“Todos os cidadãos são iguais perante a lei, gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres, independentemente da cor, raça, sexo, origem étnica, lugar de nascimento, religião, grau de instrução, posição social, estado civil dos pais, profissão ou opção política.” É o que está consagrado no artigo 35 da Constituição da República de Moçambique (CRM), o qual está em harmonia com determinados instrumentos internacionais de direitos humanos de que Moçambique é parte, quais sejam: a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, só para citar alguns. Aliás, determina o artigo 43 da CRM que: “Os preceitos constitucionais relativos aos direitos fundamentais são interpretados e integrados em harmonia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Carta Africana sobre os Direitos Humanos e dos Povos.” De acordo com estes instrumentos legais, o Estado moçambicano tem a obrigação de garantir a protecção dos direitos humanos e liberdades fundamentais dos seus cidadãos no território nacional e no estrangeiro.
Cidadão moçambicano e jornalista de profissão, ao serviço do Jornal Semanário, Magazine Independente, na Cidade de Maputo, foi vítima de violação do seu direito fundamental de livre circulação, dignidade humana e integridade física pelas autoridades angolanas, no dia 11 de Agosto de 2011, quando se encontrava no Aeroporto de Luanda prestes a entrar para o território angolano em missão de serviço.
Na verdade, Manuel Cossa fora convidado pelo Centro de Formação de Jornalistas de Angola, em parceria com a Gender Links, para participar duma formação de capacitação de jornalistas na área de economia e género em Luanda, entre os dias 12 a 15 de Agosto de 2011, particularmente dirigida a jornalistas da SADC. Na sequência, o referido cidadão solicitou o competente visto à Embaixada de Angola em Maputo para poder entrar legalmente neste País, ao que lhe foi concedido conforme as regras de concessão do visto na altura.
No entanto, o mesmo foi interdito de entrar no território angolano pelos Serviços de Migração Estrangeiros sem nenhuma explicação. A interdição foi feita com recurso a ameaças, maus tratos, incluindo a violação da integridade do seu passaporte que fora riscado como se de criminoso e imigrante ilegal se tratasse, tendo sido repatriado de imediato para Maputo em circunstâncias de muita humilhação, tendo ficado sem alguns dos seus instrumentos de trabalho, com destaque para o seu computador portátil.
Pelo sucedido, Manuel Cossa juntamente com a sua entidade empregadora, o Jornal Magazine Independente, apelaram às autoridades moçambicanas, particularmente o Ministério dos Negócios Estrangeiros e Cooperação, para junto ao Estado angolano esclarecer esta situação e reparar os danos sofridos pela violação, mas nada foi feito de que tivesse sido dado a conhecer à vítima, em protecção dos seus direitos.
Ao agir da forma como agiram, as autoridades angolanas puseram em causa não só o direito de livre circulação e dignidade da vítima, como também desprezaram e ignoraram a Constituição da República de Moçambique, na medida em que violaram, arbitrariamente, um passaporte (documento do Estado) legalmente emitido pelos Serviços de Migração de Moçambique sem fundamento que justificasse tais actos. Importa aqui referir que, durante muito tempo, Manuel Cossa ficou numa situação de não saber se podia seguramente viajar para o território angolano.
Nos termos do disposto no artigo 55 da Constituição da República de Moçambique e da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, de que Moçambique e Angola são parte, todos os cidadãos gozam do direito de livre circulação no interior e exterior do território nacional, desde que não estejam judicialmente privados desse direito. Quanto a Manuel Cossa, não existe nenhum registo de privação de circulação. Pelo que os actos das autoridades angolanas constituíram, entre outros, violação do seu direito de livre circulação em Angola, uma vez que tinha todos os requisitos legais para o efeito.
Assim, no ano de 2012, Manuel Cossa recorreu ao Tribunal Administrativo pedindo o reconhecimento e protecção do seu direito fundamental de livre circulação, integridade física e dignidade humana e, em virtude disso, para que o Estado moçambicano fosse condenado a tomar todas as medidas necessárias para interceder junto ao Estado Angolano com vista à reparação dos danos causados à vítima e a pagar a devida indemnização por perdas e danos derivados das violações em causa.
