Temos o privilégio de estar aqui, hoje, Dia do Advogado Moçambicano, a dar o nosso ponto de vista, a apresentar a nossa doxa – qual fonte por excelência do erro, como arguiam certos círculos da Grécia Antiga! – sobre O Papel da Ordem dos Advogados de Moçambique (OAM) no Processo de Elaboração Legislativa, num momento particularmente preocupante da nossa democracia multipartidária, marcado pela abundância de soluções e técnicas legislativas que significam tudo menos o progresso nesse tema.
Exemplos dessa ausência de progresso, cujo apanágio nos parece ser, perdoe-se-nos o eventual exagero, integram a panóplia de retrocesso legislativo que se assaca de instrumentos como o Código Comercial, que é uma excelente simbiose de conceitos e institutos indevidamente representados e de exacerbado recurso ao gerúndio, qual brasileirismo, e o Código de Processo Penal, por via do qual se engendrou um dos maiores ataques à cartilha e disciplina de direitos fundamentais de que se tem memória no período pós-independência, no que pontificam atropelos como o da ilimitação ou quase-eternização da prisão preventiva, como se esta já tivesse deixado de ser uma medida de coacção constitucionalmente tutelada.
Por falar em Dia de Advogado Moçambicano, talvez seja momento de começarmos a pensar na ampliação da celebração do que funda uma efeméride destas para algo maior, que a todos pudesse formalmente beneficiar, que seria a consignação do 14 de Setembro como Dia do Estado de Direito Democrático, conhecidas que são, da nossa história, as lutas de certos e destacados causídicos em prol da dignidade da pessoa humana, no que destacaria, no período anterior à Independência Nacional, nomes como os de Almeida Santos e de Rui Baltazar, e, na Primeira República (de 1975 a 1990), nomes como os de Domingos Arouca, Máximo Dias e Simeão Cuamba, ainda que, muitas vezes, virtualmente, naturalmente não por causa de uma pandemia análoga à COVID-19, mas por conta de algo talvez mais profundo: desrespeito pela dignidade da pessoa humana.
Claro que não ignoramos que estejamos, ainda, numa situação de devir, ou seja, num quadro de garantia meramente formal deste importantíssimo princípio, o do Estado de Direito Democrático, conforme, aliás, defendeu em 2015 o Dr. Rui Baltazar, em palestra que proferiu por ocasião dos 10 anos do jornal O País.
Com efeito, referiu nessa ocasião o Dr. Rui Baltazar que Moçambique ainda está muito longe de concretizar um verdadeiro Estado de Direito Democrático, embora esteja a experimentar, há já mais de duas décadas, um sistema político multipartidário, marcado pela realização de eleições regulares.
Feito este longo intróito, no qual a expressão-chave é Estado de Direito Democrático, vale a pena iniciar o cerne da abordagem a que fomos chamados, nomeadamente com algumas notas sobre as atribuições, quais funções ou, mesmo, responsabilidades, da OAM.
A OAM e o Processo Legislativo Doméstico
Se quiséssemos ser formalistas, nos limitaríamos a dizer, quanto ao Papel da Ordem de Advogados no Processo Legislativo, que o mesmo se resume na efectivação da norma contida na alínea c) do número 4 do Estatuto da OAM, aprovado pela Lei número 28/2009, de 29 de Setembro:
“[São atribuições da OAM] Contribuir para o desenvolvimento da cultura jurídica, para o conhecimento e aperfeiçoamento do Direito, devendo pronunciar-se sobre os projectos de diplomas legais que interessam ao exercício da advocacia, ao foro judicial e à investigação criminal”.
Essa putativa perspectiva formalista, ou minimalista, se quisermos, seria problemática, se se considerar que dela se extrai um “erro indesculpável” do legislador ordinário, que não incluiu na há pouco citada norma a obrigatoriedade de a OAM se pronunciar sobre empreitadas estruturantes como a revisão constitucional.
Até porque a mesma norma nos levaria, quando confrontada com certos processos legislativos recentes, a consubstanciar, com toda a facilidade, o desrespeito das regras de jogo por parte do legislador, conforme o espelha a última revisão do Código de Processo Penal. Para que não haja dúvidas, muito menos equívocos, partilhamos que, em nosso entendimento, um pretenso envolvimento da OAM, dando-lhe três dias ou algo muito próximo para se pronunciar, não passa de uma infeliz tentativa de legitimação de um desiderato já decidido.
