A própria baía em si perdeu a beleza, dando lugar a um matagal sem sentido, que tomou o lugar de veraneio da urbe, tirando assim o direito aos banhistas e a todos aqueles que já não podem contemplar uma maravilha que nos punha em contacto visual com toda esta paisagem exuberante que inclui a península de Linga-Linga e o arquipélago de Mucucune – por um lado - e a soberba do coqueiral que se ergue do outro lado, onde a Maxixe perdeu também, ao longo da orla marítima, a sua liberdade, por conta das construções que nunca obedeceram a nenhuma regra.
Os bancos de areia têm nome, todos eles, cada um com o seu potencial pesqueiro e seus tabus, porém – apesar desse diferencial - o que havia neles de comum era a fartura. Por isso mesmo, homens e mulheres, em maré vaza, atravessavam em pequenos barcos à vela, na demanda do abundante pescado que incluia a apanha de carangueijo e moluscos e camarão, e não havia dúvidas de que os cestos voltariam mais do que abarrotados, para gáudio de famílias inteiras que nunca souberam o que é fome.
“Boni” será - provavelmente - o banco mais conhecido e se calhar o mais produtivo e o de maior extensão territorial. Em dias de pesca e de apanha e de arrasto, as pessoas eram desembarcadas aos magotes e espalhavam-se como baratas assustadas, mas era mentira, levavam dentro delas a certeza e a alegria de que voltariam para casa abastecidas. E todo aquele trabalho que faziam – muitas vezes debaixo de frio intenso e chuva – dáva-lhes prazer por saberem que os resultados seriam por demais compensadores.
Os bancos de areia da baía de Inhambane eram uma música, repetida na cidade e nos subúrbios, num ritmo que ressurgia com fulgor em cada refeição ou em cada petiscada nas bebedeiras de sura. Também eram uma jazida interminável que proporcionava renda a muitos e, por tudo o que representaram na economia e na sociedade, nunca vão deixar de ser património valioso.
Mas hoje ninguém fala dessas fontes de energia, pouca gente as procura, porque já não têm nada para dar, ou têm muito pouco. Há uns que dizem que aqueles bancos de areia e as suas circundantes águas misteriosas outrora promissoras, foram profundamente exploradas até a exaustão. Foram esvaziadas. Todavia, há aqueles que defendem outro pensamento. Segundo eles, foi o próprio Deus que diminuiu as bençãos, por ira. E, como todos nós sabemos, depois da Palavra de Deus, não há outra palavra. Assim, o mito morreu, e com ele a nossa esperança.
Esta pode ser das últimas crónicas que vou escrever, embora as próximas atapas que me esperam, possam ser - por antevisão - de grande sofrimento, uma vez que é o acto da escrita que dá sentido à minha existência. Não será uma opção voluntária, mas uma necessidade, até porque pode ser que eu esteja a extrair lama do meu poço já sem água. Então, não posso continuar a servir lodo àqueles que me seguem, pois, para além de ser injusto e indigno, essa mesma lama depois volta contra mim, com o efeito de boomerang e despedaça-me a alma.
Tenho a sensação de que estou a escrever as mesmas coisas, como os grandes músicos que, depois de atingirem o cume, olham à volta e percebem que não há outra montanha para subir. Sendo assim, a única saída que encontram nesse beco, é voltarem ao sopé e cantar de novo os temas conhecidos e celebrados pelas multidões, talvez com outra roupagem, mas no fundo é uma repetição, e eu estou cansado de repetir-me.
Seja como for, ainda vou escrever algumas coisas antes de fechar, que não terão – obviamente – a mesma dose de sal das épocas em que o meu barco tinha sempre a vela enfunada, esse tempo não volta mais. Vou fazer isso antes de chegar ao limite de um carreiro incosequente, cheio de músicas e palavras desordenadas. Mas nessa via, com todas as incongruências, sentia-me feliz, como se a tocha estivesse nas minhas mãos, espalhando lume no chão, lembrando Muhamad Aly nos jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996.
