Uma das variáveis de desenvolvimento de uma sociedade é o grau de incerteza no seu dia-a-dia por parte dos seus membros. A possibilidade de de repente acontecer alguma coisa desagradável e desastrosa que ponha em causa a sua existência, da sociedade ou deite a perder todo um projecto social, ou os seus valores e percurso. Quanto maiores ou muitas forem as incertezas no dia-a-dia, menos desenvolvida será essa sociedade; menor será a estabilidade emocional, social e económica. Olhe-se para as sociedades desenvolvidas. Não há nenhum investimento, individual, colectivo, institucional ou social, sem o controlo desta variável. Ninguém investe sem ter a certeza de que se não vai ganhar o dinheiro que projecta, pelo menos não vai perder o seu capital inicial, de investimento; isso seria o que os outros chamam de haraquiri!
As sociedades primitivas eram cheias de muitas incertezas, não tinham os instrumentos e mecanismos de que nos servimos hoje para reduzirmos as incertezas: o conhecimento científico, a ciência e a racionalidade! Instrumentos que nos permitem aferir o grau de risco de qualquer empreitada que pretendermos desencadear. Dependiam grandemente da natureza, pouco sabiam dos estudos de viabilidade, dos cálculos de risco, das previsões meteorológicas, se vai chover ou fazer muito calor, se haverá seca prolongada ou precipitação normal, ciclones ou vendavais e quais os efeitos disto ou daquilo.
Hoje, as sociedades desenvolvidas são aquelas em que o grau de incerteza é muito menor; o risco é calculado, é especulado. Nas sociedades desenvolvidas, quando os indivíduos se dirigem a instituições do estado, mas não só, sabem muitas vezes que tratamento vão encontrar. Quando chega o fim do mês, sabem quais as facturas e mais ou menos as despesas que têm que pagar (entre nós, nunca se tem a certeza do valor da factura de água, ainda que seja aproximada; tanto pode vir 100 como mil meticais). Quando saem à rua, sabem, mais ou menos, o que vão encontrar, tipo não serem assaltados de qualquer maneira, chatices desnecessárias do agente de trânsito, estradas partidas que podem danificar o carro, POS e ATM que não funcionam, lojas onde só se paga a cash, etc., etc. Portanto, incertezas atrás de incertezas!
O nobre dia da “Cidade das Acácias”, 10 de Novembro, coincide com a data de aniversário da minha esposa. Feliz coincidência, porque, assim, temos o feriado para todo o tipo de actividade que possamos ter programado. E de facto tínhamos programado o almojantar da ordem. Uma combinação de almoço e jantar: está fora da hora do almoço, mas também ainda antes da hora do jantar.
Lá fomos nós a um grande restaurante! Grande. O Casino Polana. Em plena Marginal, nas imediações da novíssima embaixada americana. E em pleno século XXI! Tudo correu às mil maravilhas… menos a sessão de encerramento. Lá veio a conta, conferimos, batia certo e lá pedimos a tal POS. Com uma voz trêmula, menos convicta, o servente que nos atendera muito bem e sempre com voz carinhosa, diz-nos que “POS não está a funcionar…” - e, cabisbaixo, acrescenta que “... aqui na porta de saída tem uma ATM em que podem ir levantar o valor…”
Não lhe escondi que não tinha percebido, tamanha era a surpresa que a informação que me estava a ser dada causara. Repetiu, visivelmente embaraçado. Também ficamos bastante embaraçados. Um dia especial estava a ser beliscado… mas para não estragar tudo, lá me levantei, bastante contrariado, para a tal ATM, para ir pegar o taco. As tais incertezas! Você nunca sabe o que lhe pode acontecer. Mas nem era tudo!
Outra surpresa das surpresas desagradáveis, num ápice o cartão é engolido! A máquina nem sequer deu chance para digitar o código!… Imagine-se como se fica nestas condições. Uma tarde que estava a correr lindamente, romântica, estava a terminar desagradavelmente. Algo completamente imprevista. E assim ficou marcada aquela data querida.
A pergunta é: como pode um restaurante de luxo, em plena Marginal, a zona A, não ter em certo momento uma POS a funcionar e, para piorar, a ATM? Quer dizer, os muitos cartões com que andamos não chegam para estarmos à vontade, temos que andar com dinheiros e dinheiros nos bolsos com todos os riscos: a tal incerteza!