Aliás, na já citada palestra proferida em 2015 pelo Dr. Rui Baltazar, ele disse algo ao mesmo tempo profundo e vergonhoso para todos nós como país: Que a Assembleia da República não tem como ser procedentemente chamada de ‘Casa da Democracia”, uma vez que, não poucas vezes, funciona como uma espécie de ‘cartório notarial’, chancelando, em forma de lei, decisões já tomadas noutras entidades, no que se incluem, acrescento eu, as de direito privado.
Sobre O Papel da Ordem de Advogados de Moçambique no Processo Legislativo, julgo que o essencial dessa função se integra em algo que é género, algo macro, de que o demais será espécie, algo micro: a defesa do Estado de Direito Democrático, princípio constitucional consignado no artigo 3 da Constituição da República de Moçambique (CRM), extraindo-se as responsabilidades da OAM nesse domínio a partir da conjugação dos artigos 73, 78 e 56, também da CRM, o que se acha de certa forma densificado na norma da alíena a) do artigo 4 do Estatuto da OAM.
Na verdade, o artigo 73 da CRM se ocupa do princípio de permanente participação do cidadão na vida da Nação, no que se incluem os advogados e advogados estagiários, individualmente vistos. E a interacção sistemática com os seus representantes na AR, sobretudo em sede da discussão de projectos ou propostas de lei, é uma das formas de materialização desse princípio fundamental.
Já quanto às responsabilidades da OAM, o artigo 78 da CRM, que a seguir o transcrevemos ipsis verbis, nos parece por demais claro:
“Artigo 78
(Organizações sociais)
Talvez valha a pena recordar que, em rigor, a expressão ‘Estado de Direito Democrático’ é considerada como sinónima à denominação ‘Estado Social de Direito’, tendo a preferência pela primeira, conforme expende Jorge Miranda (2017:75), que ver com as conotações que a segunda teve antes do 25 de Abril de 1974 em Portugal, efeméride que marcou o fim da ditadura e acelerou o processo da independência do nosso país do jugo colonial português.
No princípio do Estado de Direito Democrático, subjaz, pois, a confluência de duas ordens de princípios, nomeadamente de natureza substantiva – o da soberania do povo (número 1 do artigo 2 da CRM) e o dos direitos fundamentais (artigos 42 e 43 da CRM) – e de natureza adjectiva, como sejam o da constitucionalidade (número 4 do artigo 2 da CRM) e o da legalidade (número 3 do artigo 2 da CRM).
Quanto à centralidade e premência do princípio do Estado de Direito Democrático ou do Estado Social do Direito na compreensão do Papel da Ordem dos Advogados de Moçambique no Processo Legislativo, o legislador constituinte foi feliz ao inserir, no prêambulo da CRM de 2004, que é a que está em vigor, o seguinte postulado:
“A Constituição de 1990 introduziu o Estado de Direito Democrático, alicerçado na separação e interdependência dos poderes e no pluralismo, lançando os parâmetros estruturais da modernização, contribuindo de forma decisiva para a instauração de um clima democrático que levou o país à realização das primeiras eleições multipartidárias”.
Julgamos não restarem dúvidas quanto ao crucial papel que a OAM tem na monitoria do efectivo funcionamento da democracia moçambicana, ao mesmo tempo que deve assumir inequivocamente o seu papel de contrapoder, sem necessidade de esperar, por exemplo, pela aprovação da Lei de Participação Pública no Processo Legislativo, o que já regista mais de 10 anos de atraso.
Em Jeito de Conclusão
Sendo a contínua participação do cidadão na vida da Nação um direito fundamental, tal como consignado na parte final do artigo 73 da CRM, e sendo os direitos e liberdades fundamentais directamente aplicáveis, no que se acham vinculadas as entidades públicas e privadas (número 1 do artigo 56 da CRM), a OAM, qual organização social com afinidades e interesses próprios, de resto integrada no artigo 78 da CRM, deve socorrer-se de todos os mecanismos legais para efeitos de maximização do seu contributo na consolidação do ainda incipiente Estado de Direito Democrático em Moçambique, incluindo a participação efectiva no processo legislativo. Nesse processo, ou nessa luta democrática, a OAM deve ter presente que raras vezes os direitos são dados de bandeja em contextos similares ao de Moçambique, classificados pela literatura de Ciência Política como sendo um ‘Estado Autoritário’.
