O falecimento de Felismão Filimão, em todo bairro, só se soube uma semana depois. Foram as bolhas de cheiro que injectavam o bairro que despertaram a atenção de todos. As moscas drogadas pelo cheiro forte, que saía de um lugar que ainda não se sabia, desmaiavam de pernas ao ar em todo bairro como milicianos abatidos num combate.
O cheiro crescia, enrolado, nos becos do bairro tal qual sai enrolado o fumo de uma chaminé. Uma semana depois, um monte de moscas disputando a fechadura da porta de Felismão Filimão, moscas enormes, com antenas das bocas em riste, denunciaram a nascente do cheiro: saía do quarto minúsculo de Felismão Filimão. Fazia uma semana que não era visto secando a sua pele arranhada de tatuagens e seu corpo preso numa moldura de silêncio no seu quintal.
Felismão Filimão o mesmo que viveu em Portugal durante 16 anos. E quando regressou ao bairro tinha apenas duas bagagens escondidas em recordações: um sotaque português na fala e os olhos cheios de paisagens que nos mostrava por meio de relatos, gestos e estórias. De quando enchia-nos no seu quintal e ensinava-nos a cantar o fado; apertava-nos as bochechas contra os dentes para que as palavras vestissem o seu sotaque e metia-nos num jejum de respirar, por segundos, para podermos ganhar a força nos pulmões e acima recital o fado com beleza.
Arrombou-se a porta, as moscas entulharam-se no interior de casa; o corpo boquiaberto de Felismão Filimão encontra-se escoltado por um silêncio profundo e moscas raspavam-lhe o silêncio que se equilibrava nas teias da saliva consumida pela morte. Meu Deus, Felismão não era o mesmo; não fazia o bico com a boca para filtrar as vogais, não nos explicava as montanhas de Portugal pelas curvas das suas mãos e a bagagem do seu sotaque português tinha sido dissolvido em pó de silêncio.
Ninguém conhecia nenhum familiar de Felismão Filimão no bairro. A única família que tinha e conhecíamos pelas fotografias das suas palavras eram duas raparigas, mulatas, altas, que cursavam direito em Lisboa. Era a família que conhecíamos. Ninguém no bairro não conhecia a paisagem tipográfica de Lisboa; através de Felismão já conhecíamos a Rua Augusta, a Avenida da Liberdade, o Café A Brasileira colada na Rua Garret e já tínhamos passeado de calções curtindo o sol na beira do Rio Tejo na Ribeira das Naus.
Felismão Filimão falou-nos de racismo de Lisboa, dos africanos que corriam, dia e noite, pela cidade tentando tirar o “i” da sua condição de ilegais. Felismão foi enterrado e esquecido num cemitério como um cão sem dono e as suas filhas continuam estudando, em Lisboa, para tornar o mundo menos injusto com o seu Direito. Ao bairro, quando regressou, tinha apenas duas bagagens escondidas em recordações: um sotaque português na fala e os olhos cheios de paisagens; não avanço mais com o texto, tenho medo de perder-me na Rua cor-de-rosa e não ver Felismão explicando, pelos seus gestos enormes, o caminho de voltar.
Por conta da subida do preço dos combustíveis foi avançada uma proposta de ajuste em alta da tarifa de transporte urbano, ora em “banho-maria” por orientação superior do Ministério de tutela. No entanto, mais do que o ajuste ou não da tarifa, é preciso que se ajuste a implementação das soluções em curso com vista a melhoria do transporte urbano na área metropolitana de Maputo.
Das soluções em curso, a observação recai apenas sobre as soluções que foram a aposta recente governamental, nomeadamente o aumento da disponibilização de mais autocarros e a introdução da bilhética eletrónica.
Decorrente do debate público e da simples constatação ressalta que os efeitos desejados destas soluções estão aquém do desejado. A meu ver, elas pecam por terem sido implementadas dentro da actual estrutura operacional de provisão de serviços de transporte urbano, mormente os operadores públicos/municipais e os privados, estes por via das suas cooperativas/associações.
Uma alternativa para a sua implementação seria a de introduzir um novo conceito ou serviço no sistema de transporte urbano que viesse a constituir uma mais-valia na qualidade do serviço prestado. Este raciocínio parte da experiência positiva de um projecto privado de transporte ferro-rodoviário, denominado “MetroBus”, em implementação na área metropolitana de Maputo desde o ano de 2018.