É isto que é a nossa sociedade: cheia de surpresas acima de surpresas no dia-a-dia. Prenhe de incertezas. Você nunca sabe o que lhe pode acontecer ao sair à rua. Como podemos desenvolver o país assim? Como podemos investir nestas condições? Para investirmos, precisamos de economizar e para economizar, precisamos de ter certeza das despesas do mês. Ou seja, de certeza e não de incerteza. Se você nunca sabe o que vai pagar ou não ao fim do mês, como vai calcular o que pode ou não investir? As estradas estão sempre a partir o carro; a factura de água está sempre a variar; você pode ser assaltado, ou raptado a qualquer momento… as POS e ATM embelezam a cidade, no momento certo, dão dores de cabeça…
Vamos em frente, irmãos… isto não será o Governo a resolver!
Pedro Jumento e mais de mil cidadãos nasceram, cresceram e vivem em Tchadzuca, no posto administrativo de Machipanda, no distrito de Manica, província com o mesmo nome. Na infância, Pedro Jumento circulava por Makudho e Maridza em Penhalonga, onde pescava e fazia mergulhos competitivos na nascente do rio Revue. Embora tenha saído por algum período para estudar e formar-se na capital da província, Chimoio, Jumento sempre regressava para visitar a família, rever os amigos e namorar com a pitinha de longa data.
Na terra de Pedro Jumento, o subsolo possui quantidades infindáveis de ouro e outros minérios, daí que, para além de praticar a agricultura de subsistência, muitas famílias também se dedicavam ao garimpo. Esta actividade decorre há vários anos em Makudho, Maridza e Tchadzuca e ajudou milhares de famílias a ter casas e bens de qualidade, mas sempre era feita em locais não poluentes. Entretanto, tudo viria a mudar, com a ascensão da nova realeza na Pérola do Índico. A vida de Pedro Jumento e de outros habitantes daquela região mudou drasticamente.
A região começou a receber visitantes da terra de Xi Jinping, com a capa de investidores e devidamente apadrinhados pelos donos das licenças de exploração mineira actualmente em Manica e outros locais deste belo e empobrecido país. Repentinamente, sem qualquer consulta pública e nem indemnizações, as pessoas viram suas machambas localizadas nas proximidades do rio Revue ocupadas e usurpadas. Máquinas a roncar e carros de alta cilindrada a circularem. A água que servia para alimentar as famílias, o gado, regar os campos de cultivos, tomar banho e lavar roupas e outros objectos foi privatizada e poluída.
Os amigos de Jumento que tentam encontrar um local para fazer o garimpo são impedidos, violentados ou mesmo detidos em nome dos interesses do filho do Boss. As expectativas de vida melhor para as comunidades acima mencionadas, através dos recursos ali existentes, praticamente foram goradas e transferidas para o filho do Boss, que usa os ganhos do business para altas vibes e viagens pelas terras de gente famosa internacionalmente.
Nesta saga de exploração dos recursos, os soldados económicos de Xi Jinping lavam as pedras na nascente do rio Revue, poluindo a água e criando sérias dificuldades para as comunidades ali residentes. A vida naquela região está cada dia infernal. As preciosidades dos minérios valiosos ali existentes como ouro, turmalinas e outros não beneficiam os jovens como Pedro Jumento e os restantes habitantes que esperavam que, no âmbito da responsabilidade social das empresas que exploram, pudessem ter casas melhores, escolas, centros de saúde, água potável e outros serviços básicos para o povo.
Entretanto, parece que não é isso que o filho do Boss e seus amigos das bandas de Xangai querem e pensam – a ideia é raspar e sujar tudo que a mãe natureza ofereceu às comunidades de Machipanda e se na terra de Pedro Jumento a coisa está assim, o que se pode falar das florestas de Tambara, Machaze, Vanduzi, Gondola e Dombe!?
Como estagiário a primeira pessoa que conheci naquele jornal foi um branco, meio gasto, que sempre que entrasse na redacção deixava, em forma de cheiro, uma enorme cauda com bocejos de álcool e pêlos leves de tabaco. Entrava sempre aos berros na redacção com a língua sobre o peito e punha-se a ladrar: "isto é capa e vende muito".
O editor Trindade, com a cabeça metida na cova do ecrã do computador, de quando em quando ressuscitava para vociferar: "ó estagiário, compra-me um cigarro ali na esquina". E eu corria porque queria ser importante na capa que o editor preparava. Um dia o editor Trindade encontrou, na sua mesa, uma pequena garrafa de vidro com raízes e uma pele de macaco enrolado no gargalo.
