Ser um saqueador de bois nas terras onde eles são maioria relativamente às pessoas que cuidam deles é uma certidão de óbito garantida; principalmente quando o larápio é um indivíduo que vem de uma família em conflito com algumas "bem influentes figuras" no seio das autoridades locais e da associação que protege os interesses dos grandes criadores dos bovinos.
Na boi-village não existe piedade e nem regras excepcionais na hora de pegar na matemática e acertar as contas. As autoridades atiram casos similares para o balde de lixo que estiver mais próximo. O estilo de vida e a actuação relembram os velhos tempos das cowboiadas americanas. A bala soa mais alto que a sensatez humana. Em caso de fuga do infractor, as sessões de tortura são activadas no estilo da "Cosa Nostra na Itália".
Em boi-village "matar é um acto profético". Lá onde o animal é tratado nos moldes indianos. Em caso de furto de um bovino, se o mesmo não for devolvido, o ladrão vê a sua caminhada na terra colocada um ponto final. Se a quantidade infinita de socos não resolve as longas horas de agonia, a bala ou o combustível são chamados ao terreno. É uma situação que, pelo modus operandi, revela uma protecção de alto nível aos locais; chegando mesmo a bófia a preferir que o infractor vá para os corredores da tortura e da morte das associações que numa esquadra.
É o que se verificou, recentemente, na "vila dos bois" quando duas famílias duelaram tendo deixado um rasto de mortes e de dores em ambos lados. Quatro homens jovens foram enterrados, sendo que dois eram irmãos e com muita energia e com projectos pela frente. A paixão excessiva pelos bovinos alheios fez um cair, com rapidez, na cova. Na hora de apurar-se a veracidade dos factos todos sabem contar, mas ninguém diz o certo. De tantas versões, o acto acaba virando uma equação inexplicável; no dia em que a vila dos bois caiu na tragédia que alimentou rumores, fofocas, conversas de barraca em tempos de pandemia, ressuscitou velhas feridas da busca pelo xibedjane e deixou a justiça pelas próprias mãos a imperar - provou-se que o ovo nasceu antes que a galinha/galo.
A cowboiada da boi-village ficou ardilosa e cataclísmica quando o povo viu um pai com o filho mortos por uma bala de ajustes de contas, correndo de um lado para o outro nas instituições locais pedindo justiça. Mas ninguém estava aí para ele... Frustrado e decepcionado pela inoperância das autoridades policiais e judiciais carregou o corpo para casa. Accionou os membros da associação e saíram a cavalgada à caça dos sapiens-sapiens que haviam regado a terra com o sangue real da localidade.
A família e a cowboiada partiram para a casa dos assassinos do filho "shot man". Chegado lá, pegou na mulher de um dos visados e começou um longo período de tortura e de interrogatório. A mulher resistiu, mas foi traída pelas constantes chamadas e mensagens que seu amado fugitivo fazia. Mas a resistência da jovem mulher acabou esgotando, sem alternativa, ela começou a cooperar e a revelar o local onde estava o seu cônjuge, até ser encontrado e levado para "a mata certa e da morte".
Não houve piedade e nem orações de pedido de perdão para o anjo da morte, o ajuste foi protagonizado. Os dois irmãos foram assassinados. A raiva havia sido amainada de um lado e instalada. O modus operandi das famílias provou que os cowboys existem também em Moçambique.
Nas margens das lindas terras de Marracuene um outro acto, hediondo, gelou as comunidades locais. Quando um homem foi linchado por ter roubado algumas cabeças de gado bovino. A ferocidade que os criadores usam para desincentivar o roubo de gado relembra as peripécias da saga "Django Libertado", interpretado por Jamie Fox, onde os caçadores de recompensa percorriam longas distâncias para deter ou matar os ladrões de gado.