Após oito anos de batalha judicial, em Novembro de 2020, o Plenário do Tribunal Administrativo, através do Acórdão n.º 75/2020, negou provimento ao pedido de Manuel Cossa e deu por encerrado o caso, alegando que, na sequência do sucedido, houve correspondências entre o Estado moçambicano e o Estado angolano, através dos quais, o Ministro das Relações Exteriores, em nome do Presidente da República de Angola, apresentou desculpas ao Governo Moçambicano, no quadro do poder discricionário dos dois Estados à luz dos artigos 47 e 48 da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos que permitem o pedido de desculpas como forma satisfatória de resolução do problema.
Todavia, nunca houve pedido de desculpas formais, nem por outra forma, para com a vítima, ao qual nunca foi dado a conhecer resultado de quaisquer correspondências, nem de que forma terá o Estado moçambicano garantido a reparação dos direitos violados pelas autoridades angolanas. Em bom rigor, no presente processo, o Ministério Público promoveu a improcedência do pedido nos termos decididos pelo Tribunal Administrativo.
Esta cidadã moçambicana, residente na Matola, Província de Maputo, no ano de 2011, foi vítima de amputação brutal do seu dedo polegar esquerdo, acto perpetrado por um dos agentes da polícia sul-africana no posto fronteiriço de Libombo na Província de Mpumalanga, território sul-africano, bem próximo da fronteira de Rassano-Garcia, alegadamente por estar a transportar e vender cabelos artificiais. O autor deste acto violento ficou impune e à vítima não lhe foi concedida uma assistência legal condigna e em tempo útil para a devida reparação dos danos causados, não obstante ter havido denúncia ao Estado moçambicano para o devido apoio jurídico e o caso ter sido bastante noticiado e debatido na imprensa. O autor deste artigo não encontrou informação clara, no domínio público, sobre o desfecho final do caso pela intervenção do Estado.
Desde o ano de 2008 que os casos de xenofobia contra os cidadãos moçambicanos, entre outros africanos, têm intensificado. No entanto, escasseia informação detalhada no domínio público que demonstra a prática de esforços eficazes do Estado moçambicano junto ao Estado sul-africano em defesa dos moçambicanos vítimas de acções de xenofobia na África do Sul.
No contexto do famigerado caso das dívidas ocultas e do libelo acusatório da justiça norte-americana sobre este processo, no dia 29 de Dezembro de 2018, as autoridades sul-africanas detiveram, no seu território, o antigo Ministro das Finanças e Deputado da Assembleia da República, Manuel Chang, a pedido das autoridades americanas para a consequente extradição do mesmo para os Estados Unidos da América. Desde então, o Estado Moçambicano, fundamentalmente através da Procuradoria-Geral da República (PGR), tudo tem feito para garantir a defesa de Manuel Chang, que não é Cossa, com vista a ser extraditado para Moçambique.
Dos variadíssimos esforços que estão a ser levados a cabo pelo Estado moçambicano desde o ano de 2018 até ao presente momento para a defesa de Chang na África do Sul, destaca-se a informação, ainda que não detalhada, de gastos de muitos milhões de meticais para pagar honorários dos advogados constituídos a favor de Chang e outras despesas relativas a este caso. Aliás, o Estado tem elaborado vários documentos e comunicados de imprensa que demonstram o seu vigor e interesse directo em defender Chang no estrangeiro.
Tendo por base os casos supra descritos, parece que os cidadãos moçambicanos não têm igual tratamento, em termos de protecção dos seus direitos no estrangeiro, pelo seu próprio Estado que revela escolher a quem garantir pronta protecção dos direitos além-fronteiras. Afinal, que critérios estão a ser postos em prática para a efectiva garantia de defesa dos moçambicanos no estrangeiro ou cujos direitos são violados por autoridades estrangeiras?