Sinto medo - na verdade – desse dia em que largarei os archotes, pois caminharei no escuro, sem a ovação que tenho recebido depois de cada texto escrito e burilado nas noites e madrugadas de insónias. Mas já não sou mais aplaudido, e isso significa que a água que vos tenho servido últimamente, é insipida, misturada com lama. Já não sou o cavalo que galopava por de cima dos obstáculos, o meu feno acabou. Nem força para o trote, tenho, nem para o passo. Por isso todas as minhas palavras sossobram em cada sílaba.
Mesmo assim, este ainda não é o meu fim, tenho vários obstáculos por saltar, como Edwin Moses – o maior atleta mundial dos 400 metros barreiras. Depois disso, pode ser que eu volte com outra água, límpida. Contudo, se não voltar, quero agradecer-vos a todos, pelos aplausos que tornaram a minha vida uma grande celebração.
Do seio da sarça, Deus rugiu como o verdadeiro Rei dos Céus, abafando todos os sons da planície onde Moisés apascentava o rebanho do seu sogro, Jetro. Era manhã fria e não havia outros pastores por perto, pois toda aquela vastidão de terras pertencia a uma única pessoa, escolhida entre os demais para desfrutar de um manancial sem fim. Foi nesse lugar que a Voz esvaziou-se e troou como o último vulcão e chamou por aquele que seria, afinal, um servo apetrechado de aço filtrado em fogo, para romper as grades do mal.
Deus trovejou como os trovões que, nas montanhas de pedra, na função de megafones Divinos, entram em harmonia com a existência, e chamou pelo pastor solitário imbuído em pensamentos que só o Próprio Jehová podia sondá-los.
- Moisés!!!!!!!!!
O pastor entrou em pânico ao perceber que a Voz que lhe chamava vinha da sarça ardente, suspensa no espaço onde o rebanho tinha alimento em porções sem limites.
- Quem é você que me chama com essa Voz do fim do mundo?
- Sou eu, Deus dos Exércitos.
- O quê que você quer de mim?
- Quero que vás ao Egipto libertar os filhos de Israel, presos nas masmorras de Faraó.
- Mas porquê que tenho que ser eu a ir ao Egipto, libertar os Teus filhos das masmorras de Faraó.
Deus fez uma pausa, permitindo que se ouvisse na plenitude a música dos rios fartos que serpenteam em todo aquele maná oferecido a Jetro. Era a mesma música que Moisés ouvia todos os dias, mas que agora ressurge retumbante, silenciando todos os outros sons maravilhsos que encontram no cântico dos pássaros, a síntese da maravilha. Depois – ainda do seio da sarça - a Voz voltou e retorquiu: porquê que não tens que ser tu?
II
Lembro-me desta passagem bíblica, sempre que vejo - nas ruas da cidade de Inhambane – um homem que usa um cajado que mais parece um elemento de adorno, do que propriamente de suporte. Então, na minha imaginação, este indivíduo enigmático pode ser o próprio Moisés, encarnado numa outra pessoa, que é esta que vagueia sem direcção, aproveitando ao máximo – provavelmente – a paz que reside em toda a urbe.
Nunca o tinha abordado até ao dia em que perdi a capacidade de conter-me. Aproveitei o facto - numa manhã de céu nublado - de estarmos lado a lado, na varanda da loja do Matocolo, à espera que a chuva parasse. Não sabia como ele reagiria às minhas palavras, e nem podia saber, por muitos motivos, e um desses motivos é que, para além de nunca ter falado com ele, jamais o vi a conversar com quem quer fosse, apesar de ser uma pessoa bastante conhecida.
- O senhor é muito parecido com Moisés!
- Qual Moisés?
- Da bíblia!
Ele riu-se às gargalhadas, olhando-me profundamente. Acariciou - com as duas mãos - o cajado que será, se calhar, um imprecindível talismã da sua vida. Parecia estar a procura das palavras apropriadas para responder à minha ousadia, como no dia em que Deus fez uma pausa, deixando soar levemente a música dos abudantes rios do maná de Jetro, antes de dizer a Moisés: porquê que não tens que ser tu!
Mas quando parou de chover, o homem foi-se embora sem dizer nada, até perder-se na zona dos “Quatro candeeiros”, e não olhou uma única vez para trás!