Por último, mas nem por isso menos, sugerimos que a OAM proponha a aprovação duma Lei do Procedimento Legislativo, uma vez que tanto o Poder Executivo como o Poder Judiciário têm o que designaria por “leis de processo” – Lei 14/2011, de 10 de Agosto, para o Poder Executivo, e vários códicos de processo, para o Poder Judicial –, mas o Poder Legislativo, a Assembleia da República (AR), não possui uma lei que regulamenta objectivamente os procedimentos da sua actividade e relacionamento com o cidadão e outras entidades.
(Ericino de Salema é jornalista e advogado. Texto apresentado ontem num evento da Ordem dos Advogados de Moçambique, mais concretamente num painel denominado “O Papel da Ordem dos Advogados no Processo Legislativo”. Título da responsabilidade da Carta)
Esta pretende-se uma homenagem a uma amizade que prometia ser grande, muito grande, mas que uma ida a Cuba a interrompeu para todo o sempre... Uma amizade que começou como tudo normalmente começa, em casa, com os progenitores e vai crescendo de forma natural e infunde-se pelos “continuadores”.... Amizade não a de irmãos de sangue, mas a de não irmãos, de pessoas que não têm laços de familiaridade, mas que o destino as une e as direcciona.
No longínquo ano de 1977, estava eu no Centro Educacional de Malehice, em Gaza, que juntava o Centro Internato de Malehice e a Escola Secundária de Malehice, a frequentar a quinta classe. Isto é, havia alunos que viviam no internato e estudavam na escola situada no mesmo espaço territorial. Éramos por aí uns duzentos alunos provenientes de várias partes da província de Gaza e alguns poucos de Maputo. Não me lembro se haveria ali estudantes provenientes de outras províncias…
Sorte a minha, ou a do Firmino, ou ainda, de ambos! Logo à chegada, no início de Fevereiro, quem encontro ali é o filho de um amicíssimo de meu pai, o Firmino - que já conhecia! Foi uma boa surpresa para ambos! O meu dia-a-dia passou a ser com o Firmino Salvador Mabasso. Calhou dormirmos no mesmo quarto e estarmos na mesma turma. Quase tudo acontecia para nós e conosco ao mesmo tempo: futebol, neca (brincava-se muito à neca), banho no rio, na zona baixa de Malehice, refeições e outras coisas mais. Foi em Malehice que aprendi a nadar. Íamos à baixa do rio nadarmos, competirmos, uma tarde inteira.
A amizade entre nós estava a nascer e a consolidar-se e devia já ter por aí uns três meses… e não durou muito mais do que isso, infelizmente! Certo dia, o director da escola e uns dois professores entraram na nossa sala de aulas para selecionar alunos para seguirem para Cuba… na altura ninguém sabia claramente para quê; só mais tarde é que viemos a saber que era para a continuação dos estudos…
Sentados em filas, como acontece até agora nas salas de aulas, lado a lado estávamos nós. O professor começou a apontar os alunos com o seu dedo indicador da mão direita. E o seu dedo indicador foi para… o Firmino! O Firmino Salvador Mabasso. Assim escapei de ir para Cuba! Por um triz. Nunca percebi como escapei… o dedo foi um metro para o lado! Não porque desejasse ir para Cuba, mas, como jovem que ainda não sabia bem o que queria na vida, era-me indiferente! Como não houvesse muito tempo, dias depois, seguiram para Xai-Xai, onde se juntariam a outros seleccionados noutras escolas e depois partiriam para Cuba. A amizade que começava, ou que já fluía, foi interrompida… por uma ida a Cuba! A pátria chamara pelo amigo. E, assim, eu e o Firmino desaparecemo-nos até hoje… ‘até hoje’ não, até à eternidade…
A amizade com o Firmino começou a traçar-se muito cedo, nas nossas casas. Os nossos pais eram professores primários no mesmo posto administrativo de Godide, como chamamos hoje - na altura chamava-se circunscrição de Mutxuquete. O professor Mabasso lecionava em Munhangane e o professor Eugénio em Mugunwane; depois, o primeiro passou para Ntxanwane e o “velho” foi substituí-lo em Munhangane. Vezes sem conta, trocavam copos nas cantinas de Phussa, ou em Chipadja; visitas e almoços em casa um do outro e cada um deles levava a sua família, a esposa e os filhos. Estamos nos finais dos anos 60 e princípios da década de 70.
