A vida e obra de Carlos Cardoso foi marcada por vários momentos. Nas edições anteriores desta publicação, trouxemos (por via de depoimentos) Carlos Cardoso, enquanto director da Agência de Informação de Moçambique (AIM) e a batalha a favor da produção da cannabis sativa para o consumo. Desta vez, a paragem é na Assembleia Municipal de Maputo, onde Carlos Cardoso fez-se membro na sequência da realização das primeiras eleições municipais, em 1998. Foi pelas mãos do movimento Juntos Pela Cidade (JPC) que o conceituado jornalista chegou ao órgão. O JPC, que surgiu em 1997, é fundamentalmente produto da junção de sinergias entre Carlos Cardoso e o médico e pesquisador Philipe Gagnaux.
E é, precisamente, à porta de Philipe Gagnaux que batemos, ao longo desta semana, para perceber um pouco da “aventura” do jornalista investigativo pelas bandas da política activa. Gagnaux aponta Carlos Cardoso como peça-chave para o fortalecimento do Juntos Pela Cidade, que nasce da coincidência de ideias de ambos. Em meio a gargalhadas, Philipe Gagnaux contou-nos que ele não era o candidato que Carlos Cardoso queria para dar a cara pelo movimento e que só ficou porque já não havia outro. Conta que acabou ficando como o porta-estandarte do movimento porque o namoro a um “bispo conceituado da praça”, feito por Cardoso, não saíra tal como augurara.
O Juntos Pela Cidade, contou Gagnaux, é produto da necessidade de participar activamente na governação da autarquia de Maputo e de dar voz aos que não tinham voz. Desconstruir a ideia de que só poderia fazer parte de um órgão de governação, seja ele local ou central, quem se candidatasse suportado por um partido político, fosse ele da posição ou oposição, foi outro pressuposto que norteou a criação do movimento, disse Gagnaux. Na memória, Gagnaux tem, para além da incessante recusa de Carlos Cardoso em usar a gravata, o “barulho” para construção e sem descurar da manutenção das estradas da urbe. Pela batalha, Carlos Cardoso dá nome a uma rua no bairro da Polana-Caniço, arredores na Cidade de Maputo.
Acompanhe, nos parágrafos que se seguem, excertos da conversa com Philipe Gagnaux, alusiva à passagem dos 20 anos do cobarde assassinato de Cardoso.
Em que circunstâncias conhece Carlos Cardoso?
“Ouvia falar de Carlos Cardoso como jornalista, mas, de facto, foi quando estava a preparar-me para obter apoio e conselhos para me candidatar às Eleições Autárquicas (1998), um dos meus interlocutores influentes disse-me que Cardoso também tinha um projecto semelhante e que estava à procura de um candidato. Nessa altura, propunha um bispo conceituado da nossa praça. Na altura, o bispo declinou o convite e mais tarde nos encontramos. Tenho de admitir que ele não me queria como candidato do Juntos Pela Cidade (JPC). Mas, na falta de melhor, juntamos forças. Eu, ele e mais uns 13 outros fomos eleitos para a Assembleia Municipal de Maputo”.
Cardoso foi peça-chave para o Juntos Pela Cidade?
“Ele foi fundamental para o fortalecimento do movimento e pôs à disposição toda a experiência e o Jornal por fax que publicava na altura. Trouxe e juntou vários líderes de várias associações para o Juntos Pela Cidade. O projecto abarcava vários objectivos. O primeiro era participar na governação autárquica fora dos partidos políticos. Segundo, mostrar aos capazes, mas menos corajosos, que era uma realidade e que não era arriscado participar como independentes e, por fim, queríamos também dar voz aos sem voz”.
Batalhas do Juntos Pela Cidade?
“Não me lembro de grandes batalhas. Nós sempre remamos contra uma Assembleia, em que nós tínhamos apenas 20%. Ou seja, estávamos em minoria. Lembro-me dos projectos de estradas que o Cardoso defendia com unhas e dentes. Ele queria que se fizessem estradas de pavês por acreditar que eram aquelas que duravam mais, isto, se não houvesse roubos de pavês e com a manutenção mínima se mantém para sempre. E, graças a isso, há uma rua que está no bairro da Polana Caniço, que acabou por se atribuir o nome dele. Também lutamos para que o Jardim Zoológico voltasse a ser entregue aos munícipes. Lembro-me que, na altura, tudo que nós propuséssemos a Assembleia votava contra, no caso a maioria que era da Frelimo. Então, uma vez decidi fazer o contrário dizendo: que não devemos entregar o jardim Zoológico aos munícipes porque não ia ser bom e aí a Assembleia votou dizendo que se devia entregar. Infelizmente, quando saí do interior da sala, ao invés de ficar caladinho coloquei-me a rir e a dizer que eu queria que se entregasse o Jardim aos munícipes. Alguns dias depois, convocou-se uma nova sessão para reverter aquela decisão e foi muito engraçado. Na altura, nós fazíamos muito barulho. Eu, Carlos Cardoso e mais alguns intervenientes tínhamos uma particularidade muito engraçada. Não havia disciplina de voto. Cada um expunha as suas ideias, mesmo que fossem contrárias dentro do grupo”.
Êxitos conseguidos pelo movimento?
“Acabamos por impor uma Assembleia Municipal, onde a disciplina de partido ou de voto não existia. Permitiu que existisse uma independência no voto. Outro sucesso é que mostramos que os cidadãos podiam ser eleitos. Que eles podiam ter uma vida activa. 20% da Assembleia era de membros não filiados a partidos, sendo que o próprio Juntos Pela Cidade era uma associação e não um partido. Carlos Cardoso recusou-se sempre a usar a gravata eu também raramente o fiz. Outra coisa que me ocorre é que, no segundo mandato, eu decidi vetar a entrega da chave à Rainha da Inglaterra. Achei que o Município não tinha nada a ver com a Rainha da Inglaterra e que não havia porquê ela merecer a chave. Se existisse algum motivo, que o Governo Central arranjasse uma condecoração ou uma homenagem para Rainha”.
E como era a convivência?
“Convivi muito pouco com Carlos Cardoso, exceptuando quando tínhamos algumas reuniões para debater assuntos importantes. Fui algumas vezes ao jornal dele para publicarmos, ajudarmos em logos, coisas assim. Durante a campanha, ele foi um dos indivíduos mais activos. Ele e mais outros. A maior parte das pessoas eram preguiçosas e o trabalho era feito pelos mesmos. A memória que eu tenho é ele a dizer que não usava a gravata, a irritar-se e a lutar para que estradas fossem arranjadas e feitas como devem ser. Que se criasse uma equipa de manutenção constante das estradas”.
Sente que o legado de Carlos Cardoso, enquanto activista, está a ser seguido?
“Penso que é mais geral do que específico. Acabou por haver muitas estradas feitas em pavês e ele defendeu isso. O mais importante é ele, sendo membro do partido, ter mostrado que podia participar num movimento cívico. Isso não era incompatível razão pela qual o Juntos Pela Cidade nunca foi um partido. Nós queríamos que mesmo quem está vinculado ao poder central pudesse ter uma participação de uma forma isenta e neutra ao nível das autarquias. Ele veio provar que qualquer pessoa poderia fazer isso. Mais tarde foi assassinado e não penso que tenham sido represálias ligadas a isso, no entanto, é possível que seja mais um factor”. (Ilodio Bata)