Director: Marcelo Mosse

Maputo -

Actualizado de Segunda a Sexta

BCI

Blog

terça-feira, 30 novembro 2021 16:50

África levanta, já passou da hora

Quando o COVID-19 chegou ao mundo e as inúmeras restrições e lockdowns emergiram, escrevi sobre ser uma óptima oportunidade para África se reorganizar e se reestruturar para que quando as coisas “voltassem ao normal”, África pudesse estar mais preparada e independente.

 

Para além do que escrevi na altura, imaginava que com as restrições ao acesso aos serviços de qualidade do primeiro mundo, principalmente a saúde, ficaria claro para os dirigentes africanos que estamos todos no mesmo barco, pelo menos enquanto os lockdowns existissem, e que dever-se-ia trabalhar na providência de serviços e infra-estruturas de qualidade para todos, forçando a melhoria da capacidade produtiva africana. Mas porque sabemos sempre arranjar formas para benefícios de uma minoria, ainda em lockdowns, jatos privados serviam de meio de ligação com esses lugares mais organizados para os nossos líderes serem bem tratados, e doutro lado aqui em nossa terra, empresas faliam, o povo no desemprego, estávamos incapazes de controlar o vírus porque não tínhamos testes suficientes, nem condições de serviços de saúde para atender a demanda causada pelo vírus.

 

Enquanto isso, o primeiro mundo repensou (não sei se bem, mas repensou), novas formas de tratamento do ecossistema natural surgiram, COP 26 é um grande exemplo desse repensar (não irei fazer nenhuma análise critica sobre o mesmo neste artigo), novas formas de produção, de trabalho e tratamento dos trabalhadores também surgiram, cada vez mais o famoso “work-life balance” torna-se uma realidade e África a reboque tenta implementar tais soluções impostas pelos outros mas que podem não funcionar devidamente por aqui porque a estrutura não está preparada para receber essas soluções.

 

Sempre esteve claro que o mundo não parou porque os Africanos foram afectados pelo Covid-19 mas porque o ocidente tinha sido afectado. As economias por lá já estão em recuperação, África não foi vacinada o suficiente por incapacidade técnica e financeira para produzir ou comprar vacinas, por isso, e principalmente pelos motivos não declarados, o mundo vai isolar África (ou se preferirem África Austral). E dependendo das acções que forem tomadas pelos africanos, continuar com o modis operandi que já nos habituamos pode ser caótico para uma economia que passou por tanto nestes últimos tempos e que quase não tem reservas para se aguentar sem o resto dos continentes.

 

Em ciência, em economia, evita-se falar de Deus (o arquitecto do universo, a força por trás de tudo ou outro conforme quiserem chamar) sob o risco de sermos descredibilizados. Entretanto, trago aqui a sua presença por ser através dela que a maioria das pessoas se sente na “obrigação” de serem justas, de serem éticas e de fazerem o certo e principalmente por se acreditar que não se vai contra a vontade de Deus.

 

Ora, andamos em corridas desmedidas atrás de riqueza e poder, e, por conseguinte, a natureza sofre por ser demasiadas intervenções sobre ela e os efeitos são os que se vêm com as mudanças climáticas; sofrem também os humanos que já não têm direito a descanso porque o trabalho já não tem hora nem lugar; a preocupação pelo outro e pelo bem comum torna-se raridade... Se olharmos pela lógica divina, com o Covid-19, Deus deu ao mundo uma oportunidade de se repensar e reorganizar para cuidar melhor deste mundo e dos seus, e enquanto estavámos em lockdowns, os ecossistemas naturais restauraram-se e provaram que a actual presença humana é nociva a sua sobrevivência.

 

O primeiro mundo já pensou e adoptou novas estratégias de funcionamento com base na experiência do covid-19 e provou mais uma vez que o que eles pensam não é com objectivo de termos um mundo justo e igual para todos, e por isso África vai ser isolada. Se voltarmos para lógica divina, vamos ser também isolados porque não estamos a fazer o que devemos.

 

Será que já paramos para analisar que neste período (Covid-19, Instabilidade em Cabo Delgado, insegurança alimentar e conflito armado na Nigéria, a instabilidade na Etiópia, etc.) mais a nossa falta de organização, quantos cidadãos ficaram sem emprego, quantas famílias ficaram sem sustento, o nível de inflação, aumento do custo de vida, empresas falidas, desinvestimentos, desunião, egocentrismo, etc? O que isto significa para nós a médio e longo prazo?