Por: João Nhampossa
Human Rights Lawyer
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos
É verdade! Depois desse mar todo de amor que despejavam sobre mim, sem que eu desse conta do tesouro que isso representa, escolhi a reclusão da solidão, que na verdade é um jardim sem limites, porém desprovido das flores que eram vocês as sete, na mesma intensidade, cada uma no seu tempo. Agora vivo das vossas lembranças. Do vosso cheiro que ainda me percorre sem parar em todas as veias do meu sentimento. É como se ainda me pertencessem, como se ainda, na profundeza das noites, fosse sentir o vosso peito macio tocando-me nas costas.
Cheguei a conclusão, sem que para tal fizesse qualquer exercício mental, que vocês as sete amavam-me da mesma maneira, no sentido de que o que mais queriam de mim era a minha felicidade. Eu era o vosso mote. Partiam com esperança e anseio para diversas searas como os pássaros que saem dos ninhos a procura de provento, eu era a vossa rampa e porto de retorno. Ao regressarem, cada uma no seu tempo, eu era o poiso onde assentavam o corpo suado. Desejoso de mais uma noite de amor.
Mas mesmo assim, com a vida levada em órbita, foram percebendo em cada momento do nosso convívio, que afinal serei uma decepção, eu também senti isso. Sabia da minha incapacidade de amar. Tinha consciência do meu imerecimento do amor. Do vosso grande amor que até hoje não abandona os meus pensamentos. E vocês as sete lutavam pelo ajuntamento de ouro para mim, e eu levei esse ouro e coloquei-o no focinho dos porcos, e depois virei-vos as costas sem me preocupar em levar nada, desvalorizando o vosso suor vertido. Em vão.
Hoje quando me lembro dos vossos olhares dormentes na ressonância do sexo que faziamos em cascata, sinto que nunca fui pessoa para ser amada por nenhuma de vocês as sete, mas isso corta-me o coração aos pedaços, sobretudo porque nunca se esqueceram de mim, depois destes anos todos que passaram. Jamais se riram dos meus fracassos enterrados nas bebedeiras absurdas. Antes pelo contrário, vocês as sete querem que eu volte a ser feliz, como quando o meu coração estava nas vossas mãos. Sei disso através das pessoas com quem comentam em ocasiões, querendo saber como estou.
Eu já não falo de vocês, limito-me a agradecer os momentos intensos que me ofereceram. De graça. Sem o merecer. Sinto-me feliz por saber que os vossos caminhos estão cheios de luzes. Então peço a Deus que coloque mais petróleo nos candeeiros pendurados nos postes da vida prenhe que merecem, para que não se apaguem. E a mim, deste lado, no meu celibato, o que me resta neste fim de estrada, é fingir que sou um cantor de blues, isso torna-me vital.
Obrigado, minhas sete ex-mulheres, pelos laivos de felicidade que experimentei convosco. Depois disso tornei-me um vagabundo, que mesmo assim ainda acredita no futuro. E acredita também que no dia da minha morte, vocês as sete não se esquecerão de levar flores para embelezar a campa deste vosso ex-marido que não presta para nada.
Num texto da disciplina de língua portuguesa, de que não me ocorre o título e nem a classe (o famoso “Não me lembro” do Julgamento em curso sobre as dívidas ocultas”), havia uma passagem que narrava o momento em que diariamente alguém tocava a campainha de uma casa para a entrega matinal de leite fresco. Depois que um dos filhos da casa abria a porta, uma voz ao fundo, vindo da cozinha, perguntava: “Quem é?”
“Não é ninguém. É o homem do leite”. Invariavelmente assim respondia o filho e creio, se a memória não me atraiçoa, que o próprio “Homem do Leite” também passara a responder do mesmo jeito depois que ouvisse a pergunta e antes até que abrissem a porta.
Faz algum tempo que eu contara esta passagem ao meu filho. Por acaso, num destes dias do citado julgamento, e estando distante da televisão, pergunto a ele sobre quem estaria a ser ouvido no julgamento. A resposta não tardou: “Não é ninguém é o Sr. Sarama”.