Ouvi, durante o noticiário da Rádio Moçambique, no passado dia 23 deste Abril, que hoje –referindo-se ao tal 23 - comemora-se o Dia Mundial do Livro, e eu não tinha a data em mente. Até porque as efemérides não comandam muito o meu cosmos, que não é feito pelas amarras do calendário, mas pela vontade inabalável de viver, ou de continuar a viver. É o vigor que tenho tentado manter dentro de mim, a gazua do meu horizonte. Então encolhi os ombros, tentando pensar em outras coisas enquanto continuava a escutar a Rádio,
Nunca fui um grande leitor, se calhar seja por isso que na minha estante há livros que jamais os toquei por considerar que não levam o fascínio no título, mas, se efectivamente eu fosse um devorador da escrita, teria-me embrenhado pelo menos nas primeiras páginas para sentir o cheiro que as obras trazem. Até porque o conteúdo pode não ter nada a ver com a chamada na capa.
Seja como for, estou a ler o livro cujo título é “A minha vida com Osama Bin Laden”, que na verdade é uma história contada pela mulher e o filho de Bin Laden. Um calhamaço de mais de 400 páginas, cujo enredo penetra em labirintos da morte, ou seja, este homem nascido na Arábia Sauditam, abdicou da vida faustosa que tinha, para viver nas motanhas. De Pedra. No Agfagnistão. Defendendo aquilo que ele sempre acreditou ser uma missão. Uma causa.
Mas eu não quero falar da história deste livro emprestado por um amigo grande leitor. É sim, para lembrar simplesmente a importância de alguma vez ter lido qualquer coisa, como fazia nos meus tempos de adolescência, quando trocávamos com entusiasmo, eu e os meus amigos, os pequenos romances “Seis balas”, e outros ainda – policiais – que nos contavam histórias imaginárias do FBI. Se calhar foi esse grande estímulo que me trouxe a este meio em que já não posso viver sem o livro.
Na minha cidade não existe uma única livraria, não há um lugar onde possamos comprar um livro. Eu próprio tornei-me alfarrabista por não haver por aqui uma casa especializada para o efeito. Por isso levei o meu último livro debaixo do braço– Mathxinguiribwa, publicado em 2020 – e andei com ele pelos restaurantes e pelas ruas com o fim de vendê-lo, É uma coisa nova fazer isso em Inhambane – provavelmente – e as pessoas compravam. Avidamente. Muitos porque conhecem-me, outros porque ouviram falar de mim na ocasião e viram muitos a adquirir a minha obra como um produto de primeira necessidade.
No passado dia 23 de Abril lembrei-me desse feito, em que eu vestia a pele de um alfarrabista. Isso permanecerá na memória por muito tempo, não só porque andei a vender os meus próprios livros, escritos por mim, nas ruas e restaurantes, mas porque foram todos comprados. Outros poucos interessados levaram a vale e até hoje, passado mais de um ano, ainda não pagaram. Porém, isso não importa, eu sou superior ao dinheiro. Basta-me que leiam.
É muito provável que tenha chegado ao fim da estrada, porque se assim não fosse, sentiria pelo entusiasmo que me tem faltado nos últimos tempos, ao ponto de sair de casa com a camisa amarrotada. Já abdiquei das minhas próprias mãos, que deixaram de me convocar ao encontro do corpo da minha mulher que também ficou insensível de mim, se me sentisse havia de perceber pelo olhar ora com gotas ardentes de amor. Tenho a sensação de ter despejado toda a areia da minha báscula, e nem a pouca poeira que resta consegue levantar ao sopro do vento que igualmente perdeu o impulso.
Está a acontecer algo desesperado no meu ecossistema emocional, a minha mulher já não me acorda com as maõs leves nas manhãs para dizer bom dia. Então todo esse choque quer dizer que estou na mó de baixo, meu coração está frio como o mármore. Nem que a vontade de articular palavras ao acaso me invada, sinto que sou incapaz e o melhor que devo fazer é manter-me no mutismo, sob risco de sair desta penumbra que ainda me mantém com alguma luz, e cair definitivamente para o lado do escuro.