 

Deixa-me dizer que, neste período nem tudo foi desgraça, o país (Moçambique) introduziu a prestação de serviços públicos por via de canais digitais; com a utilização do digital e da internet ficamos mais próximos de todo o mundo; a utilização de forças tarefas e providencia de informação continua sobre o estado da nação foi experimentado. O potencial económico resultante da riqueza turística, mineral, de produção agrícola, demográfica, entre outros permanece aqui (Moçambique e África). E com mais esta chance que o primeiro mundo nos dá (que eu prefiro pensar que é Deus, e não eles) de enquanto estivermos isolados, repensarmos e organizar todo esse potencial que temos, gerar empregos, melhorar a qualidade dos serviços, a produtividade, nos tornarmos autossustentáveis, independentes, unidos e justos, devemos fazer agora e não noutro tempo, porque depois pode ser tarde, fazer um lockdown para pensarmos e cuidarmos da nossa tão querida África – e porquê não de todo o universo.

 

Só para terminar, escrevi este texto porque gostaria de ver os jovens africanos, principalmente os moçambicanos, a entenderem que somos cada vez mais chamados a contribuir para a nossa liberdade. Parem por um momento esses posts de #ricariatodahora #avidaéumalife #estamosemfestas #riquezade1000pessoasestouacarregarsozinh@ e x, y e z e vamos buscar estratégias de transformação do nosso continente, do nosso país, e quiçá do mundo, e do nosso ser enquanto humanos.

 

Se não quiserem fazer por nós, e pelos vossos filhos, pelo menos façam pelo amor que têm por Deus para que a sua vontade de ver a sua bela criação próspera seja feita.

 

#africapleasestandup

terça-feira, 30 novembro 2021 16:33

Soberania vs. observância da lei

A semana passada teve o condão de os moçambicanos e o mundo em geral verem uma ilustre personalidade sentada no banco dos réus… ainda que não como réu propriamente, mas como declarante - o que, aos olhos do zé-povinho, é igual! De facto, em termos semânticos, a diferença é igual: em ambas as circunstâncias, trata-se de julgamento; tanto aquele que se senta no banco como réu, como o que se senta como declarante, ambos são impiedosamente interrogados pelo mesmo juiz na busca do esclarecimento da verdade material sobre determinada ilegalidade.

Assim, podemos murmurar que vimos, sim, um gigante sentado no banco dos réus!

 

Recuando no tempo, temos é memória de Sebastião Mabote e Manuel Antônio sentarem no banco dos réus, acusados de tentativa de golpe de estado; Almerino Manhenje, acusado de uso à margem das leis dos fundos do erário público; mais adiante, recentemente, tivemos o ex-ministro Paulo Zucula. Esperamos proximamente ver… a ex-ministra do Trabalho. É pouca coisa para 46 anos de independência de uma nação. Muito insignificante para tamanhos desmandos, violações, barbaridades, ilegalidades, desacatos, actos de corrupção, e outros nomes que tais. Se efectivamente fôssemos por um estado em que governa a lei e quem age à sua margem é rigorosamente responsabilizado, muitas ilustres personalidades já teriam passado pelo banco dos réus, seja como réus de facto, mas também como declarantes ou testemunhas.

 

Mas tudo bem. Esta semana, tivemos o ilustre ex-governador do nosso banco central. De todo o seu exercício de passear a sua classe, eloquência, magistralidade, academice, solenidade - tudo temperado com aquele seu adocicado sotaque bitonga -, ficou que o Banco de Moçambique autorizou as dívidas odiosas em nome da soberania, em nome de garantir a sobrevivência do estado moçambicano. Este é o entendimento geral das declarações do ex-boss da autoridade financeira suprema, largamente reflectida, ou vertida (segundo os juristas), em muitas páginas de jornais.

 

Colocação problemática esta que o juiz não deixou passar. Retorquiu ele que "então para vocês  a soberania precede a lei?” (citação de memória), ao que o nobre declarante redarguiu que “estava em causa a existência, segurança e sobrevivência do estado; não queríamos estar numa situação de não aprovar as garantias e acordarmos amanhã sem o estado moçambicano…" (também citação de memória).