Fitou a garrafa com a cintura, afastou-a com o calcanhar da mão e a garrafa ficou em cacos no chão. Toda redacção atirou os olhos ao editor e ele apenas "alguém anda com inveja das minhas capas". A partir daquele dia a vida do meu editor virou uma mesa com duas pernas; já tinha perdido o equilíbrio.
O editor Trindade começou a ser capa da sua própria vida, chamava-me para que lhe ajudasse a galgar as escadas, a borda do seu cinzeiro transbordava de tiras de algodão cheias de sangue e as suas narinas a cada respirar expiravam botões de sangue. E as capas não podiam parar, por isso um tal de Chirindza foi colocado para conceber as capas, mas o jornal sem o editor Trindade não era o mesmo. E foi sob a chefia de Chirindza que as capas do jornal foram enterradas. O jornal faliu e eu, estagiário de meia tigela, baixei as orelhas, enterrei a cauda das mãos entre as pernas para a qualquer momento ser afastado como uma cadela.
Uma vez o editor Trindade surgiu, já gasto, na redacção para criticar uma capa de Chirindza: com um molho de erros ortográficos. Quando saiu deixou, em forma de cheiro, uma enorme cauda com bocejos de comprimidos. Tinha na testa o número da sua campa em forma de veias. Parou nas escadas, chamou-me e disse: "já viste como os nossos colegas são?".
E depois disso não vi mais o editor Trindade. Vi o seu cadáver de costas, de olhos fechados, descendo pelas cordas numa cova no cemitério de Texlom. Ele tinha sapatos novos, mas desceu à cova pelas cordas. E os coveiros suados faziam barulho com pás no meio de orações de um padre branco; saímos todos do cemitério, uma voz seguiu-me, tombou a mão sobre o meu ombro e sussurrou "isto é uma capa e vende muito".
O nº 1 do artigo 58 do Decreto n.º 5/2018, de 26 de Fevereiro – Aprova o Regulamento do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado - determina o seguinte: “Ao funcionário de nomeação definitiva pode ser concedida licença registada até 6 meses prorrogáveis até 1 ano, invocando motivo justificado e ponderoso.”
Na sequência e relativamente às implicações da concessão da licença determina a alínea c) do n.º 5 do artigo supra mencionado o seguinte: “Que durante o seu gozo, o funcionário não pode exercer qualquer actividade na função pública, nem exercer ou invocar direitos fundados na situação anterior.”
Por sua vez, o n.º 1 do artigo 59 do Regulamento do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado estabelece que: “A licença ilimitada é concedida por tempo indeterminado a pedido do funcionário de nomeação definitiva.” De entre outras implicações desta norma predispõe a alínea b) do n.º 1 do artigo em referência que: “Durante o gozo da licença, o funcionário não pode apresentar-se a concurso, ser promovido ou exercer qualquer actividade na função pública, nem exercer ou invocar direitos fundamentados na situação anterior.”
A Licença registada e ilimitada está prevista nos n.ºs 10 e 13, respectivamente do artigo 75 da Lei n.º 10/2017, de 1 de Agosto, que aprova o Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado (EGFAE).
Ora, por via de um despacho administrativo datado de 30 de Setembro de 2021, o Secretário Permanente do Ministério da Saúde, sob o parecer do Ministério da Administração Estatal e Função Pública decidiu pela interdição de contratação pelos parceiros de cooperação, de recursos humanos do Estado que se encontrem em gozo de licença registada ou ilimitada para exercerem funções no Ministério da Saúde (MISAU). Curiosa e estranhamente, a decisão do MISAU teve por base o disposto na alínea c) do n.º 5 do artigo 58 e na alínea b) do n.º 1 do artigo 59, ambos do Regulamento do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado e pretende, forçosamente, reter os quadros ou os recursos humanos do MISAU por via administrativa como se de uma ditadura se tratasse.
Quando um funcionário ou agente do Estado é contratado pelos parceiros de cooperação para exercer funções nas instituições do Estado, no caso em apreço, no MISAU, tal não significa que esse funcionário ou agente do Estado está, por essa via, a ser recontratado na função pública ou que esteja a estabelecer um novo vínculo de trabalho com o Estado, de tal sorte que a sua vinculação é de natureza privada com o parceiro de cooperação que o contratou.
Aliás, o funcionário ou agente do Estado que se beneficiar do regime da licença registada e ilimitada previsto nos artigos supra indicados do Regulamento do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado fica numa situação de perda de várias obrigações e direitos essenciais, incluindo a remuneração. Essa licença registada e ilimitada constitui, também, uma autorização legal para celebrar contratos de trabalho com as entidades privadas, no quadro da legislação laboral aplicável nas relações laborais do Direito Privado. Trata-se, pois, do âmbito da liberdade contratual e de escolha do funcionário ou agente do Estado que não deve ser limitado por despacho sem cobertura legal, conforme é o caso em apreço, quando o mesmo está sob licença registada e/ou ilimitada.
