No dia em que um dos seus dois filhos parte para sempre, a sombra tutelar do poeta maior de Moçambique, José Craveirinha, surge presente. E redescobre-se que José, Stélio e Maria de Lurdes Mutola são a amálgama de uma conspiração suburbana que elevou Moçambique aos píncaros do atletismo mundial. E a poesia é inescapável.
Partiu ontem aos 70 anos um dos mais representativos praticantes de atletismo de Moçambique, Stélio Craveirinha. De doença. Um mês de internamento no Hospital Central de Maputo. É recordista nacional de salto em comprimento, com 6,94 metros. Ele integrou a delegação moçambicana que participou nos Jogos Olímpicos de Moscovo, em 1980, marcados pelo boicote de 66 países membros do Comité Olímpico Internacional.
Fez parte de uma geração pródiga, no pós-independência, onde despontaram os nomes de Eduardo Costa, Constantino Reis, Vicente Santos, Pedro Mulomo, Dias Alface, Abdul Ismail, Acácia Mate e Ludovina Oliveira. Depois abraçou a formação. Foi treinador no Desportivo de Maputo. Era interventivo contra um dirigismo errático na federação e no Comité Olímpico. Era polémico. Controverso. Frontal, a contragosto da maioria. Um incompreendido? Era contra a intromissão da federação em matérias de programação dos atletas, cuja base de trabalho são os clubes.
Seu feito maior? Formação de atletas campeãs, incluindo a “nossa menina do ouro”, Lurdes Mutola, descoberta pelo poeta José Craveirinha, seu pai. Lurdes mantém “online” um depoimento (de reconhecimento e “gratitude”) sobre como foi essa descoberta e o papel durão de Stélio quando ela abandona os pelados do Chamanculo, onde jogava a bola suplantado a rapaziada, e começa a calcorrear a pista do Parque dos Continuadores, sobre a aura dos Craveirinha, filho e pai. O descobridor e o primeiro lapidador.
“O poeta Craveirinha viu a história na primeira edição do Jornal Desafio (sobre uma fabulosa jogadora de futebol) e foi ao Chamanculo, falou com os meus pais e convenceu-os para que eu mudasse para o atletismo. Na altura não sabia do que se tratava. Mostrou-me vídeos de Jogos Olímpicos. Comecei a entender. Fui treinar, mas não durei muito tempo. Recordo-me que nas primeiras duas semanas, no Parque dos Continuadores onde ele me apresentou o filho, Stélio, treinei e nunca senti tantas dores na vida”.
“(...) Tudo começou em 1988, tive a viagem para o Botswana, nos Jogos da zona VI. Graças a Deus consegui a medalha de ouro, nos 800 metros. Quando voltei, já tinha outras ideias. Disse: daqui tenho que chegar às Olimpíadas. Mas como, se não tenho mínimos? Comecei a treinar a sério e recordo-me que Stélio puxou por mim. Treinava duas vezes, fazia treinos secretos, no Parque dos Continuadores e no bairro, com as minhas amigas”.
Stélio foi instrumental para o estrelato de Lurdes Mutola. O pai descobriu o diamante e o filho participaria da sua lapidagem inicial. Aos 70 anos, Stélio Craveirinha parte, mas será lembrado com muita saudade. Seu contributo para o atletismo é marcante. O clã da Mafalala ficou agora mais pobre. Stélio é irmão de Zeca Craveirinha, um homem mais discreto.
O pai dos dois, num poema de “A Cela 1”, escrito na prisão, diz ironicamente deles “os dois meninos maus estudantes”. Uma denúncia do “bullyng” de que Stélio e Zeca foram vítimas, pagando a rebeldia anti-colonial do pai.
OS DOIS MENINOS MAUS ESTUDANTES
_Zeca-e-Stélio
_Mamã!
_São horas da escola
_!!!
_Vocês não ouvem? São horas.
_Não queremos ir à escola, mamã
_O quê? Não vão à escola? Vão, sim-senhor!
_Não vamos à escola mamã.
_Mas não vão à escola porquê? Não estudaram, não é?
_É a sôra professora, mamã.
_É a sôra professora o quê?
_!!!
_Olhem amanhã é dia de visita e vou queixar ao vosso pai.
_Não vai queixar, mamã.
_Queixo sim, vocês vão ver.
_A sôra professora chama... sôra professora cha...
_A sôra professora não chama nada. Vou queixar.
_A sôra professora chama-nos filhos de um turra, mamã.
_!!!
_Está bem, mamã, não chore.
_Não chore, mamã. Nós vamos à escola, mamã.
(Agosto de 1967)
(Marcelo Mosse)