 

Viajemos juntos com o Gove, afinal ele não nos está a viajar? Então a lei moçambicana, qualquer que seja ela, área, sector ou natureza, não tem em conta a soberania nacional? É concebível, racional, que uma lei moçambicana, ainda que seja sobre o aborto, por exemplo, nao tenha como mote a salvaguarda dos interesses do nosso estado, a nossa soberania? Particularmente, as nossas leis financeiras não destacam a questão da soberania? Não visam preservar e defender a soberania do nosso estado? Uma coisa serão as nossas leis financeiras e outra serão as outras leis que visariam preservar a soberania e a existência do estado? É isso?  Há essa destrinça? De que falamos, afinal, quando sempre evocamos interesse nacional? As nossas leis não são pelo interesse e instituto nacionais?

 

Se é isso, então cabe entender que o proponente das tais leis financeiras não é moçambicano, muito menos patriota; ou que o legislador que delas se apropriou e emanou não é moçambicano! Será racional entender que o Banco de Moçambique possa propor uma lei que não tenha em mente a soberania nacional? O interesse nacional? Que a Assembleia da República emane uma lei que não salvaguarde a soberania nacional? Que o chefe de estado promulgue uma lei que não salvaguarde a soberania nacional? É isto que Ernesto Gove quis que enxerguemos? 

 

Mas mais, soberania, afinal, o que é? Não é tudo o que é nossa pertença, incluindo as leis que regram sobre o nosso estado? Então, que lei financeira é essa que não previu questões inerentes à defesa da nossa soberania?

 

Depois, quem é que proclama que a soberania do estado está em perigo? Quem e aonde? Estando em perigo, como gritam os réus - e Ernesto Gove também fez coro -, a soberania do estado, não é o chefe desse estado que, em fórum próprio, alerta, proclama e indica as medidas que devem ser tomadas e por quem para se fazer face a esse perigo de estado? É alguém andar de gabinete em gabinete com papéis na mão a recolher assinaturas, coagindo, ameaçando e intimidando?

 

Mas esta já não é responsabilidade apenas do Gove, é do chefe do governo! Este devia, depois de se aperceber, informar-se devidamente e recolher e consolidar as ideias sobre uma eventual ameaça à soberania do estado, convocar os órgãos próprios, incluindo o governo do Banco de Moçambique, e lhes instruir sobre o que devem ou não devem fazer, as medidas a tomar para salvaguardar a soberania.

 

Isto é que devia ser. Mas, entendemos, Gove quis safar a sua pele! Vamos ouvir o que a bateria de ministros que vem aí vai dizer-nos. Esperamos que não nos façam de matrecos, como o ex-governador nos fez!

segunda-feira, 29 novembro 2021 09:26

Duas pandemias?

No dia em que a Europa interditou os voos de e para Maputo, Moçambique tinha registado 5 novos casos de infeção, zero internamentos e zero mortes por COVID 19. Nos restantes países da África Austral a situação era semelhante. Em contrapartida, a maioria dos países europeus enfrentava uma dramática onda de novas infeções. 

 

Cientistas sul-africanos foram capazes de detetar e sequenciar uma nova variante do SARS Cov 2. No mesmo instante, divulgaram de forma transparente a sua descoberta. Ao invés de um aplauso, o país foi castigado. Junto com a África do Sul, os países vizinhos foram igualmente penalizados. Em vez de se oferecer para trabalhar juntos com os africanos, os governos europeus viraram costas e fecharam-se sobre os seus próprios assuntos.

 

Não se fecham fronteiras, fecham-se pessoas. Fecham-se economias, sociedades, caminhos para o progresso. A penalização que agora somos sujeitos vai agravar o terrível empobrecimento que os cidadãos destes países estão sendo sujeitos devido ao isolamento imposto pela pandemia.

 

Mais uma vez, a ciência ficou refém da política. Uma vez mais, o medo toldou a razão.  Uma vez mais, o egoísmo prevaleceu. A falta de solidariedade já estava presente (e aceite com naturalidade) na chocante desigualdade na distribuição das vacinas. Enquanto, a Europa discute a quarta e quinta dose, a grande maioria dos africanos não beneficiou de uma simples dose. Países africanos, como o Botswana, que pagaram pelas vacinas verificaram, com espanto, que essas vacinas foram desviadas para as nações mais ricas.