Importa aqui esclarecer que a alínea c) do n.º 5 do artigo 58 e na alínea b) do n.º 1 do artigo 59, ambos do Regulamento do EGFAE proíbem que o funcionário e agente do Estado estabeleçam novos vínculos na função pública, o que não é extensível à actividade privada, ao contrário do que pretende dar a entender o supra referido despacho do Secretário Permanente do MISAU. Este órgão está, indubitavelmente, a fazer um exercício hermenêutico falacioso daquelas normas do Regulamento do EGFAE, inesperadamente com a chancela do Ministério da Administração Estatal e Função Pública.
A mensagem que se pretende transmitir no despacho do Secretário Permanente do MISAU aqui em análise é clara, no sentido de que visa reter os quadros do MISAU a todo o custo por via de uma ordem traduzida em acto administrativo que não só é contra legem como, acima de tudo, viola a Constituição da República de Moçambique (CRM), no que à liberdade de escolha e direito ao trabalho diz respeito. Não é, pois, com esse tipo de prática, quais sinais ditatoriais que roçam o Estado de Direito Democrático e a justiça social que caracteriza Moçambique, que se vai conseguir a retenção dos recursos humanos no MISAU em concreto e na função pública, em geral, caso a pretensão vertida no despacho em análise seja objecto de efeito multiplicador para outros sectores públicos.
A retenção dos recursos humanos na função pública deve ser feita através de adopção e materialização de políticas e estratégias públicas de incentivos que sejam transparentes, justos e atractivos, sem discriminação e num contexto real de inclusão ou de efectiva participação pública dos visados na sua definição.
Mais do que isso, é que não compete ao MISAU ou à Administração Pública decidir quem os parceiros de cooperação devem contratar e onde devem trabalhar os seus contratados, desde que esses parceiros não violem a lei.
O despacho do Secretário Permanente do MISAU ofende a CRM, o EGFAE e o respectivo Regulamento, bem como os princípios internacionais sobre a actuação da Administração Pública de que Moçambique é parte, mormente, a Carta Africana sobre os Valores e Princípios da Função e Administração Pública ratificada pelo Estado Moçambicano através a Resolução n.º 67/2012, de 28 de Dezembro.
O despacho do Secretário Permanente do MISAU descredibiliza a Administração Pública no que à gestão dos recursos humanos da função pública diz respeito, pela forma como viola a lei. Trata-se, assim, de um acto administrativo que enferma do vício de nulidade, senão de inexistência, sem qualquer efeito jurídico, pelo que não deve prevalecer.
O legislador definiu clara e expressamente em que medida pode, dentro do quadro constitucional em vigor, haver restrições dos direitos, liberdades e garantias fundamentais.
É preciso garantir melhores condições de trabalho aos funcionários e agentes do Estado se a função pública não quer perder os seus quadros para as entidades privadas.
Por: João Nhampossa
Human Rights Lawyer
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos
A sua enorme barriga com cardume de lombrigas como a de um canguru em gestação e a habilidade de dormir de boca aberta na sala, levaram a turma toda a chamá-lo Senhor Deputado. Seu nome era Viriato Bernardo Maposse. Era um espectáculo vê-lo dormindo de boca aberta e as moscas aterrando zumbidos sobre a pista do seu mau hálito. De tempos a tempos despertava para humedecer os lábios com uma pincelada da língua e voltava a dormir. Saudades tuas, Viriato Bernardo Maposse.
Era um rapaz doentio e por isso, tal como os deputados, tinha muitas regalias: não apanhava papéis na sala, tinha imunidade total às réguas da tabuada e tinha subsídio de notas nas provas e redacções.
O Senhor Deputado por vezes ficava meses sem pôr o pé à escola e para justificar as suas ausências surgia um senhor velho, descalço, com um molho de receitas preso por um elástico e falava com a nossa professora. Era o pai do Senhor Deputado, dava para ver pelas escamas de fome que tinha nos lábios secos. O Senhor Deputado era evacuado de hospital em hospital, passava dias em clínicas de curandeiros e voltava sempre o mesmo; com resto de saúde espalhando-se pela sala quando respirava. E sempre fendia de comprimidos e raízes.