A entrada em funcionamento deste projecto – o tal novo conceito - consistiu nas mesmas soluções dos esforços governamentais: a introdução de novos meios (comboios e autocarros) e da bilhética eletrónica. De outro modo, caso os meios alocados e o serviço da bilhética fossem para serem implementados dentro da estrutura operacional existente, quer ferroviária quer rodoviária, tenho pouca fé que elas teriam logrado sucesso. Aliás, os factos falam por si.
Em suma, a estratégia para a implementação dessas e de outras soluções passa por “não mexer o cancro” ao mesmo tempo que se criam condições alternativas para uma transição ou substituição paulatina do que é actualmente oferecido aos utentes de transporte público de passageiros em Maputo.
Quiçá, e para terminar, por que o Ministério de tutela não aproveita o defeso do ajuste da tarifa de transporte urbano e convoque uma reflexão da sociedade tendo em pauta, entre outras matérias, a necessidade de ajustar a forma de implementação das soluções (governamentais), quer as citadas quer de outras, em defesa da melhoria do transporte urbano na área metropolitana de Maputo e não só.
A escola estava agitada. Todos estavam ansiosos com a chegada do orador da palestra. Um General "nacionalista" e bastante referenciado em vários manuais da história oficial do país. Estávamos no ano de 2008, na altura, era estudante da Escola Secundária e Pré-universitária 25 de Setembro, na cidade de Quelimane, província da Zambézia. Uma acrópole grega, sediada a meia distância do núcleo das margens do rio dos Bons Sinais.
Todos queriam conhecer o General sobre o qual só líamos nos livros, revistas e jornais. Ouvíamos suas intervenções nas rádios e assistimos certas vezes suas aparições pela televisão. O cartaz estava fixado e tinha como tema da palestra: Serviço Militar Obrigatório e patriotismo. Naquele dia, o pavilhão desportivo da escola estava lotado e a juventude queria ouvir e ver por perto sobre os valores do patriotismo vindos de quem um dia abandonou os vícios da mocidade para se dedicar à longa luta pela independência de Moçambique.
A palestra começou. Embora o espaço estivesse lotado, todos ficaram calmos e atentos. Afinal, estávamos diante do General Alberto Chipande. Uma lenda viva nos amuletos oficiais sobre a nossa história. A intervenção do General decorria e calmamente explicava as vantagens de fazer parte do Serviço Militar Obrigatório (SMO) e o que o acto representava. Na palestra, o General deixou patente que todos nós tínhamos a obrigatoriedade de fazer parte do processo e que não existiam diferenças por lá (…) foi neste momento que uma pulga pousou na minha orelha e começou a incomodar-me.
Terminada a explanação do General Chipande, abriu-se o pavilhão para a sessão de perguntas e respostas. Eis que, depois de alguns colegas proferirem os seus "discursos sofistas" e de muitos conceitos elogiando o General, o que não era o centro do encontro, levantei o braço e pedi a palavra.
Num tom inocente e contextualizando os factos, sobre o que acompanhava noutros circuitos de informação e de opinião, sobre a matéria da palestra, questiono o General: Porque é que os filhos de pessoas com um status social e influência política como do General não cumpriam o SMO? E o que diferenciava estes moçambicanos acima mencionados de nós, os filhos dos pobres e sem qualquer influência política, económica e social?
Terminada a minha intervenção, seguiu-se um momento de palmas e gritos (é isso – diziam os jovens presentes no pavilhão e eufóricos!). Devolvida a palavra ao palestrante, eis que começou um discurso de que casos de género não existiam e que na República de Moçambique todos éramos iguais e não existiam protegidos perante a Lei, fôssemos filhos de qualquer individualidade, tínhamos de nos inscrever para fazer parte daquele dever patriótico. Com as questões e as respostas, esperava-se que viessem exemplos concretos dos filhos de grandes individualidades que haviam passado por lá, mas nada disso aconteceu!
No final da palestra, fui solicitado por alguns coronéis e directores que acompanhavam o General e procuraram saber quem eu era e quais eram as minhas origens. No dia pediram para que não colocasse questões de género em eventos como aqueles e que estava a agitar a juventude com as minhas perguntas – fiquei calmo e reparando nos olhos de quem falava – em seguida, calei-me e segui os meus colegas!