Mas as nuvens do meu espaço estão cada vez mais densas, nunca senti tanto medo. O pior é que cada vez que vou à cama, a minha solidão fica mais pesada. A mulher que está ao meu lado vergasta-me com o silêncio das costas flácidas, eu também tenho as mãos flácidas, incapazes de despertar o pólen. Tremo no centro de mim ao pensar que nesta casa onde tudo gravitava a à minha volta e da minha mulher, quem vibra agora são as vespas espalhadas em todos os cantos, incluindo nas minhas mãos que perderam o tacto.
Fiz anos ontem e a minha mulher nem sequer se lembrou de me oferecer uma flor, como sempre. Eu disse-lhe assim, amor, hoje é dia do meu aniversário, ela nem sequer olhou para mim. Continuou sentada na varanda olhando para o vácuo, com a mão tremendo por sobre o braço da cadeira de madeira que trouxe de São Tomé. Ignorou-me absolutamente, e, naquelas condições, senti-me desdenhado. Voltei à sala onde nunca gostei de estar por me sentir enclausurado.
Seja como for, ainda acredito no indulto, como os condenados que ficam longos anos no corredor da morte à espera da execução, eu também estou à espera da execução, com essa esperança de que um dia poderá abrir-se uma nova luz e ser chamado outra vez para a liberdade. Porém, enquanto esse dia não chega, continuarei aqui a ser incentivado ao castigo, pelas esporas do tempo. Sinto com dor o tilintar dos copos e das grandes canecas de cerveja nos bares que frequetava, e não posso sair daqui, as minhas pernas vacilam.
Estou à caminho dos noventa e pensava que o meu beco tivesse saída. Sim, tem saída! Para o aterro onde estou prestes a ir sem nada nas mãos, a não ser as memórias. As lembranças dos amigos. As saudades da liberdade. As músicas. E os agradecimentos todos à minha mulher, que deixou de falar comigo como se não me conhecesse. Recusa que as minhas mãos a toquem para despertar as melodias como noutros tempos em que éramos dois passarinhos desejosos de amor. Então, é essa a azagaia que levarei espetada no peito, por alguém que me acolheu durante toda a vida no coração, e que agora não me sente mais.
As últimas bebedeiras de sura que apanhei na vida, remontam dos finais da década de noventa, altura em que eu e o Caido Zubaida, de quem aprendi a amar a música que entretanto já morava dentro de mim desde o útero da minha mãe, vagueávamos pela cidade e pelos bairros suburbanos sem outro propósito que não fosse o cumprimento de uma missão guiada pelas claves. Éramos livres, e não sabíamos que o nosso cheiro dava alegria a muitos, incluindo os cépticos e nem nos importavamos com isso, o que queriamos era viver, e para viver precisavamos de cantar, e na verdade foi isso que passamos a fazer quando as metáforas se decifraram elas mesmas, fazendo-nos compreender que estávamos no nosso caminho. E o nosso caminho estava certo.
A sura não era propriamente o nosso catalisador, mas será um elemento importante no sentido de que se tornou a ponte, cuja plataforma vai levar-nos à outras pessoas, das quais buscaremos as forças necessárias para hastear uma bandeira que nunca mais desceu até hoje, que nos sentimos cada vez mais jovens, apesar dos pulmões apodrecidos pelo fumo. Somos também grãos desta areia vibrante que nos segura os pés para dar equilíbrio a todo o esqueleto que irá oscilar ante a penetração dessa bebida, no interior dos neuróneos.
A sura que bebíamos a potes, dava-nos a sensação de segurança, mesmo sabendo da depressão que nos vai criar no dia seguinte. Cantávamos – depois da pinga – sem nos importarmos com as falhas. Se até os músicos de grandes patamares falham, quem somos nós para não falhar! Então deixem-nos cantar sem as amarras da escala. Deixem que o sangue do nosso coração se esvaia até sobrar a alma que se manterá de pé por todo o sempre, lutando contra as verrumas do diabo.
Ainda bem que o nosso objectivo, naquilo tudo que faziamos, não era a sura. O que nos movia era a música e as paródias. Sempre que amanhecesse, queriamos amanhecer também, eu e o Caido Zubaida. Sabiamos que tinhamos em nós a pele de Agostinho Agostinho Neto, que dizia, eu já não espero, sou aquele por quem se espera. Nós também éramos esperados, como se fôssemos o sol que vai dar a luz aos viventes. Mas claro que a nossa percepção podia ser uma ilusão. E se é verdade que era uma ilusão, então éramos felizes vivendo nessa ilusão.