Assim, conhecemo-nos eu e o Firmino, ambos teenages, como diriam os ingleses! E, como também se diz, tal pai, tal filho… quando nos encontramos em Malehice, foi… zás… colamo-nos! Colamo-nos até aquele dia em que a directoria da Escola de Malehice veio “apontar o dedo” a ele. Desde então, nunca mais nos vimos nem ouvimos! A vida não era como agora em que basta ter megas… seria necessário escrever cartas, postar, etc., etc. O coração aguentou, aguentou, desejou e desejou, mas nunca encontrou a mais pequena que fosse a informação. Até que um dia… há sempre um dia… resolveu fazer buscas e o local escolhido foi o “feice”! Segundo se diz, e é muito verdade, quem procura encontra! Encontrei… Encontrei a informação que desejava ardentemente. Ainda que triste! Mas antes assim. O coração está mais tranquilo!
Os compatriotas que com ele seguiram para Cuba indicam que o Firmino Salvador Mabasso estudou agricultura e, no regresso, foi colocado a trabalhar nas terras de Chókwè, na província de Gaza, o ex-futuro celeiro da nação. Foi lá onde, fortuitamente, perdeu precocemente a vida, pouco tempo depois de voltar da terra de Fidel Castro. Fortuita e precocemente… vinham de uma partida de futebol - e nós já gostávamos de jogar futebol em Malehice… - em Chilembene e a canoa em que seguiam virou e ele foi o único preso e apertado e, sufocado, perdeu a vida! Em 1988…
As palavras acabaram! Fica aqui a homenagem a uma amizade que prometia ser grande e duradoira… não chegou a ser, uma ida a Cuba a interrompeu!
Firmino Salvador Mabasso. Que a tua alma esteja a repousar em paz!
ME Mabunda
Renato Caldeira, um dos jornalistas desportivos mais fervorosos e competentes da nossa história, publicou em 1994, no jornal “Desafio”, uma reportagem sobre a transferência de Chiquinho Conde, de Moçambique para Portugal, e chamou um emocionante título para o texto, que fez escorrer o coração: “Hambanine m´fana!” (Adeus rapaz!). Tratava-se – a partida desse irreverente beirense - do abrir tardio da página de um livro que ficou fechado cerca de duas décadas, desde que a Independência de Moçambique chegou, e impediu que muitos jogadores do nosso país fossem brilhar em grandes estádios do mundo. Onde a glória lhes esperava. Em vão.
Mas Chiquinho batia as asas numa altura em que o nosso futebol parecia estar a apresentar em palco, os últimos números de um espectáculo corporizado por grandes actores, nascidos para jogar no cimo da montanha, porque depois as luzes começaram a ter falta de néon. O Estádio da Machava, em si mesmo, foi perdendo a aura da grande catedral que era, pois já escasseavam futebolistas da jaez daqueles que tinham “pendurado as botas” por força irrecusável da idade. Então teve início o declínio, que dá a sensação de estar a prolongar-se até aos dias de hoje.
Jamais foram necessários os espectáculos de música nos campos para a convocação das massas. Não serão os paraquediastas o centro das atenções, esses eram lançados em agradecimento aos briosos jogadores e ao público que invadia o vale do Infulene aos magotes, na ânsia e na certeza de que seria brindado por um jogo da primeira linha. Não eram esses condimentos que arrastavam os sedentos, era o próprio futebol. Porém, hoje, o chamariz de cartaz para o Estádio do Zimpeto, é a Liloca e suas bailarinas. Isso signifia que estamos a descer por um carreiro íngreme.