E toda a turma gozava com ele. O Zeferino era sempre o primeiro; ria-se das pequenas nádegas do Senhor Deputado que eram amputadas por seringas nos hospitais e apimentava a piada: “as rodas do Mercedes do Senhor Deputado estão sem ar”. E o Senhor Deputado ameaçava-nos com um soco que não conseguia arremessar, um soco cheio de ossos nas mãos. Às vezes o Senhor Deputado chorava, mas tinha sempre uma resposta: “tem regalias e ainda chora como se sofresse".
O Senhor Deputado reprovou quatro vezes por faltas e quando se preparava para reprovar pela quinta vez baixou as poucas pestanas dos olhos que tinha, abriu a boca e morreu no Hospital Geral José Macamo. Foi a primeira vez que o Senhor Deputado fez-nos falta. Com a morte do Senhor Deputado a turma toda ficou de luto, era como se fosse o país inteiro. Chefes de turmas de outras classes apresentaram-me a mim condolências porque era chefe da turma do Senhor Deputado.
“O Senhor Deputado afinal não tinha seguro médico?", perguntou-me o chefe da turma 7, da quinta classe. Não me recordo o que lhe respondi, mas recordo-me de ver, três meses depois, a pauta que anunciava o cadáver do Senhor Deputado como reprovado pela quinta vez. Uma escola injustiça, tão injustiça que até reprovava deputados mortos.
Não sei o que acontece a alguns espíritos, sobretudo aqueles dotados de cultura e inteligência, sensibilidade e mundo, quando fazem proclamações exacerbadas e despudoradas sobre a vetusta Lourenço Marques. Quando se arrogam a esse desplante.
A desenfreada apologia de Lourenço Marques é uma afronta que deve merecer a mais vigorosa censura. Há um dever de memória que é preciso exercer quando se fala do passado que foi, para a maioria dos moçambicanos, negros ou não brancos, demasiado penoso, na antiga cidade de Lourenço Marques, mas não só.
Esta impetuosa mania de celebrar Lourenço Marques não decorre de uma amnésia. É acintosa, é ostensiva, é provocatória. Este triunfal vitupério do nosso passado é inadmissível. Principalmente quando exercido por aqueles que se querem igualmente moçambicanos.
Ouvir dos que foram coagidos, pelos ventos da História, a abandonar Moçambique, o seu desprimor por Maputo, a sua mofina, não me parece extraordinário e é até expectável. Conheço muitos que se recusam a chamar de Maputo a capital moçambicana e insistem em designá-la de Lourenço Marques. Mas aqueles que insistem, entre nós, com seus panegíricos à Lourenço Marques, aí, simplesmente, acho abominável. E não me coíbo de o dizer.
Não me recuso a aceitar a realidade, nem a ouvir as críticas. Eu também as faço. Mas há uma diferença entre Lourenço Marques, cidade colonial, e Maputo, capital de um país independente. Divergem em tudo: na economia, na política, na sociedade ou na cultura. Não são a mesma coisa, nem representam uma continuidade. Há uma importante disrupção com o 25 de Junho de 1975. Esses bons espíritos laurentinos que por aqui lavram não o entendem?
Eu posso até subscrever o retrato de uma dura realidade da cidade, que é a nossa, hoje, da nossa incapacidade, do nosso desgoverno, da nossa incompetência, da nossa displicência, do nosso descaso. Percorro todos os dias a cidade e sofro com isso.
Igualmente não me chocam os retratos que os forasteiros fazem de Maputo, com o olhar que é deles, que difere necessariamente do meu, mas embirro quando certos portugueses, ao assomarem a Maputo, venham logo proclamar estar em Lourenço Marques. Implico ainda mais com aqueles moçambicanos que continuam a proclamar que o melhor que Maputo tem é Lourenço Marques. Fazem-no disfarçadamente alguns. Outros tantos de forma desbragada.
Então alteiam loas à sua vida, mansa e tranquila, na velha Lourenço Marques, omitindo algo decisivamente importante: que era Lourenço Marques a não ser uma cidade colonial e discriminatória? Lourenço Marques era politicamente excludente. Quem nela vivia? Como era a sua paisagem humana? Nós todos cabíamos lá? Perguntem-me onde nós vivíamos. Como vivíamos. Quem éramos. Como éramos. Onde estamos nesses encômios?
Esta é a Cidade de Maputo. Não é mais Lourenço Marques. Alguns destes nostálgicos de Lourenço Marques são próximos de mim. Mas tenho que ser severo, ríspido e enérgico com eles. Essencialmente com eles.
Maputo, 10 de Novembro de 2021