Caido Zubaida foi conquistado pelo ritmo muthimba, que nem faz parte dos seus antepassados, e eu entrei no blues, sem saber nada de blues. Se amo a minha mulher, não me perguntes porquê a amo, não sei. O importante é que você se deixe levar pelo belo, e a beleza de tudo aquilo que faziamos, estava na profundeza dos nossos sentimentos. Éramos cães vadios, que passavam a vida na gandaia das músicas, muitas delas do tempo que não nos pertence. Éramos ovacionados, e perguntavamo-nos perante os aplausos: afinal os cães também são aplaudidos?
Hoje ainda sou esse cão vadio. O Caido Zubaida, ainda é esse cão vadio. Por isso continuamos felizes, como sempre fomos.
*Realiza-se no dia 9 de Abril na cidade de Inhambane, o 1º Festival de Sura
Cheguei por volta das 10, saído da ponte-cais de Inhambane, sem sequer imaginar que todo este esplendor que se estende entre Maxixe e Chicuque e Mucucune e Guidwane, poderia ser ofuscado temporariamente pelas nuvens de forma inesperada. E ser dominado pela chuva torrencial. Trazia comigo a predisposição de contemplar ao longo do trajecto, a liberdade das gaivotas poisadas em gamboas, outras ainda, por sobre o casco de barcos fundeados, à espera da maré cheia para voltarem a sulcar as águas com as velas enfunadas.
Não vi gaivota alguma durante toda a viagem, nem os pernilongos flamingos que têm aparecido por estes dias , em bandos maravilhosos que fazem lembrar os anjos aspergindo as bênçãos, agora diminuídas pelo Deus em Mucucune - península ora escolhida como maná do marisco, mas que nos tempos que correm, aquele arquipélago esvaziou. Os próprios filhos da terra demandaram outros lugares e não querem voltar mais para o berço que lhes trouxe à luz. Mucucune dá a sensação de abandono.
Mas eu estou no mar, viajando num barco à vela com um marinheiro que, apesar da sua vasta experiência, não foi capaz de prever o mau tempo que se abateria sobre nós, sem podermos fazer nada senão entregar os nossos corpos à chuva que vai cair em catadupa. Chove em todo a zona que vai de Inhambane à Linga-Linga e nós vamos para lá, impedidos de contemplar toda esta beleza. Os próprios pássaros do mar esconderam-se, deixando-nos à mercê de um horizonte imprevisível.
Depois de cerca de uma hora a velejarmos, continua a chover. Forte. Porém, eu pessoalmente mantenho a esperança de pisar a area branca de Linga-Linga, apesar de que vou chegar lá molhado. A roupa que trago na sacola também estará molhada, mas sempre fui guiado pela perespectiva de que depois da tempestade vem a bonaça. Então, sendo assim, tenho fé de que aparecerá uma camisa seca por lá, para me libertar do charco em que me constituí.
O que torna esta viagem muito pesada, não é a chuva. É a nossa incapacidade – dentro do barco – de dizermos qualquer coisa, nem que não seja exactamente para conversar, mas como sinal de que estamos vivos. Todavia, por outro lado, o nosso silêncio permitia a retumbância da música da chuva que entrava em consonância com a música do mar a ser rasgado pela quilha. Então, se somos capazes de ouvir esses sons, significa que estamos vivos. Isso é que importa!
Começamos a ouvir esta música toda tocada por duas orquestras em simultâneo, desde que a chuva decidiu cair sem avisar. Chove até agora. Continua a chover, e já chegamos a Linga-Linga, molhados até à profundeza dos ossos. Mas a minha alma está intacta, nunca vacilou. Pode levar o tempo que quiser, esta chuva, a verdade é que vai parar, e irá permitir-me passear pela orla, ouvindo as ondas cantar, e perscrutando todos os pássaros que habitam este paraíso. E liberdade!