Sucede que, minutos depois da comitiva sair, fui solicitado no Gabinete do Director da Escola. Pensando que era para ser elogiado, eis que começa um processo inquisitório por parte da então pedagógica da escola, procurando saber, porque eu havia feito aquilo e quem teria encomendado aquelas perguntas. Fiquei perplexo e intrinsecamente ia indagando – eu sou estudante da 11ª classe de letras e, para além disso, leio e acompanho os debates públicos e opiniões diversas, e mesmo estando em Quelimane, isto não deveria constituir motivo de limitação para pensar Moçambique.
A Directora-pedagógica e o colectivo de docentes delegados para o inquisitório ficaram falando cerca de 30 minutos, ameaçando e aconselhando para que não voltasse a fazer o que havia feito. Após aquele exercício, passaram-me a palavra e eis que questionei: qual era a finalidade da educação ou do processo de ensino-aprendizagem que os professores levam a cabo na escola? Ninguém respondeu e, diante deles, eu disse: pensei que a escola fosse um espaço de desenvolvimento humano, de transformação intelectual e da nossa forma de pensar – entre eles, o pensamento crítico da nossa realidade social e política.
Sem respostas do colectivo inquisitório, deixaram-me sair do gabinete e do lado exterior, alguns colegas aguardavam e abraçaram-me, elogiaram-me e revelaram que toda a escola estava comigo, porque era assim como muitos estudantes deveriam ser.
Entretanto, a pedagógica e alguns docentes haviam me marcado e sempre que pudessem faziam questão de lembrar-me que estavam de olho e, caso não estudasse, as coisas seriam muito difíceis. Aquele facto fez-me estudar a dobrar e, mesmo com o roubo de notas, acabei dispensando várias disciplinas e aprovado nos exames de algumas que havia feito. No entanto, não foi fácil enfrentar os efeitos colaterais por "encarar" o temível General!!!
O gajo levanta-se as 4 e tal e vê se está tudo em ordem. Txuno-me, encosto a porta para não acordar a baby e ligo para o motorista para saber onde lhe pegar. Encontro-me com o motorista e a primeira coisa que faço é varrer as cascas de amendoim no bus. Eu não entendo esses passageiros todos dias gritamos “não queremos amendoim”.
E começamos com a primeira volta a mais sensível e maningue nice. Esquivamos a polícia e os buracos da cidade. Os passageiros não devem atrasar, porque isso pode nos prejudicar na receita. O atraso do passageiro é nosso atraso. Na primeira volta as magras é são mais nices, não ocupam muito espaço e afinam-se com facilidade. Há aqueles passageiros que não aguentam descer sem ter me chamo de zero. Sempre criando stresses. Se não é o passageiro que tira nota grande na paragem, um 1000, é o motorista que me insulta porque não fechei bem a porta, ora porque fiz um toque no meio da estrada.
Todos me insultam. E na terceira volta a baby começa a mandar bipes, porque quer saber qual é a ideia na house. Envio para ela o pouco que afinei e ela fica relaxada. Não temos time de almoçar, time de sentar e comer algo, comemos em movimento; um ovo no Benfica, uma coca no Jardim, uma maça no Fajardo e uma dose no museu. E as cenas correm. O importante é ganhar o dia.
Os passageiros insultam-me sempre, esquecem-se que eu também sei insultar; brow, eu tenho insultos pesados. Quando batem um cell no chapa todos olham para mim. Se não é minha mãe que me educou mal, é o meu pai que criou um marginal, mas eu não entendo onde entram os meus pais aqui no chapa. Faço esforço para levar esses tipos ao job e eles fazem de tudo para me tirar o job. São chefes, mas não sobem táxi.
Sabe, o cobrador é um cão de rua; sempre deve acertar ser atirado pedras; costumo dizer uma coisa: aos passageiros dou troco e razão; é a melhor maneira de não criar stress. Eu desde que cresci aprendi que pessoa viva não cheira mal, mas eu já fui dito que cheiro mal. É um beat que já me acostumei.
Ao meio-dia a cena acalma-se, jobamos sem pressa e preparamo-nos para ouvir os insultos dos chefes que saem às 17h. Saem stressados e descarregam tudo em mim. A partir das 17h é hora de ponta, pois todos enfiam-me as suas pontas.