 

O continente europeu que se proclama o berço da ciência esqueceu-se dos mais básicos princípios científicos. Sem se ter prova da origem geográfica desta variante e sem nenhuma prova da sua verdadeira gravidade, os governos europeus impuseram restrições imediatas na circulação de pessoas. Os governos fizeram o mais fácil e o menos eficaz: ergueram muros para criar uma falsa ilusão de proteção. Era previsível que novas variantes surgissem dentro e fora dos muros erguidos pela Europa. Só que não há dentro nem fora. Os vírus sofrem mutações sem distinção geográfica. Pode haver dois sentimentos de justiça. Mas não há duas pandemias.

 

Os países africanos foram uma vez mais discriminados. As implicações económicas e sociais destas recentes medidas são fáceis de imaginar. Mas a África Austral está longe, demasiado longe. Já não se trata apenas de falta de solidariedade. Trata-se de agir contra a ciência e contra a humanidade.

 

Mia Couto

 

José Eduardo Agualusa

segunda-feira, 29 novembro 2021 09:13

Não escrevo isto a Calane que dorme no Michafutene…

A única generosidade mais pura que sempre vi em Calane foi a de dobrar-se; ele tinha uma espécie de guinchos no pescoço que lhe dobravam a cabeça para falar com os mais baixinhos. Não era só o corpo enorme que se dobrava, que descia, eram os seus óculos, o seu cheio, a sua boca entulhada de gotas de saliva e toda a sua humildade. E parece injusto quando o tempo dobra um homem que sempre se dobrou a todos.

 

E ele era também estiloso, não sei porque raio de gentileza o tempo arruma as pessoas estilosas; Calane já tinha o bigode penteado de branco pelo tempo, a tesoura das horas comia-lhe, sem parar, a raiz dos cabelos e o seu bigode com sedas brancas levitava a cada sorriso como capim sendo arrastado por um jacto de vento.

 

Escrevo isto a Calane que sempre andava enterrado em camisa sem gola, com pêlos brancos escalando a camisa e denunciando a ilha do tempo que lhe arrastava a areia do corpo à velhice. Não escrevo isto a Calane do Michafutene, a Calane que se deixa comer pelos vermes da terra como a poeira engole os capítulos dos seus livros e a métrica dos seus poemas nas prateleiras da cidade. A este Calane não escrevo e nunca escreverei.

 

Escrevo a Calane de gancho, elegante, no nariz onde engatava os óculos, a Calane que nunca soube falar devagar, a Calane que afastava os pulmões para falar e parecia que se sufocava quando falava; mas nunca se estrangulou pois era falando que o homem respirava. Escrevo a Calane branco, preto, mulato, indiano, hindu…

 

Não escrevo isto ao estranho Calane que foi tapado a voz e o corpo pelas pás de Michafutene, a Calane que pernoitou de costas sem dizer um poema na morgue do hospital para assustar a morte. Escrevo isto a Calane que não precisa de uma botija de gás para pôr a andar a porcaria da vida; escrevo a um Calane branco, preto, mulato, indiano, hindu, que sempre foi coveiro do medo com a pá da sua poesia. Juro-vos que não escrevo a Calane de Michafutene com flores e vasos no peito.

 

Eu dizia que Calane tinha a habilidade de dobrar o seu enorme corpo para falar com os mais baixinhos, não sabia que ele podia, um dia, curvar o corpo para caber na travessa de uma funerária e terminar no Michafutene como todas as carcaças de ossos que saem das morgues dos hospitais.

sexta-feira, 26 novembro 2021 08:29

Sou imigrante e fui criança-soldado…

Tinha a cabeça submersa, como um cágado, no casco da camisola, movimentava-a mas só para os lados. Tinha os óculos poisados sobre a mesa, mas as marcas dos óculos continuavam em seu nariz; e seus olhos mexiam-se a cada instante como pés húmidos arrancados das meias. Os óculos de costas estavam sobre a mesa, um isqueiro descansando o sopro de lume mexia-se o seu gás sobre um maço de cigarros. O homem, de quando em quando, atirava o seu olhar solto das algemas dos óculos sobre a Ria Formosa.

 

As lanchas arquivadas em filas nas bermas da ria eram como mulheres aninhando-se nos corredores de uma maternidade, os carros comendo-se de impaciência na passadeira para um velho puxado por um cachorro magro, os turistas de calções curtos estendendo suas pernas povoadas por pêlos murchos e outros remastigavam fumo de cigarros de olhos fechados, tudo isso corria no centro de Faro. E o homem continuava ali sentado, sobrepondo os pés, de segundo a segundo, como se ensaiasse passos para caminhar para dentro de si.