Txifuliane está entre a muldidão, com o filho aconchegado, acompanhando tudo aquilo que apenas vem confirmar o que já sabia, ou que já tinha ouvido falar. Mathxinguiribwa dança no colo da mãe ao som da timbila de Juliasse Makowo, dança e ensaia com o pequeno braço esquerdo o batimento do escudo de pele no chão, e o chão era o peito da mãe que tremia cada vez que a criança enveredasse por esse gesto. Ela voltou a ficar alucinada, desta vez viu a sua avó aproximando-se, vestida de branco passeando no ar na sua direcção dizendo, Txifuliane sai daí, sai daí depressa, minha neta, procura uma varanda para te abrigares, entra no restaurante do Mathikiti e peça alguma coisa para comeres com o teu filho, sei que acabas de comer, mas vai comer outra vez, peça algo ligeiro só para não correrem contigo de lá, compra um chocolate para Matxinguiribwa e mantenham-se serenos.
Txifuliane vê Juliasse Makowo sacudindo o abraço do governador, cuspindo depois para o chão, não a saliva, mas um jato de sangue que lhe molhou os pés, pegou na sua timbilia e nas baquestas para se retirar e dirigir-se aos camarotes, onde devia esperar para de novo voltar e apresentar o maior quilate do seu show que ainda faltava, como se aquele primeiro número não fosse nada, parecia um mamute. Relampejou tremendamente por sobre o miradouro, e um raio caíu atingindo Juliasse Makowo, que morreu imediatamente, sem que no entanto tivesse caído, morreu de pé, e quando os seus companheiros tentaram levantar o corpo não conseguiram, começou a chover em catadupas, afastando as pessoas que enchiam por completo o lugar da festa, os membros da banda de Juliasse Makowo abandonaram o cadáver com medo dos relâmpagos que se sucediam, e do graniso que fustigava o espaço onde já tinha começado a grande celebração dos chopi, chovia em toda a vila, mas o graniso só caía no miradouro, martelando em particular a cabeça de Juliasse Makowo que continuava estranhamente de pé. Há grandes correrias das pessoas que buscam abrigo, as tendas esticadas aqui e alí não suportam as fortes bâtegas da chuva que chove à cântaros, elas cedem perante as torrentes, em pouco tempo a vila de Quissico ficou um rio, e os carros que estavam ali estacionados transformaram-se em barcos flutuando à deriva, sendo todos levados ribanceira abaixo, até à zona das Lagoas, onde se viam enormes fogueiras desafiando a chuva que caía cada vez com maior intensidade, sem o menor sinal de que aquela hecatombe podia desvanecer nos próximos momentos. As pessoas subiram para os tectos das casas, e paradoxalmente, no tecto das casas eles não molhavam, ficavam ali a assistir ao dilúvio, que vinha para destruir o histórico vilarejo, aquilo que são as ruas metamorfoseou-se, no seu lugar nasceram braços de um rio que rasgava Quissico à meio, várias mulheres foram vistas a nadar, nuas, umas de costas, outras de bruços, outras de livre, deixando ver abundantes trazeiros que atiçavam a cobiça dos homens pendurados nos tectos bebendo aguardente de massala, ninguém sabe explicar como é que aquela bebida foi-lhes parar às mãos, mas todos eles bebiam sem se molhar com a chuva que vinha do céu em liberdade, petiscavam carne de porco assada na brasa e temperada com n´tona, todos eles pareciam alegres, riam-se às gargalhadas, divertindo-se com o espectáculo das mulheres que nadavam nuas pelos braços do rio que rasgava Quissico, mas tudo aquilo durou pouco tempo, porque logo a seguir todos estavam nos seus anteriores lugares, a chuva tinha parado, os carros voltaram aos sítios onde estavam estacionados e Juliasse Makokowo retirava-se tranquilamente, petulante, para os camarotes.
Txifuliane tremeu depois de voltar novamente à lucidez, sem saber o que fazer. O filho, em silêncio, para o arrepio da mãe, mexia a cabecinha em resposta às músicas que vinham das orquestras que passaram a desfilar num espectáculo retumbante, cada grupo tocava algo diferente, algo mais aliciante do que aquilo que se ouviu anteriormente, aqueles que bebiam tinham que atravessar a estrada várias vezes para comprar as bebidas do outro lado e ninguém conseguia manter-se nas barracas porque não queriam perder um evento único, que trouxe equipas de televisão de várias partes do mundo, quatro helicópeteros sobrevoavam silenciosamente o espaço, com antenas pendidas para captar o show em todos os ângulos. O miradouro está compactado, acolhe milhares de assistentes que deliram, cada vez há mais gente subindo às palmeiras, levando consigo garrafas ou latas de bebida, que é consumida para aclarar as mentes e deixar que o ritmo penetre livremente nas profundezas da alma, os timbileiros estão em êxtase, desfraldam gritos de guerra que são repetidos pela plateia ávida.