Antes do jogo do Black Bulls, frente ao Petro Atlético de Luanda, os dirigentes do clube local vieram a terreiro aliciar as pessoas, prometendo surpresas – que seriam do tipo Liloca e outras - no Zimpeto. Isto deixa claro que eles sabiam que a equipa por si só, não teria força mobilizadora, ninguém vai acreditar nela. No tempo que antecedeu o Chiquinho Conde e no tempo dele também, quem aliciava era a qualidade do futebo apresentado. Pena é que alguém entendeu que esses jogadores de quem temos saudades, deviam ser enclausurados e grilhetados.
Quando chegou aqui o Victor Bondarenko, disse – numa entrevista ao Homero Lobo, no jornal “Desafio” – que queria fazer do Matchedje, um conjunto de elite, e que com este conjunto chegaria longe. Homero não acreditou no que Bondarenko dizia, mas não demorou muito e o russo levou a equipa às meias finais do “Africano de Clubes”. Estávamos numa época de ouro. Se calhar no auge. Os jogadores eram escolhidos a dedo e colocados nos escaparates onde superavam todas as expectativas.
Será necessária uma enciclopédia para incorporar todos aqueles jogadores de fina estirpe, e falar da história de cada um, apesar de não lhes ter sido permitido o voo para outras terras. Fecharam-lhes o espaço. Cortaram-lhes as asas, como ao belo Mugubani do Salimo Mohamed. Mesmo assim, os seus nomes vão ressoar para sempre na memória do futebol moçambicano. Lembrar-nos-emos das tardes e noites inolvidáveis no Estádio da Machava, onde os adolescentes e adultos que não tinha dinheiro para aceder ao recinto de jogos, penduravam-se nas torres de electricidade. Ainda havia uma bancada para os “sócios” da Federação, que eram os miúdos deixados entrar gratuitamente para aplaudirem os craques.
Hoje já não há euforia nos campos. Não há entusiasmo. E se não há tudo isso, não nos resta outro caminho que não seja o de continuarmos a fumar o ópio deixado pelos nossos ídolos, que continuam os mesmos!
A narrativa oficial do MADER (Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural) registou um crescimento de 20% da produção local de batata-reno, nomeadamente na campanha agrária 2021-2022,atingindo 57 mil toneladas.
Os dados oficiais apontam que, no mesmo período, Moçambique importou 70 mil toneladas, para cobrir o défice. Os mesmos dados oficiais prevêem que a produção local de batata-reno deverá crescer cerca de 20%, permitindo que mais de 50% da batata consumida passe a ser nacional. Como consequência do aumento da produção nacional, o preço da batata-reno baixou consideravelmente no Mercado Grossista do Zimpeto.
Um dos centros de maior produtividade de batata-reno, em Gaza, é o distrito de Massingir. Lá o saco de 10 kg, de batata limpa, é vendido, à porta do produtor, a 200,00 Mts. No mercado do Zimpeto, o preço de referência para a mesma batata, com data de 5 de Setembro, não ultrapassava os 230,00 Mts.
Ontem, "Carta" foi dar uma espreitadela no Shoprite, para ver se a retórica governamental, a ladainha da contenção do custo de vida com base no aumento da produção local tinha correspondência efectiva na redução no preço final ao consumidor de alguns produtos de "bandeira", como é caso da batata.
O que apuramos foi um cenário de especulação sem paralelo. A mesma batata comprada a 200,00 Mts no produtor em Massingir é vendida a 299,00 Mts no Shoprite. Ou seja, cerca de 50% de margem de lucro.
Isto é um autêntico roubo ao consumidor final e é aqui onde entidades como o INAE (Inspecção de Actividades Económicas) devia apurar sua fiscalização. Mas o caso mostra que o encarecimento do custo de vida não pode ser atribuído exclusivamente às políticas governamentais, mas a predadores da especulação que navegam num mercado retalhista sem o devido policiamento. Fica aqui um TPC para o INAE.(M.M)
É início de noite de domingo. Setembro na pele da cidade e o cheiro do Outono mais próximo de nós, como o molho picante que se evade da cozinha do restaurante indiano da minha rua. A cada dia o sol deita-se um minuto mais cedo. O céu azul, rasgado por pássaros mecânicos, mais escuro que nos dias anteriores. Vinte horas e dois minutos e o céu azul mais escuro que nos dias anteriores e as luzinhas dos pássaros mecânicos às piscas. O campus da universidade iluminado pelas lâmpadas fluorescentes que ajudam as árvores a fintarem a escuridão. Espreito pela janela e a noite tranquila lá fora.