 

Andamos todos com medo de sermos atacados, por isso armei-me de máscara e sentei-me na mesma mesa com o homem; e ele, também, por segurança, manejou o revólver da sua máscara e ficamos um vigiando o outro com medo do ataque; o homem tossiu duas vezes, três vezes e quase os pulmões saiam-lhe pelas fendas do nariz. Como um bom militar de guerra, recuei a cadeira, estiquei os gatilhos elásticos da minha máscara e homem riu-se sem parar. “Esses tipos já começaram a despachar esta porcaria de cigarrilhas”. E a conversa começou. Primeiro foi a recolha obrigatória que recolheu toda a nossa timidez na conversa, depois foi a gripe que adormecia toda a Europa a enfiar-se na mesa; e do nada o homem, equilibrando a máscara no queixo para mais uma cigarrilha, disse-me: “o único imigrante que não é bem-vindo em todo mundo é esta gripe”.

 

O homem sacudindo a cauda da última cigarrilha, ainda com a boca transbordando de fumo, diz-me: “depois de morto que levem os meus pulmões para a Amazónia; assim o mundo respira muito mais. Podes não acreditar mas tenho os pulmões mais saudáveis do mundo”. Filtrei, com a máscara, um sorriso que o homem não viu, mas apercebeu-se pelas leves deslocações das bochechas. E o homem foi falando sem parar, reclamava da esposa que lhe trocava por um cão. E no meio disso o homem diz que na terra onde cresceu os cães não têm nenhum direito; o único direito que têm, por piedade, é de morrerem apedrejados na rua.

 

“Eu sou imigrante como tu, imigrante como todos os que saíram da sua terra com um par de calças no cabide da cintura”. Kassoma era o nome do homem. Disse-me que é de Angola e tinha chegado a Portugal porque queria, antes de tudo, fugir da memória pesada do assassino dos pais durante a guerra civil. Um senhor mexeu nas lanchas arquivadas em filas nas bermas da ria e as lanchas agitaram-se, desta vez como mulheres sendo engolidas por porta de uma maternidade. E Kassoma não parava de falar dos seus pais assassinados como cães, na sua terra onde os cães eram apedrejados nas ruas. “Os meus pais foram podados os pescoços com duas baionetas, tu sabes o que é isso? És puto demais para isso”.

 

Já não tinha mais cigarrilhas, começou a roer as unhas como se quisesse desenterrar uma cigarrilha, agitou o isqueiro. Quando me preparava para uma pergunta qualquer o homem dispara-me: “o que tu queres saber de mim? Tu sabes que sou imigrante, Portugal acolheu-me, apesar de existirem alguns racistas que me chamam macaco, mas eu também fui criança-soldado. É isso que queres saber?”. Quando o homem afundava-se num enorme poço de silêncio eis que um carro, com um cão agitando-se no interior, buzina à nossa mesa; uma senhora branca entorna a cabeça pela janela e Kassoma levanta-se, junta-se aos poucos, mete-se no carro e desaparece.

Sérgio Mundaí* nasceu em Bajone, na província da Zambézia. Na tenra idade, treinava karatê e no bairro vários jovens levavam “txaia”. Dadas as suas habilidades físicas, a família fez de tudo para que Mundaí fizesse parte das Forças de Defesa e Segurança (FDS), ramo que abraçou por mais de 20 anos, até que uma mega oportunidade surgiu – foi seleccionado para fazer parte da Unidade de Protecção de Altas Individualidades (UPAI), mas desta vez na capital do país, cidade de Maputo.

 

Embora competente, Sérgio Mundaí tinha um vício – bebia bastante. Só que na UPAI o homem era escalado para trabalhar em dias em que não se pudesse envolver numa bebedeira super agressiva e faltar ao trabalho. Mas, mesmo no trabalho, sempre que fizesse parte de uma equipa que levasse um chefão a uma festa, o homem dava uma escapadinha e tomava uns drinks na cozinha, ou mesmo levava e escondia as garrafas.