Perante a minha careta – de alguém que fingira não ter entendido - ele prossegue: “No Tribunal todo o mundo, e até os réus, mandam no Sr. Sarama”. Um pouco depois ele diz: “Mas no fim do dia todos esperam por ele para irem à casa”. O mesmo acontecia com o “Homem do Leite”: todos esperavam por ele antes que saíssem de casa.
Da resposta eu entendera perfeitamente de que ninguém estava a ser ouvido, mas a ser redigida a acta. E para quem não saiba o Sr. Sarama é o escrivão de plantão do julgamento citado e que decorre na 6ª secção do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo, ora a funcionar na cadeia da “B.O”.
A ideia de quem redige a acta “não é ninguém” encontra algum fundamento no histórico dos julgamentos mediáticos do país. A título de anexo comprovativo, segue a pergunta: uma vez que o leitor afirma que acompanhou o julgamento do “Caso Carlos Cardoso” poderá dizer aos outros leitores quem terá sido o escrivão desse julgamento?
Aposto que o leitor não se lembre, mas todos os leitores, e não só, que tenham acompanhado o julgamento do “Caso Carlos Cardoso”, certamente que se lembram do Juiz do mesmo bem como do seu posterior (e imediato) percurso até ao cargo de Procurador-geral da República.
Decerto, se a história vingar, será o que acontecera com o desfecho do julgamento em curso, dando azo que se diga de que o “Não me lembro”, facultado como uma opção de resposta a ser dada pelos arguidos/réus, também seja uma opção (institucional) na gestão dos seus recursos humanos no sistema de justiça.
Ainda assim, e para terminar, tenho fé de que um dia o leitor chegue a uma instância superior ao da 6ª secção do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo e no seu ouvido oiça, bem baixinho, uma voz a dizer: “O escrivão é aquele das dívidas ocultas”.
Ao Bayano Valí e ao Zacarias Tsamba
A baía de Inhambane funciona como uma ilha a separar dois mundos: o do movimento agitado da Maxixe e o do silêncio tranquilo de Inhambane-céu. O movimento no café da pousada Maxixe aumenta quando a noite se prolonga. Cada vez que um camião ou transporte interprovincial de passageiros estaciona para o habitual descanso, os seus ocupantes se fazem ao café para pedir alguma coisa, para enganar o estômago e molhar a garganta.
Esta noite mostrou-me que, quando se chega a Maxixe, a garganta seca. O mesmo aconteceu comigo. Molhei-a duas vezes num acto que também considerei histórico, pois também saudava a memória de Mac-Mahon. Quase todos faziam o mesmo. E porque pronunciar o nome do Marechal francês tantas vezes podia ser cansativo, a abreviatura tomou conta do café. Todo mundo olhava ao servente da mesa e anunciava o nome abreviado do marechal, “2M”. É como se celebrássemos uma negociação de paz entre dois beligerantes, em nome de um povo que nunca sequer lhe foi apresentado um argumento para que aprovasse uma guerra.
Eu e dois amigos ocupamos uma mesa à direita da entrada do café da pousada. De vez em quando deixo de prestar atenção à conversa para contar os pirilampos que chegam à minha vista de Inhambane-céu. As luzes do Hotel Casa Capitão, da Catedral de Inhambane e da Ponte Cais chamam a minha atenção. Como toda cidade olhada de longe, imagino quantos casais estejam a trocar sabores, prazeres ou dores e odores. “Tudo depende de como as pessoas vivem, pois quando o silêncio toma conta dos casais” ___ diz um dos meus amigos ___“dores e odores tomam conta de suas vidas e quando a comunicação flui, prazeres e sabores cruzam-se”, conclui.
