrado e festejado em toda província de Inhambane, no seu tempo de glória.

 

Hoje, em 2001, vejo um homem movendo-se no corredor da sala onde decorre o lançamento do meu livro. É extraordinariamente alto, cabeleira farta, completamente esbranquiçada, parecendo de prata. Procura com os olhos uma cadeira livre para se sentar e a primeira vista não há cadeira desocupada. A sala está absolutamente cheia porque o meu nome ribomba por estas bandas. Reboa até aos bairros mais longíquos onde também serei festejado como Mbata Nhalégwè, por todas as trafulhices que andei a fazer por aqui, e pela música de blues que vou cantar, sem saber nada de blues, nem nada sobre a escala diatónica.

 

O homem não encontra lugar para sentar. Orbita sobre o seu próprio eixo lembrando os dias dos jogos das estrelas  e, resignado como nunca esteve no campo de futebol, recua e encosta-se na porta da entrada, na mesma posição habitual de quando brilhava como um astro, desde os meados da década de sessenta, até princípios da década de oitenta: braços cruzados e pernas em tesoura. Olhei para ele e reconheci-o logo, era o Mbata Nhalégwè naquele estilo característico que recusa desvanecer apesar da idade. Nesse momento falava o governador de Inhambane, bajulando-me, e eu estou pouco me lixando para as bajulações. Mas o “boss” teve que interromper o discurso quando viu um homem que se destacava pela sua peculiaridade física, encostado à porta de braços cruzados e pernas em tesoura. Era o Mbata Nhalégwè, agora convidado por “Sua Excia” a ocupar a única cadeira vaga que se dispunha na fila da frente, reservada aos “responsáveis”.

 

Lá vem ele pelo corredor, estiloso, tranquilo, sereno, transcendental. Há silêncio na sala. Todos estamos paralisados. Mbata Nhalégwè faz uma vénia ao governador, enclina-se para pegar pela mão esquerda o encosto da cadeira, antes de se sentar. É um homem longelíneo. Virou-se para a plateia e saudou-a vocalizando palavras simples que ainda hoje me ressoam na alma: “este lugar não é para mim!”. Virou-se  para o governador e disse, “muito obrigado, Excia”.

 

Houve uma forte salva de palmas. E antes de se sentar – como um mamute – Mbata Nhalégwè disse mais, dirigindo-se à plateia: “é uma uma grande honra e privilégio, participar no lançamento do livro do Alexandre, uma pessoa que fala sempre de mim como se eu fosse alguém, quando na verdade ele é que é alguém!

 

Houve outra estrondosa ovação, com as pessoas de pé, incluindo o governador da Província, que já não sabia o que fazer!

terça-feira, 06 agosto 2019 06:17

Mais um acordo aprioristicamente fracassado

Hoje é mais um daqueles dias em que se assina mais um daqueles habituais acordos de paz efectiva, fim das hostilidades militares, cessar fogo e afins. Iremos todos jubilar de alegria e amanhã passa. Depois vamos fazer uma nova lei eleitoral, vamos pôr uma vírgula na Constituição, vamos sentar num tronco em Satungira, vamos tirar mais uma foto abraçados com aquele sorriso administrativo e, por fim, vamos assinar mais acordo de paz efectiva. E vamos acreditar que a tal paz é mais efectiva que as outras. Vamos dizer também que desta vez é de vez.

 

Com um pouco de azar, o nosso calendário não terá mais espaço para comemorar nada mais que seja útil. Com esta moda de hoje em dia de se comemorar dia da cerveja, da prostituta, do idiota, do parvo, da rabuda, do zamwamwa, do invejoso, etecetera, já não haverá mais dia para trabalhar a vontade. 

 

Mais do que assinar mais um acordo, talvez fosse importante saber o que deu errado com os anteriores acordos e aprender com eles. Se o problema dos anteriores acordos foi o seu cumprimento, então estamos perante mais um fracasso apriorístico. O problema de cumprimento não afecta apenas os acordos de paz ou de fim de hostilidades militares ou de cessar fogo. Nós temos problemas sérios em cumprir com a nossa palavra. A violação desses acordos é apenas a ponta do "aiciberg". Nós nem respeitamos a nossa própria  Constituição da República.

 

Nós temos problemas sérios em cumprir. Aliás, é por causa disso que hoje estamos endividados até à goela e estamos a nos apontar um ao outro. Foi por não ter-se respeitado a lei que um grupinho de concidadãos foi buscar dinheiro à revelia do órgão competente. E foi também por causa da falta de seriedade com responsabilidades atribuídas que um grupinho de infelizes introduziu esta dívida no orçamento do Estado.

 

Se os acordos têm fracassado por falta de seriedade no seu cumprimento, então, hoje é só para passar o dia. Será mais um tratado fracassado. O problema, por acaso, nem são os acordos, somos nós. O problema é ético.

 

- Co'licença!

segunda-feira, 05 agosto 2019 06:40

O perdão conveniente do Estado

Neste país quando se fala de "amnistia" é para soldados da RENAMO e "indulto" para prisioneiros. Não me lembro de outro cidadão que tenha sido perdoado a não ser, talvez, aquele gatuno-fosfórico que anda por aqui dando aulas gratuitas de exaltação patriótica. 