 

Sucede que, num belo dia, Mundaí e seus colegas são seleccionados para uma brigada especial, encarregue de transportar oito toneladas de vinho, provenientes das bandas de Abu Dhabi e que entrariam via Terminal da Base Aérea, na cidade de Maputo. Neste dia, todos se questionavam o porquê de não passar pelas alfândegas e pelos oficiais do Terminal de Cargas, tratando-se de uma carga de género. Entretanto, ninguém tinha resposta, apenas se dizia nos corredores que a mercadoria era especial e que não devia ser mexida e nem inspeccionada, daí que o avião que trouxe a mesma aterrou num local especial como na Base Aérea – mas o coração dos homens de grande business no aeroporto sangrava!

 

Naquele dia, os homens escalados para a missão não sabiam o que iriam transportar, daí que, chegando no local, depois da mercadoria ser descarregada, os oficiais questionaram o que era aquilo – eis que alguém responde dizendo que era vinho! Espantado e ao mesmo tempo satisfeito, Sérgio Mundaí deu um pulo mágico e subtraiu uma caixa, acreditando que se tratava mesmo de vinho e que uma caixinha daquelas não iria fazer falta.

 

A equipa seguiu ao destino com a mercadoria. No local, os oficiais da UPAI foram dispensados e ficaram os homens da contabilidade a fazer o cálculo do vinho, até que um dos contabilistas se apercebeu que faltava uma caixa e prontamente comunicou os seus superiores que o vinho não estava completo…. Preocupados, os superiores contactaram os homens de Abu Dhabi, informando que a mercadoria não estava completa e eis que os homens responderam dizendo que tinham todas as provas de que eram 8 toneladas de vinho! Encetou-se diligências para se perceber o que havia acontecido.

 

Do outro lado, convencido de que iria provar uma boa taça de vinho, não é que Sérgio Mundaí se surpreende ao abrir a caixa – eram na verdade maços de notas em dólar – o homem ficou boquiaberto, o que é isso? Dinheiro? Então, aquilo tudo que transportamos era dinheiro e não vinho? Se questionava Mundaí. De imediato, Sérgio Mundaí fecha-se no quarto e começa a contar o dinheiro que passava uns 20 maços em notas de 100 USD cada.

 

Metido a esperto, Sérgio Mundaí arranjou formas de tirar o dinheiro de casa e esconde-lo. Por outro lado, as diligências decorriam silenciosa e sigilosamente, procurando-se saber quem havia sumido com a caixa de vinho! Não é que, entre os interrogados, um acabou revelando que, no dia do transporte, o colega Sérgio Mundaí havia subtraído uma caixa de vinho. Chamado para responder, Mundaí negou tudo e jurou em nome de todos seus antepassados que haviam perdido a vida que não teria visto e nem levado a tal caixa. Entretanto, o pesadelo só estava a começar!

 

Deixaram o tempo passar. Num certo dia, em plena hora do almoço, homens armados e a paisana bateram ao portão da casa de Mundaí. No dia, o homem estava de calções e uma camiseta interior jogando conversa com a esposa, os filhos e vizinhos. A instrução era calar, intimidar o homem a falar e, caso não revelasse onde estava o dinheiro que estava na caixa de vinho, lhe tirassem a vida e escavassem toda a casa atrás daqueles maços.

 

Começou o pesadelo, Sérgio Mundaí foi imobilizado, torturado e baleado em frente dos filhos, enquanto era questionado, onde estava o dinheiro. O homem simplesmente dizia: “eu não sei de que vocês estão a falar”. Depois de minutos sem falar e com tiro alojado na perna, parte do grupo arrastou-o até ao carro, enquanto isso, um grupo sentava-se no seu sofá, servindo seu whisky, apreciando a senhora Mundaí e assistindo televisão com as portas fechadas. O outro grupo levava o homem para um lugar incerto, onde foi assassinado e depois deixado nas bandas de Chiango!

 

Uma hora depois, o grupo voltava com enxadas e pás atrás dos maços de dinheiro que, entretanto, nunca foram achados e a família de Mundaí teve de fugir da zona com medo de ser apagada! No entanto, não se sabe se foram os chefões que mandaram o grupo para cometer tal façanha, ou foi alguém que acompanhou a história nos bastidores e quis ficar com o garrafão de vinho cheio de maços de USD supostamente descartado. Quem sabe, se Mundaí estivesse vivo, testemunharia, com propriedade, o que de facto estava nas 8 toneladas de vinho enviadas de Abu Dhabi pelo maestro Jean!

 

*Nome fictício. Facto real e organizado consoante a imaginação do autor