Na verdade, a diferença entre Inhambane-Céu e Maxixe revelam-me que o mundo só existe porque os contrários o harmonizam. Maxixe agrada-me quando não quero dormir; Inhambane agrada-me quando quero dormir; imagino que seja por isso que os contrários existem. Por isso que normais sorriem e choram, lamentam e celebram. Nesta altura ocorre-me que os barcos da administração marítima de Inhambane gostam de dormir e quando é para dormir, deve ser do outro lado da baía, na cidade de Inhambane. Por isso a necesidade de falar aos meus amigos sobre o meu regresso.
___ Calma! Nós conhecemos isso. Fique à vontade e peça mais um café, a princípio bem amargo, para que a tristeza não consiga sobreviver no teu organismo ___ diz o meu amigo à direita. Ele usava uma camisete branca, com um desenho feito por mestres da arte Makonde. Sendo historiador, ele estava habituado a encontrar um argumento histórico para tudo que fizesse. Explicou que reza a história que nenhum hóspede já ficou sem barco na Maxixe e a acontecer. Seria o primeiro caso.
Na minha contra-argumentação, explico-lhe que ser o primeiro a perder barco na Maxixe, é uma ideia que me agrada porque, como todos os seres humanos, gosto da ideia de ser o primeiro. Em quase todos os lugares, o primeiro recebe uma distinção. Primeiro filho, primeiro melhor aluno da turma, primeiro homem a chegar à lua, primeiro homem a namorar com uma mulher e por aí em diante. Conto-lhe uma história que se passou em Memba sobre ser primeiro. Explico-lhe que Jentilal Muldji era o primeiro em termos de preços baixos entre as as lojas da vila de Memba; mas quando Melopia Mussa mudou a sua sede de Tropene para Memba-sede, tomou a posição praticando preços baixos jamais vistos na vila. E porque Jentilal queria ser o primeiro em alguma coisa, tornou-se no primeiro comerciante a negar dinheiro de um cliente. Num dia desses quando um vizinho foi comprar ekhutte (feijão boer), tendo primeiro passado pela loja do Melopia antes de chegar à loja do Jentilal. Chegados à loja do velho Jentilal lhe é perguntado o que queria e ele respondeu ___ ekhutte ___ ao que Jentilal respondeu “wa melopia ehavo ekhutte” (no Melopia também tem feijão), tornado-se assim no primeiro comerciante a negar-se vender a um cliente.
Contei a história para mostrar que o ser primeiro é uma luta que atravessa os humanos, a ponto de disso depender sua felicidade. Nesta altura está chegar a pousada mais um autocarro que funciona como transporte interprovincial de passageiros. Os seus ocupantes comentam que o motorista é muito matreco, por isso perderam a oportunidade de serem os primeiros a chegar entre os autocarros com mesma procedência, inclusive, recomendam ao motorista para descansar bem, porque amanhã eles querem ser os primeiros a chegar a Maputo.
Depois de vários cafés fomos ao cais da Maxixe para apanhar o último barco. À chegada algo estranho chamou nossa atenção. As luzes do cais estão apagadas e a lojinha de venda de bilhetes fechada.
___ Parece que perdi o último barco ___ digo aos dois amigos que me acompanham com uma entoação vocal de desespero.
___ Espera! Vamos ler tudo que está escrito na vitrine ___ diz o outro amigo.
Enquanto líamos as informações da vitrine, percebemos que o barco havia parado de circular antes da hora exacta. Nessa altura a opção que me restava era o regresso à pousada da Maxixe. Entretanto, faria isso depois de uma chamada telefónica para a administração marítima, para apresentar a reclamação. Minutos depois de espera, uma voz do outro lado atende:
___ Alô, boa noite!
___ Boa noite! Olha, nós estamos aqui no cais da Maxixe e verificamos que o barco parou de circular antes da hora prevista. A que se deve?
___ Eya! Tudo por causa dessa tal democracia. Eu estava a dormir e de repente tem pessoas que lêem todos artigos, documentos e decretos, a ponto de acordar-me para uma boleia de barco. Como se o barco os pertencesse ___ reclama o homem do outro lado da linha.