Edjow, deixa de puxar papo comigo para depois não pagar. Peço mola, Doutor.
A efectiva garantia pelo respeito e protecção dos direitos humanos, da ordem e segurança pública, bem como da cultura de paz na República de Moçambique depende, não só de um quadro constitucional fundado no Estado de Direito Democrático e de justiça social, baseado no respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, conforme determinam os artigos 1 e 3 da Constituição da República, mas grandemente da adopção de uma política pública criminal abrangente e eficaz que sirva de instrumento orientador tanto para a feitura das leis de combate ao crime, garantia da ordem e tranquilidade públicas, como para a capacitação institucional de toda a estrutura funcional da administração da justiça. Dúvidas não restam de que o Estado moçambicano carece ainda de uma política criminal devidamente concebida e que responda aos problemas aqui levantados ainda que resumidamente.
O slogan ou a ideia do combate ao crime, em suas várias dimensões e actualmente com destaque para a chamada criminalidade organizada, sempre constituiu um dos apanágios teóricos da agenda pública nacional de governação, entanto que uma prioridade. Porém, com uma prática quase que insignificante ao ponto de permitir cada vez mais espaço para o recrudescimento da criminalidade, com a fácil introdução de novas formas e/ou tipos de conduta criminal que são praticados ou concebidos a partir dos próprios agentes ou funcionários públicos, cuja função primordial se traduz no combate ao crime, senão vejamos:
Há várias evidências assustadoras de que a Polícia da República de Moçambique - PRM e as Forças de Defesa e Segurança (FDS) - enxergam o cidadão e o Estado como uma fonte para o saque e enriquecimento ilícito. Um facto digno de realce da conduta criminal das FDS, na sua vertente de Serviço de Informação e Segurança do Estado (SISE), é que hoje, em certa medida grave, estão em julgamento no famigerado processo das dívidas ocultas e têm sido conotadas como autores de vários crimes em Cabo Delgado, incluindo no desaparecimento de jornalistas e violação da liberdade de imprensa. Ora, esta conduta institucionalmente criminal é extensível à Polícia Municipal (PM), ao Serviço Nacional Penitenciário (SERNAP), a Autoridade Tributária que faz vista grossa ao sistema de fiscalização, sobretudo no tráfego fronteiriço com vista a alimentar o contrabando de diversa ordem.
Por sua vez, a Assembleia da República de Moçambique (AR) adopta e aprova leis criminais que não reflectem a realidade do crime em Moçambique sem qualquer orientação consistente e clara de uma política criminal para o efeito. Foi assim que se aprovou por duas vezes, em 2014 e 2019, o Código Penal desestruturado e confuso, bem como um Código de Processo Penal aprovado através da Lei n.º 25/2019, de 26 de Dezembro, o qual se revela deveras incompreensível e de difícil aplicação.
Igualmente, a AR provou a Lei de Prevenção e Combate às Uniões Prematuras, a lei contra a violência doméstica, legislação contra a corrupção, o branqueamento de capitais e conexos como é o caso da Lei sobre as vítimas, denunciantes, testemunhas, declarantes ou peritos em processo penal que são, em boa verdade, problemáticas e que não combatem a problemática da conduta criminal de forma eficaz, provavelmente por falta de uma política criminal com os devidos preceitos orientadores.
No mesmo sentido, as reformas das instituições relevantes para o combate ao crime são feitas de forma atabalhoada, com métodos duvidosos e com fraca participação pública das entidades ou pessoas com a devida experiência nas áreas em causa. Foi nestes termos que se transformou a Polícia de Investigação Criminal (PIC) para o Serviço Nacional de Investigação Criminal (SERNIC), de forma dissimulada, de tal maneira que o modus operandi da PIC e do SERNIC é o mesmo, senão pior agora. Curiosamente, o Gabinete Central de Combate à Corrupção é testemunha da tendência crescente da corrupção em Moçambique e, infelizmente, não da sua significativa redução como resultado das suas actividades.