Estou no acto do lançamento do meu primeiro livro, em 2001, na cidade de Inhambane. O título é esse mesmo: Inhambane Sem o Badalo, uma homenagem que presto à figuras que estarão por todo o sempre ligadas aos cheiros desta cidade elevada - pela minha imaginação nas paródias - ao lugar mais sossegado do Mundo. É uma colectânea de crónias recebida com estupefação pelos cépticos, que já me consideravam irreversivelmente morto. Será também a obra que me fez sentir um pequeno deus, por isso autorizado a enfiar as mãos nos bolsos e assobiar livremente pelas ruas e pelos atalhos e pelas sinagogas, levantando as asas como o pavão mais antigo do planeta, passeando em paz.
No evento, de entre os demais ilustres, e indivíduos do vulgo, está um homem que vai ser lembrado em todos os momentos pela sua audácia na baliza. Chama-se Mbata, um guarda-redes notabilizado no Clube Arrera Kwara, e depois celebrado em toda a província de Inhambane por parecer um gato na sua área, ou uma aranha, extravazando classe. Exuberância. Plenitude.
Mbata ficava encostado ao poste – esquerdo ou direito - de braços cruzados, pernas em tesoura, quando o jogo fosse despejado – ou pelo corredor central, ou pelas “asas” - para a baliza contrária, como se estivesse à espera serenamente de alguém, ou lucubrando nas suas memórias. Mas quando o perigo corresse na sua direcção, ele dançava, media os ângulos com as mãos, gritava para os defesas seus colegas, por vezes saía da área e logo a seguir voltava a correr para o seu reduto, dando costas à bola, deixando, por assim dizer, tudo o resto por conta dos sensores implantados no corpo e na mente. Erriquietos.
Os pontas-de-lança, ou os médios ou médios-avançados, podiam desferir mortíferos remates enquanto Mbata retornava à baliza naquele espectáculo incrível, e este, assim mesmo, de costas para o jogo, como um gato celestial, rodopiava no ar, e impedia a bola de continuar na sua fatal trajectória. Tinha manápulas mágicas. Buscava o esférico no ar num gesto de quem colhe, como um maroto inesperado, uma laranja no ramo mais alto da árvore. E é isto, e muito mais, que vai tornar Mbata, um guarda-redes idolatrado e festejado em toda província de Inhambane, no seu tempo de glória.
Hoje, em 2001, vejo um homem movendo-se no corredor da sala onde decorre o lançamento do meu livro. É extraordinariamente alto, cabelo farto, completamente esbranquiçado, parecendo de prata. Procura com o olhar uma cadeira livre para se sentar e parece não haver cadeira desocupada. A sala está absolutamente cheia porque o meu nome ribomba por estas bandas, e reboa até aos bairros mais longíquos onde também serei festejado como Mbata, por todas as inconguências que andei a cometer por aqui, e pela música de blues que vou cantar, sem saber nada de blues, nem nada sobre a música.
O homem não encontra lugar para se acomodar. Orbita sobre o seu próprio eixo como se estivesse num dia de jogo de estrelas e, resignado como nunca esteve no campo de futebol, recua e encosta-se na porta da entrada, na mesma posição habitual de quando brilhava como um astro, desde os meados da década de sessenta, até princípios da década de oitenta: braços cruzados e pernas em tesoura. Olhei para ele e reconheci-o logo, é o Mbata, no mesmo estilo que recusa desvanecer apesar da idade. Nesse momento falava o governador de Inhambane, bajulando-me, e eu estou pouco me lixando para as bajulações. E o “boss” teve que interromper o discurso quando viu um homem que se destacava pela sua peculiaridade física, encostado à porta de braços cruzados e pernas em tesoura. É o Mbata, agora convidado por “Sua Excia” a ocupar a única cadeira desocupada que se dispunha na fila reservada aos “responsáveis”.