Embora roubar seja um pecado no mundo religioso. Crime segundo as Leis de todos os Estados. É um peso moral e ético. Penso que os criadores deveriam ser mais pela legalidade e confiar nas autoridades policiais e judiciais, porque do modo como fazem as coisas demonstram ser os senhores da terra, dos bois, das vidas que tiram, da lei e do céu. Ou seja, sentem-se deuses na terra...(O.O)
As crianças que morrem à fome
de cólera, miséria, violência
abandono e selvajaria governamental;
Louvados sejam
Todos aqueles que sem condições
lutam
por mais um dia de felicidade
por mais uma refeição de verdade;
Louvados sejam
Os heróis anónimos que morrem
nas matas
montanhas e emboscadas
lutando por um ideal desconhecido;
Louvadas sejam
As mulheres da minha pátria
que com um bebê
nas costas cultivam a terra
produzem alimentos que poucas vezes consomem;
Louvados sejam
Os governantes do amanhã
que com a sabedoria
do passado e presente podem
combater os erros dos seus antecessores
suprirem as diferenças regionais
evitarem a miséria
da guerra, corrupção, misantropismo e neocolonização;
Louvados sejam
Os jovens íntegros
que diante da cólera do desemprego,
exclusão
Perseguição e até abate de cérebros pensantes
acreditam num futuro risonho
colorido de esperança, glórias e sem miséria;
Louvados sejam
Os sábios de ontem que alertaram
sobre
a maldade da ditadura
tirania, oligarquia e os vícios da democracia.
Que incompreendidos morreram
perante a intolerância dos seus
governantes
morreram afogados
Com seus pensamentos, conhecimentos e devaneios progressistas;
Louvados sejam
Os nossos inimigos criados
que
mesmo com a miséria do povo defendem
a podridão de um governo
incapaz, ineficaz e desculture da paz;
Louvadas sejam
As almas dos rapazes de Xitaxi, Matchedje, Bilibiza, Negomano, Vanduzi, Gorongosa, Morrumbala e Chiango
Louvados sejam
Os africanos e moçambicanos
do amanhã
que terão a oportunidade através
da educação, formação, da história antiga e actual
Perceber os malefícios da guerra e corrupção
Compreender que os países e o local de nascença viveram
durante anos condenados às ambições misantrópicas e endémicas
dos seus governantes e aliados
que o imperativo da paz foi sempre preterido
em favor do derramamento do sangue inocente e chacinas em troca da riqueza do povo e do silêncio dos capazes...
Louvada seja
A pátria que amamos e por ela labutamos, nos marimbamos, lacrimejamos e nos ensanguentamos...
Omardine Omar - Janeiro de 2021.
Na virada do ano pensei no Estado moçambicano em 2021, sobretudo na sobrevivência ou resiliência dos elementos que compõem um Estado: Território, Povo e Poder Político/Soberania. Cogitei sobre cada um deles e no final uma pergunta ficou no ar: o que será destes elementos na Pérola do Índico em finais de 2021?
Na esteira da cogitação lembrei-me que na primeira década do século em curso participei em vários tipos de eventos cujo objecto era o combate à pobreza ou mesmo o desenvolvimento do país. A dado momento não me revia nos propósitos dos planos em debate por achar que não eram os mais correctos para o que o país precisava. Entendia eu que o principal objectivo passava por “Organizar o Estado” e não o de reduzir/eliminar a pobreza ou o de crescer o país de x para y. Na altura partilhei esta ideia com uma amiga que tratou logo de discordar e no lugar propôs que “Organizar as pessoas” é que deveria ser o objectivo. Na defesa do seu argumento ainda alinhou uma série de altos dirigentes como exemplos de que antes de organizemos o Estado devíamos organizar as pessoas. Foi difícil não concordar.
Hoje, decorridos mais de 10 anos da conversa, acabei ligando para a citada amiga afim de partilhar a minha inquietação, a que ficara no ar acima. Mal eu terminara a contextualização e a decorrente inquietação, ela perguntou: “Já habemus pessoas?” Certamente uma outra pergunta que fica no ar. De toda maneira, e para terminar, tal como a maioria de nós recebeu um “votos de próspero 2021”, vai o meu “Próspero 2021 Estado Moçambicano”.
“O que me preocupa não é o grito em torno do que será feito com o Fundo Soberano (FS), mas sim o silêncio sobre as suas fontes de financiamento”. Volto a esta frase, mas antes um lembrete: na novela brasileira “O Bem Amado”, o perfeito Odorico Paraguaçu atribuía ao poeta Rui Barbosa algumas das suas eloquentes frases. Questionado sobre a autenticidade de uma delas, o Odorico respondeu: “Se o Rui Barbosa não disse, devia ter dito”. O mesmo com a frase acima: se Martin Luther King ou uma outra figura mundial não disse, devia ter dito”.