Hoje, a questão dos raptos é o pão de cada dia dos moçambicanos e são praticados até pelos agentes da PRM, com destaque para o SERNIC. Mais do que isso, é que foram instituídos, pelo menos do ponto de vista prático, grupos operacionais, dos quais um se designa “Esquadrões da Morte” e que integram agentes da PRM, tanto é que os polícias do Grupo de Operações Especiais (GOE), da Força de Intervenção Rápida (FIR), unidade antimotim da PRM, já foram flagrados em actos de execução sumária, entanto que “Esquadrões da Morte.”
Os critérios de recrutamento ou de selecção dos agentes da PRM são críticos e há muito que se denuncia a prática da corrupção para o ingresso na PRM. Esta corporação está de tal maneira descredibilizada que quem quer ser agente da PRM é aquele que quase não encontrou outra forma de sobrevivência e que vivia da má conduta. Com muita preocupação da sociedade, as vagas na PRM são vistas como uma licença legal para a prática do crime com recurso aos símbolos e instrumentos do Estado.
Um outro exemplo traduz-se na excessiva impunidade pela prática de crimes, o que está praticamente institucionalizado e não se vislumbra um mecanismo orientador claro, prático e eficaz para acabar com a impunidade que alimenta cada vez mais a criminalidade, sobretudo a grande corrupção que envolve os dirigentes do Estado ao mais alto nível.
Portanto, para garantir a protecção pelos direitos humanos, a lei e ordem, a salvaguarda da segurança de pessoas e bens, a cultura de paz, a tranquilidade pública, o respeito pelo Estado de Direito Democrático e a observância estrita dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, é preciso colocar o dedo na ferida no sentido de adoptar e implementar uma política pública criminal profundamente moderna, séria, transversal e interdisciplinar focada no respeito pela dignidade humana e defesa da soberania do Estado.
João Nhampossa
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos
Sei que sou desdenhado em todo o lado mas isso não me importa. Sei também que o meu desfiladeiro alagado de cactos não tem volta, porém ressurjo em cada golpe. Sou um lagarto com escarpas permeáveis, incapazes de me defenderem dos ventos infaustos que me fustigam a alma abandonada na noite de bréu. Cheguei ao ponto em que já não sinto nada, a não ser as espigas de aço que me ardem em todo o dentro dos meus sentimentos profundos.
Ainda ontem vi uma das minhas antigas mulheres a mudar de direcção para não passar perto de mim quando me divisou de longe, então percebi o nível em que estou. Na verdade sei da minha abominação, que já não me dói. Tenho as malas aviadas, cheias de memórias. São elas que me acompanham em forma de músia, em cujo refrão ribomba esse verso cataclítico que diz assim, quando estiveres a atravessar o inferno, não pára de andar. E eu não páro de beber.
Abdiquei das ilusões, recuso-me a sofrer. É por isso que estou em contacto permanente com a morte, na minha esperança cheia de demora. Não temo nada, nem a guilhotina que vai descer em vibração ao encontro da minha carne. Eu sei que depois destas farpas todas que me cercam, triunfarão as harpas. Para gáudio do blues.
Os meus amigos zarparam. Todos. Fugiram do cheiro que exalo das minhas palavras incongruentes. Têm vergonha de mim, por isso ao lhes ser perguntado se me conhecem, respondem que nunca ouviram falar desse indivíduo que sou eu. Virei-me para um deles, num dia de chuva em que, por coincidência estávamos os dois abrigados num alpendre da cidade, e perguntei assim, vocè não me conhece, irmão? Ele disse que não, não me conhece.
Depois de beber quero falar. Cai sobre mim a necessidade irresistível de repetir histórias fascinantes do passado. Quero cantar em surdina as músicas dos meus ídolos, mas ninguém me ouve, e isso aumenta as minhas feridas que não páram de sangrar por dentro. O pior é que já não me permitem a entrada nos bares, nem nos esconderijos imundos onde se bebe aguardente de cana em copos jamais lavados.
Então, toda esta rejeição significa que os meus convivas são os arautos do próprio diabo, o Lúcifer. São eles que me vão acompanhando com todo o rancor à câmara de cianeto, e eu não posso fazer nada, as minhas forças esvairam-se na bebida. Transformaram-me em desperdício. O meu relógio deixou de marcar as horas que sempre foram cruciais para a renovação do amor. Agora é indiferente que seja manhã ou tarde ou noite, vivo abandonado no escuro, sem mais dúvida alguma de que serei executado no próximo pricipício. Mas enquanto a morte não chega, deixa-me beber.