Lá vem ele pelo corredor. Estiloso. Tranquilo. Sereno. Transcendental. Faz uma vénia ao governador, enclina-se e pega pela mão esquerda o encosto da cadeira, antes de se sentar. É uma pessoa invulgar. Virou-se para a plateia e saudou-a vocalizando palavras que ainda hoje me ressoam na alma: “é uma grande honra ser servido um lugar por Sua Excia senhor Governador. Afinal continuo a ser glorificado como nos tempos áureos da minha carreira futebolística. Obrigado, Excia!”
Houve uma forte salva de palmas. E antes de se sentar, disse mais: “é uma uma grande honra e privilégio, participar no lançamento do livro do Alexandre, um personagem que fala sempre de mim, como se eu fosse uma vedeta, quando na verdade a vedeta é ele”!
Houve mais aplausos, com as pessoas de pé, incluindo o Governador!
Agora que descobriu o silêncio da minha casa, não quer sair mais daqui, vem todos dias. É como se este espaço fosse dela também. Thsala Mahenhane diz que o meu quintal, vedado de plantas, sem muro de pedra, é uma galeria, ao mesmo tempo um atelier. Se estes pássaros todos, chegam e poisam e cantam e fazem sexo em liberdade, “porquê que eu também não posso gozar a liberdade neste lugar?”.
Thsala gosta de beber, “as pessoas dizem que sou uma pipa, mas tu nunca me disseste isso”. Na verdade jamais a considerei pipa alguma. Respeito-a, até porque cada um de nós tem o direito de traçar os limites dos seus passos, mesmo que seja em desobediência ao Deus de Jacob e de David e de Abrahama. E esta mulher quer cantar, depois de um copo. Então, quem convoca a música nestas circunstâncias, tem o coração que passa a vida a repetir versos de amor.
A nossa relação começou num dia inesperado. Num dia como os outros, com o tempo a tomar conta de mim, dando-me alfazemas e orquídeas. De graça. Sentia uma paz extraordinária dentro de mim, sem saber o que isso significava, até à altura em que uma mulher entra de rompante, visivelmente aflita e diz: “desculpa, peço casa de banho”.
Passado um tempo considerável, comecei a achar estranho que a “minha hóspede” não estivesse despachada, então resolvi abeirar-me da porta da “toilett”.
- Está tudo bem com a senhora?
- Desculpa, tenho uma preocupação, mas só posso apresentá-la à uma mulher.
- Está certo, espere só um minuto.
Fui a correr a uma farmácia que fica aqui perto e, passado pouco tempo, trouxe uma embalagem de pensos higiénicos. Fui de novo à porta da casa de banho e introduzi a mão.
- Isto resolve o problema?
- Muito obrigada.
Voltei à minha varanda sem preocupação, feliz por ter ajudado uma desconhecida. Porém, o mais surpreendente é que eu nunca havia comprado pensos higiénicos em toda a minha vida, nem para as minhas ex-esposas, mas a vida é essa caixinha de surpresas!
- Peço imensas desculpas, ao mesmo tempo que agradeço ao senhor pela compreensão. Eu não devia ter feito isto. Desculpa.
- Você não fez nada demais, e, por favor, não me trate por senhor, pode me chamar Bitonga Blu.
- Obrigada, eu chamo-me Thsala. Thsala Mahenhane.
A mulher estava aliviada. Mais do que isso, apaixonada pelo meu espaço.
- Este lugar é tão lindo!
Lançou o olhar por todo o perímetro da casa, e parecia completamente conquistada. Viu a minha guitarra, em repouso num dos cantos da varanda, e perguntou se eu era músico.
- Não sou propriamente um músico, toco algumas coisas. Gosto de cantar.
- Eu também gosto de cantar.
Pediu-me que a acompanhasse no tema da Mingas, Mweti, e o que veio depois, a partir daí, foi a paródia em si, a loucura. Já tinhamos uma garrafa de Gin Gordon à mesa, a alimentar as metáforas, sem que eu soubesse que a presença desta mulher que aparece na minha casa em período menstrual, vinha mudar a minha forma de estar. Ela não mudou meu caminho, mas mudou a mim.