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segunda-feira, 12 outubro 2020 07:09

Stélio Craveirinha (1950/2020): “A sôra professora chama-nos filhos de um turra, mamã!”

No dia em que um dos seus dois filhos parte para sempre, a sombra tutelar do poeta maior de Moçambique, José Craveirinha, surge presente. E redescobre-se que José, Stélio e Maria de Lurdes Mutola são a amálgama de uma conspiração suburbana que elevou Moçambique aos píncaros do atletismo mundial. E a poesia é inescapável.

 

Partiu ontem aos 70 anos um dos mais representativos praticantes de atletismo de Moçambique, Stélio Craveirinha. De doença. Um mês de internamento no Hospital Central de Maputo. É recordista nacional de salto em comprimento, com 6,94 metros. Ele integrou a delegação moçambicana que participou nos Jogos Olímpicos de Moscovo, em 1980, marcados pelo boicote de 66 países membros do Comité Olímpico Internacional.

 

Fez parte de uma geração pródiga, no pós-independência, onde despontaram os nomes de Eduardo Costa, Constantino Reis, Vicente Santos, Pedro Mulomo, Dias Alface, Abdul Ismail, Acácia Mate e Ludovina Oliveira. Depois abraçou a formação. Foi treinador no Desportivo de Maputo. Era interventivo contra um dirigismo errático na federação e no Comité Olímpico. Era polémico. Controverso. Frontal, a contragosto da maioria. Um incompreendido?  Era contra a intromissão da federação em matérias de programação dos atletas, cuja base de trabalho são os clubes.

 

 

Seu feito maior? Formação de atletas campeãs, incluindo a “nossa menina do ouro”, Lurdes Mutola, descoberta pelo poeta José Craveirinha, seu pai. Lurdes mantém “online” um depoimento (de reconhecimento e “gratitude”) sobre como foi essa descoberta e o papel durão de Stélio quando ela abandona os pelados do Chamanculo, onde jogava a bola suplantado a rapaziada, e começa a calcorrear a pista do Parque dos Continuadores, sobre a aura dos Craveirinha, filho e pai. O descobridor e o primeiro lapidador.

 

“O poeta Craveirinha viu a história na primeira edição do Jornal Desafio (sobre uma fabulosa jogadora de futebol) e foi ao Chamanculo, falou com os meus pais e convenceu-os para que eu mudasse para o atletismo. Na altura não sabia do que se tratava. Mostrou-me vídeos de Jogos Olímpicos. Comecei a entender. Fui treinar, mas não durei muito tempo. Recordo-me que nas primeiras duas semanas, no Parque dos Continuadores onde ele me apresentou o filho, Stélio, treinei e nunca senti tantas dores na vida”.

 

“(...) Tudo começou em 1988, tive a viagem para o Botswana, nos Jogos da zona VI. Graças a Deus consegui a medalha de ouro, nos 800 metros. Quando voltei, já tinha outras ideias. Disse: daqui tenho que chegar às Olimpíadas. Mas como, se não tenho mínimos? Comecei a treinar a sério e recordo-me que Stélio puxou por mim. Treinava duas vezes, fazia treinos secretos, no Parque dos Continuadores e no bairro, com as minhas amigas”.

 

 

Stélio foi instrumental para o estrelato de Lurdes Mutola. O pai descobriu o diamante e o filho participaria da sua lapidagem inicial. Aos 70 anos, Stélio Craveirinha parte, mas será lembrado com muita saudade. Seu contributo para o atletismo é marcante. O clã da Mafalala ficou agora mais pobre. Stélio é irmão de Zeca Craveirinha, um homem mais discreto.

 

O pai dos dois, num poema de “A Cela 1”, escrito na prisão, diz ironicamente deles “os dois meninos maus estudantes”. Uma denúncia do “bullyng” de que Stélio e Zeca foram vítimas, pagando a rebeldia anti-colonial do pai.

 

OS DOIS MENINOS MAUS ESTUDANTES

_Zeca-e-Stélio

_Mamã!

_São horas da escola

_!!!

 

_Vocês não ouvem? São horas.

_Não queremos ir à escola, mamã

_O quê? Não vão à escola? Vão, sim-senhor!

_Não vamos à escola mamã.

_Mas não vão à escola porquê? Não estudaram, não é?

_É a sôra professora, mamã.

_É a sôra professora o quê?

_!!!

 

_Olhem amanhã é dia de visita e vou queixar ao vosso pai.

_Não vai queixar, mamã.

_Queixo sim, vocês vão ver.

_A sôra professora chama... sôra professora cha...

_A sôra professora não chama nada. Vou queixar.

_A sôra professora chama-nos filhos de um turra, mamã.

_!!!

 

_Está bem, mamã, não chore.

_Não chore, mamã. Nós vamos à escola, mamã.

                    (Agosto de 1967)

(Marcelo Mosse)     

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