Na quinta-feira passada pernoitei no Estoril. Uma noite um pouco mais fria e tranquila que a de muitas freguesias de Lisboa. Claro que não podia ser diferente, no Estoril as ondas do mar rastejam com coragem e a praia do Tamariz sempre no mesmo lugar. O escritório para o qual trabalho pôs-nos lá para umas sessões de imersão à vida de advogado associado que se avizinha, razão pela qual no dia seguinte almocei no restaurante do hotel.
Durante o almoço, a mulher que serviu aos meus colegas e eu fez uma centena de visitas à nossa mesa e sempre que se aproximava ignorava os meus colegas, olhava para mim, abria um sorriso que se estendia de uma ponta à outra da boca e cantarolava para mim com aquele jeitinho e tempero brasileiros que ela transbordava:
está tudo bem? você quer mais alguma coisa?
Os olhos dos meus colegas em cima de mim e eu todo constrangido com a situação, sem saber se era aquilo mesmo que me apetecia responder:
está tudo óptimo! Muito obrigado…
Cinco minutos depois, a mulher voltava com um sorriso mais brilhante que o da vez anterior, olhava-me nos olhos com ternura e cantarolava novamente:
está tudo bem? você quer mais alguma coisa?
As batatas a murro e a bifana estateladas no prato branco a rirem-se de mim, os olhos dos meus colegas mais acusadores que nunca e eu a pensar em como ia reagir àquela situação. De repente, a minha colega com um sorriso à queima-roupa disparou:
acho que ela gostou de ti, ilustre!
Não perdi tempo, deixei escapar um risinho maroto e retruquei imediatamente:
o Brasil e eu temos alguma coisa…
As noite de Setembro, de facto, mais fresquinhas que o meu coração. As noites mais escuras. Sinceramente, eu não menti:
o Brasil e eu temos alguma coisa.
No dia 7 de Setembro, o Brasil, um país com mais de duzentos milhões de habitantes, celebra duzentos anos de independência. Tal como para muitos moçambicanos da minha geração, o Brasil chegou-me pela televisão na primeira década do século XXI. Lembro-me de ver o Brasil, um país que só mais tarde descobri colorido, chegar-me aos olhos através das telenovelas que passavam todas as noites na televisão à preto e branco que os meus vizinhos tinham estacionada no centro da cristaleira colada à parede da sala. Lembro-me de ouvir o Brasil chegar-me aos ouvidos através das melodias de Leonardo e Leandro, Zezé de Camargo e Luciano, Almir Sater, Chitãozinho Xororó, Caetano Veloso, Chico Buarque, Alexandre Pires e Alceu Valença. Lembro-me de ver o Brasil chegar através de Grande Sertão Veredas de Guimarães Rosa e de Capitães de Areia de Jorge Amado. De tal modo que modo que não menti quando disse:
o Brasil e eu temos alguma coisa.
São duzentos anos de independência e o Brasil, meu amor, chega-me através dos brasileiros afetuosos e simpáticos que encontro no meu dia-a-dia. O Brasil chega-me através dos vários amigos brasileiros que não cabem em nenhuma das minhas mãos sempre secas. E sem dúvida, Brasil é poesia, negro, metrópole, cachaça, futebol, música, favela, sofrimento, índio, Aparecida, alegria, samba, sertão, amizade, paixão, Domitila, carnaval, vulcão, quilombo, trabalho árduo, esperança, branco, grito, sonho, pimenta no arroz, serena, beleza, vida. De tal modo que a voz no meu ouvido, bem devagarinho, cantarolando:
Arrumadjinho!
Setembro na pele da cidade, a noite mais noite que em Agosto. As luzinhas dos pássaros mecânicos às piscas. As luzes fluorescentes iluminando o campus da universidade e as árvores esquivas a fintarem a escuridão.