 

domingo, 04 agosto 2019 15:31

Os novos “bandidos armados” da Renamo

Com o acordo de cessação das hostilidades, rubricado pelo PR Filipe Nyusi e pelo líder da Renamo Ossufo Momade, surgiu um grupo se colocando como o único empecilho para que Nyusi celebre eternamente o estatuto do derradeiro pacificador de um conflito que mergulhou Moçambique no sangue durante décadas a fio: os dissidentes da Renamo. Há quem acredita que estes dissidentes têm potencial para perigar a paz. Até é possível.

 

O grupo é composto por generais do “innner circle” da guerrilha de Afonso Dhlakama, que deram seu corpo e alma às “causas” da luta. Queriam o poder de veto no processo decisório interno, mas Ossufo Momade deu-lhes costas. Têm armas e controlam bases do interior. Mas as possibilidades da sua persistência na hostilização violenta contra o poder do Estado (reivindicando um poder dentro da Renamo) parece-me limitada.

 

O acordo Nyusi-Momade carimbou também uma aliança FRENAMO (Frelimo/Renamo), que agora se junta, em coligação, contra os dissidentes. Ou seja, o grupo que insiste na rebeldia tem agora o Estado e boa parte da Renamo do outro lado da barricada. O acordo Nyusi-Momade foi celebrado por parte da facção guerrilheira da Renamo e pela totalidade da facção política da Renamo, desde os “tachistas” parlamentares a toda uma panóplia de políticos, dhlakamistas ou não, espalhados pelas capitais provinciais.

 

Por outras palavras, os dissidentes actuais da Renamo não têm suporte político (a não ser que depois das eleições apareçam políticos se juntando aos guerrilheiros nas matas numa reivindicação contra a fraude – coisa que só Afonso Dhlakama sabia fazer). Mas ainda ontem vimos a Ivone Soares marchando em celebração do acordo. Os dissidentes têm, pois, uma capacidade de barganha limitada. A opinião pública é contra mais matança nas estradas e a comunidade internacional também está cansada das nossas desavenças de sangue.

 

Os anteriores acordos entre o Governo e a Renamo, como o de 2014, falharam por causa da capacidade de Afonso Dhlakama de enxergar a maracutaias da Frelimo e mobilizar, ao mesmo tempo, suas energias políticas e militares. Dhlakama foi-se e não deixou um sucessor com sua dimensão e carisma para dar continuidade ao seu estilo de luta.

 

Os dissidentes reivindicam um espaço dentro da Renamo, acusando Momade de falta de legitimidade. Mas o acordo FRENAMO mostrou que isso já não interessa. Quem da Renamo não entrou na onda do acordo não passa agora de um bandido atirando contra a segurança do Estado. São os novos “bandidos armados”, sem qualquer tipo de legitimidade. Depois da assinatura em Chitengo, quando se soube de novos ataques nas estradas, Nyusi frisou que esse banditismo vai ser combatido ferreamente. Aliás, tudo vale agora para que a paz aconteça dentro dos anos de vigência do nyussismo.

 

A dissidência na Renamo vai ser mesmo capitalizada pela Frelimo, para eliminar todos os vestígios bélicos da guerrilha. Simbolicamente, para os novos “bandidos armados”, seria como que uma segunda morte de Dhlakama, com o beneplácito de toda a facção política traidora da Renamo, que ambiciona o conforto de Maputo.

 

Nos próximos meses, vamos ter algum sangue nas matas, com eleições de permeio. Depois o teste crucial será ver com que armas é que a Renamo fará a reclamação da fraude eleitoral, de que é useira e vezeira. A Renamo da FRENAMO está mesmo preparada para fazer a luta política nos espaços tradicionais, tal como em Angola a Unita aceitou as benesses do poder e se restringiu ao parlamento, ou vai tentar fazer renascer, depois de Outubro, o novo “banditismo armado”? Alô Novembro!

quinta-feira, 01 agosto 2019 08:27

O país poético

Se fôssemos um país sério, o Presidente Filipe Nyusi já devia ter sido distinguido com um prémio literário qualquer. Aqueles poemas que o Presidente Filipe Nyusi anda a ler no Parlamento merecem algum reconhecimento. Não podemos desprezar o esforço do nosso compatriota desta maneira. Podemos estar perante um Craveirinha e sem nos darmos conta. 

 

Não é fácil falar duas horas sem dizer nada. Não é fácil chamar alguém de "zamwamwa" e o gajo ainda aplaudir. Não é fácil retratar o sofrimento de um povo de forma tão romântica e poética.   

 

Nyusi consegue dizer que não está a fazer nada sem se ofender a ele próprio. Aliás, ele diz isso de forma tão lírica que ele próprio acaba acreditando que está a fazer alguma coisa. Nyusi acredita que de estado da nação "estável" para "firme" e de "firme" para "resiliente" há uma grande súbida. Acredita ele que entre "encorajador" e "merecedor de confiança" é há um grande avanço.

 

Nyusi proporcionou-nos um mandato poético. Um mandato em que os gatunos e o Judiciário foram tratados com muita figura de estilo. Um mandato em que a pobreza é irónica e a pobreza é sempre uma metafora. Um mandato em que uns vivem no presente e outros, no futuro, onde leões comem mandioca. 

 

Enfim, para Nyusi, o país é poético.