___ Ainda não nos explicou a que se deve.
___ O barco já está a chegar. ___ responde friamente.
Desliga a chamada enquanto uma brisa bem forte se faz sentir na baía de Inhambane. Nessa altura dou-me conta que não trago camisola e começo a fazer as matemáticas sobre quanto devo gastar para pagar por uma hospedagem na Maxixe. Quando iniciámos a caminhada de volta à pousada, o último barco já balançava sobre as águas. Afinal, nenhum hóspede já ficou sem barco na Maxixe.
Ernesto Gove, ex-Governador do Banco de Moçambique, assume que o contrato assinado entre Proindicus e o Credit Suisse, com garantia soberana, tinha uma irregularidade - a falta de autorização do Banco de Moçambique - mas essa irregularidades era "suprivel". Como? Por vista grossa.
Tendo em conta assunto "soberania" e a qualidade dos actores do processo (Sise, MPF e Chang), a irregularidade foi suprida liminarmente, violando-se a Lei; Gove disse que o BM foi impelido a isso também porque Manuel Chang deixou claro, enfatizou, que tinha sido mandatado.
Por quem?, perguntou o juiz.
Só ele, Chang, pode dizer - respondeu Gove.
Esta insinuação só pode remeter para um nome: o Chefe de Manuel Chang na altura.
Quem era ele? Eu já não me recordo. Alguém se lembra?
Entre 2013 e 2014, empresas participadas pelo Estado Moçambicano (Proindicus, EMATUM e MAM), contraíram empréstimos no valor monetário de cerca de 2.2 bilhões de dólares americanos, alegadamente com o objectivo de servir o interesse público, no que respeita fundamentalmente à protecção da Zona Económica Exclusiva (ZEE).
Na sequência, houve denúncias, basicamente por via da imprensa, de que se tratava de dívidas ocultas que violavam o quadro legal em vigor no País aplicável para efeito da contração daqueles empréstimos. O Tribunal Administrativo emitiu um relatório relativo à Conta Geral do Estado, no qual declarou uma série de irregularidades e concluiu que o empréstimo havia sido ilegal do ponto de vista de procedimentos, visto que não tinha sido obtida parecer da Procuradoria-Geral da República e muito menos autorização da Assembleia da República, tal como previsto na Constituição da República de Moçambique (CRM).
Face a essas irregularidades e/ou ilegalidades, a Procuradoria-Geral da República (PGR) contratou uma auditoria forense que foi realizada pela Kroll, cujas conclusões, mais do que coincidem com as do Tribunal Administrativo, trazem mais dados sobre o modus operandi para a materialização deste calote. Posteriormente, a Assembleia da República constituiu uma Comissão Parlamentar de Inquérito que, por sua vez, chegou às mesmas conclusões que as duas entidades supra identificadas.
O Conselho Constitucional da República de Moçambique, assumindo que as dívidas ocultas foram contraídas de forma fraudulenta e em total desrespeito aos ditames da lei, em resposta a acções de inconstitucionalidade interpostas por organizações da sociedade civil lideradas pelo Fórum de Monitoria e Orçamento (FMO), proferiu o Acórdão n° 5/CC/2019 de 3 de Junho referente ao Processo nº 6/CC/2017, incorporado no Processo nº 8/CC/2017 sobre fiscalização sucessiva abstracta de constitucionalidade, através do qual declarou a nulidade dos actos inerentes ao empréstimo contraído pela EMATUM,SA, e a respectiva garantia soberana conferida pelo Governo, em 2013, com todas as consequências legais.
Igualmente, o Conselho Constitucional, através do Acórdão n.º 7/CC/2020, de 8 de Maio de 2020, referente ao Processo n.º 05/CC/2019 declarou a nulidade dos actos relativos aos empréstimos contraídos pelas empresas Proíndicos, SA, e Mozambique Asset Management (MAM, SA) e das garantias conferidas pelo Governo, em 2013 e 2014, respectivamente, com todas as consequências legais.