Justamente um dia depois de comprar mais uma embalagem de máscaras, para variar, desta vez não eram nem azuis, nem brancas, nem pretas daquele carregado, mas daquele menos carregado, aparentemente lavado, digamos preto esbranquiçado, ou acinzentado, o Chefe do Estado veio à Nação, alto e bom tom, indicar que… “já não é obrigatório o uso da máscara” na via pública, seja nos locais de muita aglomeração, ou de pouca concentração; ou ainda, abertos ou fechados… e que já não há limitações no números de convidados para qualquer que seja a cerimônia, excepto um funeral em que o finado perdeu a vida por causa da ainda pandemia!
Ainda que não a exteriorizemos, nem a formulemos de forma directa, a questão que perpassa a alma de todo o mundano nestes dias correntes, esteja ele onde estiver, é a seguinte: a COVID-19 acabou? Passou mesmo? Mesmo…? Nao estará escondida algures numa esquina, invisível, ou na escuridão?
Não se trata de nenhuma cobardia a não enunciação da pergunta. É que se trata de uma pergunta bem difícil, que diz respeito muito ao futuro, ao amanhã; mas que carrega consigo toneladas e toneladas de pesadelos vivenciados, mas ainda bem vivos no nosso quotidiano, nas mentes e nos olhos. Como bem diz o adágio popular, ninguém conhece o amanhã. O futuro, esse, só a Deus pertence, como bem dizem os crentes. De facto, em nenhum momento o Presidente disse que a pandemia acabou. Disse, isso sim, que vamos viver, mas vamo-nos precaver, porque o amanhã pode voltar a ser o… ontem tenebroso!
Quem não se lembra desse ontem… tenebroso? Funesto! Cáustico. Carrasco. Macabro! Impiedoso. Desumano!…
Não pode não haver quem não se lembre. A humanidade que passamos ontem foi de tal sorte desumana que não deixou nada nem ninguém incólume, na mesma, sem sequelas. Todos os mundanos sofreram, de forma directa, na pele, na família, nos amigos; ou de forma indirecta, nos conhecidos e pessoas de diversa utilidade. Todos sofremos. Em texto de homenagem ao amigo e colega João Matola, que Deus o tenha na sua paz e graça, escrevia que a COVID-19 é/era aquele diabo que nos matava ainda que vivos; uma parte de nós morreu ao longo desses tenebrosos três anos.
Muitos de nós vimos nossa vida escapar por um triz… por milagre de Deus! Muitas foram as pessoas que foram a unidades sanitárias com os seus próprios pés para não mais de lá saírem com os seus próprios pés… milhões foram os que perderam directamente as suas vidas, outros milhões foram as famílias que foram dilaceradas, destroçadas para todo o sempre! Milhões foram os amigos, conhecidos e pessoas de inspiração que se foram para a eternidade, levando consigo grande parte de nós! Milhões foram as almas humanas desconhecidas de nós que, silenciosamente, nos deixaram!
Impossível apagar tudo isto. Impossível acreditar que perdemos os familiares, os amigos, os colegas e os conhecidos que perdemos. Impossível acreditar e ou esquecer!
Como é igualmente difícil esquecer que milhões foram as “coisas” que devíamos parar de fazer na nossa vida, muitas das quais sempre fizemos desde que nos conhecemos como pessoas. A vida tinha perdido completamente o seu sentido: o ser humano não é de permanecer no mesmo sítio durante um infindável período de tempo, mas tínhamos a impiedosa e desumana recomendação, com carácter de lei, o “fica em casa”! Ir ao mercado, à loja, era um acto de… muita coragem! Ir aos copos com os amigos, um dos maiores prazeres da vida, festas, convívios, passeatas, praias… tudo, tudo ficou literalmente proibido: fica em casa! Tudo tinha que se feito e só se podia fazer… na clandestinidade, com o perigo de se ir parar na esquadra dentro de um mahindra!…
Momentos tenebrosos poderão voltar, por isso, continuemos a precavermo-nos! Mas os que passamos não o foram menos! Continuemos a usar a máscara, a desinfectar as mãos, a evitar as aglomerações e os apertos de mão!
ME Mabunda