A citação é a propósito da auscultação em curso sobre o FS. Ao que parece, o FS é uma resposta para alojar e distribuir a (excedente) verba do gás de Palma e não só (rubis, grafite, etc), tendo a diversidade das fontes sido até teor de uma recente observação do presidente da República na cidade da Beira, aquando da inauguração do edifício do Banco de Moçambique, a instituição na liderança da proposta e debate sobre o FS. E ainda a propósito: “Por acaso já houve uma auscultação sobre as fontes de financiamento do FS? Quiçá, por aqui fosse um caminho a considerar, lembrando, à luz da citação, que não é só o ponto de chegada (destino) do dinheiro que preocupa, mas sim, e sobretudo, o seu ponto de partida (origem) e este pode até não ser soberano, atendendo que o país não controle o negócio, e nem saudável, atendendo, por exemplo, a certas circunstâncias do processo de exploração/produção como as de guerras e de violação dos direitos humanos, tal o caso do mundialmente famoso “diamantes de sangue”, e ainda de políticas (fiscais, laborais, etc) prejudiciais ao país.
E longe de qualquer analogia (tipo “gás de sangue”), e bem para concluir, urge que se traga à mesa do debate as fontes de financiamento do FS, e do desenvolvimento em geral, e ainda, e é imprescindível, a necessidade de aferir quão soberanas e saudáveis elas são sob pena do FS ser, a partida, um fundo com um fundo falso e problemático. De contráio, e também dizia o citado perfeito: “Em cavalo manso todo o mundo monta”. E já agora: caso o perfeito Odorico Paraguaçu não tenha o dito, que tivesse dito.
O demonstrativo desse sentimento é a minha obsessão por lugares abertos com pouca gente, como aqui onde me encontro, na Praia da Barra, testemunhando a derrocada do próprio fascínio. Vejo o Índico avançando devagar, porém resoluto, ao encontro das dunas ocupadas pelos homens, e parece já não haver nada a fazer perante a fúria do mar. Que vai destruir tudo isto.
Tenho o celular no dispositivo do silêncio, pois não quero ser interrompido nesta audição à música do oceano e dos pequenos montes de areia que vão sendo deluidos pelas ondas. Eu oiço esses montículos cantando dentro de mim a melodia da dor, composta pela ganância e estupidez. E nós mesmos não quisemos perceber os limites da nossa liberdade, indo até onde não deviamos, tocando em obras da natureza feitas apenas para a contemplação.
Eu também faço parte desta praia que vai sendo demolida pelas águas, pedaço a pedaço. Estou aqui há muitas horas e ainda não vi ninguém passando ou chegando, a não ser as aves marinhas voando rasante por sobre as ondas, outras passando perto de mim, saudando-me, ou simplesmente para admirarem alguém que ousa estar sozinho num sítio em decomposição. Sem medo de nada, nem da imensidão assustadora do mar determinado na devastação da terra.
Na verdade não tenho medo de estar aqui, e isso pode significar que estou no zénite, e a solidão, como se sabe, é o ponto mais alto da vida, e eu já estou lá, onde posso delirar livremente nas minhas alucinações provocadas pela incenssante imaginação. Aliás a minha vinda à Barra revela isso, mas no fundo é mentira, nunca estou sozinho. Tenho o mar como almofada, as dunas ruindo, as aves planando, e a presença magnética do silêncio que me faz viver como nunca.
Se há uma ave por estas bandas, arrebatada e desfrutando deste encanto sem limites, eu sou! Não me importam os ponteiros do relógio, nem as chamadas dos amigos que ligam ao meu telefone activado para o silêncio, esses podem esperar, contrariamente a esta consonância entre mim, o Índico, as dunas, os ventos, e o próprio silêncio. Até porque cheguei a pensar que a praia estivesse vazia, ela está repleta desta poção mágica vertida por sobre a minha alma.
A praia da Barra dói-me na música que ela canta, composta no conservatório do fundo dos mares. Ninguém a quer escutar, pois cada vibração é uma facada na esperança. A Barra pende num fio frágil que vai rebentar daqui a pouco, e eu estou aqui assistindo a esse momento dramático, com o celular no silêncio. E como o sol já está a cair no horizonte, por hoje basta, vou-me embora, entristecido, desolado como todo este espaço esplendoroso. Se calhar volte outro dia, sem expectativa, quem sabe!