No dia 29 de Dezembro de 2018, em conexão com o caso das dívidas ocultas, foi detido na República da África do Sul o antigo Ministro das Finanças e Deputado da Assembleia da República, Manuel Chang, a pedido das autoridades americanas com vista a ser extraditado para os Estados Unidos da América. A acusação deduzida pelas autoridades americanas apresenta detalhadamente os contornos das dívidas ocultas, com indicação expressa, de que, para além das inúmeras irregularidades também detectadas pelas instituições moçambicanas acima mencionadas, houve actos de corrupção cometidos por entidades nacionais e estrangeiras, destacando-se o antigo Ministro das Finanças e figuras do Governo, do Ministério do Interior, das Forças de Defesa e Segurança, incluindo o SISE e pessoas a eles relacionadas.
Importa aqui referir, porque de extrema importância, que em 2015 a Procuradoria-Geral da República (PGR) instaurou um processo-crime com referência de N.º 1/PGR/2015 contra as pessoas envolvidas nas dívidas ocultas, o qual está, actualmente, a ser julgado pela 6ª Secção do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo, na chamada Tenda da BO como processo-crime n.º 18/2019-C.
No entanto, é de se notar que estranhamente, só a partir da detenção do Manuel Chang na África do Sul, com a acusação deduzida pelas autoridades americanas que tornou de domínio público o facto de existirem indícios suficientes da prática de diversos crimes, incluindo os crimes de peculato, abuso de cargo e função e corrupção, é que a justiça moçambicana começou a encetar diligências palpáveis, por um lado com vista a resgatar Manuel Chang e, por outro, com vista a denunciar outras peças chaves.
Com efeito, só a partir da detenção do Manuel Chang é que a PGR deu a conhecer ao público em geral que havia 19 (dezanove) arguidos em conexão com este assunto, destacando-se, de entre eles, o antigo Director Geral do Serviço de Informações e Segurança do Estado (SISE), o Presidente do Conselho de Administração das empresas Proindicus, MAM e EMATUM, que era simultaneamente Director Nacional de Inteligência Económica do SISE, bem como o filho primogénito do antigo Presidente da República, Armando Emílio Guebuza.
A judicialização das dívidas ocultas não constitui uma ameaça para a prática da corrupção
Não obstante os factos supra mencionados, o Governo negou distanciar-se das dívidas ilegais de tal modo que o posicionamento do mesmo, com destaque para o Ministério das Finanças e Primeiro-Ministro, vai no sentido de que as dívidas são soberanas, porque contraídas para responder aos mais altos interesses do Estado Moçambicano e que, por essa razão, o mais importante é negociar melhores condições de pagamento e garantir assim a credibilidade de Moçambique no plano internacional.
O Tribunal Administrativo em sérias dificuldades em responsabilizar os funcionários e agentes do Estado que se envolveram nas dívidas ocultas violando as suas obrigações e as normas do direito administrativo aplicável ao caso de contratação de dívidas externas desta natureza.
Num processo obscuro, pelo menos do ponto de vista do custo monetário, o Estado moçambicano, com a PGR na linha da frente tudo tem feito para “resgatar” Manuel Chang e não há informação clara no domínio público sobre quanto está a custar aos bolsos dos moçambicanos os honorários com advogados e demais despesas suportadas pelo Estado neste filme: “O resgate do Chang”.
Do ano de 2015, com a instauração do processo-crime sobre as dívidas ocultas e sucessos acontecimentos de ordem judicial até no estrangeiro sobre este caso até ao presente momento em que está a decorrer o julgamento das dívidas ocultas no Tenda da BO com a exposição humilhante de várias entidades públicas e privadas de renome no País, cujas liberdades, bom nome e imagem estão ora limitadas, ora ameaçadas e beliscadas, o que se nota é que não há lição bem aprendida para dissuadir a prática da corrupção e falta de transparência na gestão da coisa pública em Moçambique, senão vejamos, mais o que acima referido:
A gestão danosa do dinheiro dos contribuintes ao nível do Instituto Nacional de Segurança Social – INSS tem sido recorrente de tal maneira que esta instituição já é afamada como o saco azul de alguma elite ligada ao sector e ao partido no poder. Aliás, recentemente, a imprensa, com destaque para o semanário independente Canal de Moçambique, divulgou informação bastante preocupante que revelam a institucionalização da corrupção e má gestão dos fundos públicos em que os novos administradores do INSS recebem subsídios milionários só para o início de funções. Os titulares deste sector não demonstram uma atitude pública que esclareça aos cidadãos sobre o que está de facto a acontecer no INSS.
Organizações da sociedade civil tendem a denunciar a falta de transparência e má gestão dos dinheiros no que respeita tanto ao projecto SUSTENTA, como relativamente à Agência de Desenvolvimento Integrado do Norte (ADIN) criada no ano passado, sobretudo no contexto de Guerra e do drama humanitário que se vive em Cabo Delgado.
De referir que no campo florestal, no que a madeira diz respeito, há muito que há denúncia de esquema de corrupção que permite sobretudo a saída de várias toneladas de tronco, fundamentalmente, com destino à China, tanto é que até num passado recente foi denunciado o desaparecimento de número significativo de contentores cheio de tronco apreendido pelas autoridades de forma bastante estranha. Aliás, importa aqui lembrar que devido ao elevado esquema de abate de árvores e roubo da madeira foi introduzido de levado a cabo pelo antigo Ministério da Terra, Ambiente e Desenvolvimento Rural, a “Operação Tronco” cujos métodos de actuação e transparência foram muito criticados pela sociedade civil.
Num outro prisma, não se percebe a transparência na canalização dos valores das taxas e impostos pagos pelos munícipes para o desenvolvimento dos respectivos Municípios. Na verdade, pelo menos ao nível do Município da Cidade de Maputo assiste uma actuação de saque aos munícipes particularmente os pobres, num esquema de impunidade legalizada em benefícios dos agentes municipais que roubam os cidadãos.
Outrossim, no que se refere ao contexto da introdução das medidas para o combate a COVID-19, as organizações da sociedade civil sempre contestaram a falta de transparência e sinais de corrupção na divulgação e gestão dos fundos recebidos pelo Governo para fazer face a pandemia da COVID-19.
No quadro do modelo da governação descentralizada, ouvimos no ano transato notícias de esquema de corrupção relativamente ao arrendamento de uma residência no valor de 400 mil meticais mensais a favor da Sua Exa. Vitória Diogo, mas que nunca foi esclarecido ao público em geral o que de facto aconteceu e qual foi o desfecho do caso.
O comportamento da Polícia da República de Moçambique (PRM), com destaque para o SERNIC e Polícia de Trânsito revelam se tratar de um antro de corrupção sobejamente conhecido pela sociedade, cuja forma de suborno é ora denominado refresco, ora fala como homem. Essa prática tem sido contínua e dificilmente combatida. Aliás, o
Comandante Geral da PRM já mandou o conjunto de agentes da PRM de determinada região para a reciclagem por excesso de actos de corrupção, entre os actos que já envergonham Moçambique no Estrangeiro.
*Advogado de Direitos Humanos
Concluindo
Os nossos dirigentes, os demais agentes e funcionário públicos com cargos significantes e nossos empresários, senão lobistas, não revelam estar a aprender algo de bom com o processo das dívidas ocultas para que abandonem a prática da corrupção. Existe uma ideia de que agora é a nossa vez de comer e aqueles em julgamento foram apanhados porque não souberam roubar e assim continua o País a saque de grande dimensão.
Quem está a aprender com as dívidas ocultas é o povo. Este conhece hoje alguns conceitos e terminologia jurídica, a forma como se rouba um Estado através dos próprios dirigentes e com recurso as Forças de Defesa e Segurança, incluindo a SISE ao mais alto nível, bem como a forma como se protegem para que não sejam responsabilizados. É o povo o único que está a perceber o custo da corrupção para não praticar sob pena de viver numa interna desgraça e esquecido nas mãos da justiça.