A organização do poder na e da sociedade política (constituição dos órgãos de poder), a determinação dos mecanismos de decisão e fiscalização, é temporal e está num presente indefinido. As pessoas singulares mudam, as decisões são diversas, mas as instituições são supostamente imutáveis. Além disso, só se tornam instituições se se afastarem do evento para se constituírem como mecanismos e regras do jogo. Funcionam então num tempo móvel, mas que assegura o regresso ao mesmo. O tempo neutro e cíclico é, por excelência, o da vida política institucional.
A unidade de tempo que analisa e mede a vida política da sociedade é a duração de vida do principal corpo político. Na realidade, as ciências sociais não podem construir uma conceptualização do tempo. A história e todas as abordagens genéticas adoptam a concepção do tempo como linear, orientada e activa. É um tempo absoluto estruturado pelo calendário e pela periodização que o pesquisador constrói sobre o calendário. Este tempo social histórico permite organizar eventos e fenómenos duradouros de acordo com uma cronologia (Borella, 1990). A sociologia e todas as abordagens sincrónicas querem afastar-se deste tempo fluente a fim de basear a sua cientificidade no tempo relativo e neutro da mecânica. É o tempo dos sistemas e estruturas, específicos de cada sistema, uma dimensão simples do mecanismo que pode ser dispensada se o sistema for estável e fechado.
Esta dualidade é particularmente marcante em demografia, economia e política. Tanto assim que se duvida se estamos a falar das mesmas coisas. No primeiro caso, estamos a falar de objectos naturais, como teria dito Auguste Comte; no segundo, de objectos artificiais, sistemas abstractos e modelos. Na maior parte das vezes, ambos não têm mais nada a dizer um ao outro. Os historiadores só falam do passado e proíbem-se de qualquer explicação e especialmente de qualquer previsão. Outros, sociólogos, economistas, cientistas políticos, de facto falam do presente, mas como se fosse intemporal, isto é, eterno, e aspiram à previsibilidade dos seus modelos.
Mas em política não podemos cingir-nos a esta observação. A política como acção e a política como conhecimento são de facto inseparáveis. Como acção, a política é o controlo de um grupo social, do espaço que ocupa, do tempo que vive, por uns poucos ou pelo próprio grupo. Assim, é em primeiro lugar uma tentativa de controlar o tempo, mas inseparavelmente, é controlado por ele.
Tal como a política não pode fazer o tempo, também a política não pode fazer o tempo, mas tenta controlá-lo a fim de neutralizá-lo. Este esforço visa organizar o tempo político como uma realidade autónoma em relação ao tempo do mundo orientado e irreversível, e em relação ao tempo da história, em suma, em relação ao tempo que flui. A política procura estabelecer um tempo mecânico, neutro e reversível em que não há passado nem futuro. O fenómeno político só existe se observarmos esta situação de uma sociedade que se organiza para controlar a temporalidade do mundo e da história, para se instalar num presente permanente.
Por política, entendemos toda e qualquer acção que se efectiva pela capacidade de provocar ou retardar mudança e que é exercida pelos actores com poder de decisão sobre destinos colectivos. Com efeito, o tempo tem interessado à política, designadamente, enquanto um meio e um instrumento de calendarização de actividades ou como um plano de orçamentos e de avaliação da concretização de metas. Trata-se do tempo-calendário, o tempo como sistema métrico e cronológico (Araújo, 2018). Neste comentário, propomos argumentar que a política (que tanto se refere à acção dos representantes políticos, como a acção do indivíduo humano, no contexto da sua vida) se “esquece” frequentemente do tempo.
Explicadas as metamorfoses sobre o tempo, importa destacar que ao analisar a implementação de uma reforma (do sector público) ou de uma iniciativa governamental, existem dois tempos centrais para a boa realização ou não de tal pretensão política.
O primeiro momento podemos designá-lo de tempo técnico, que seria a possibilidade material e efectiva de colocar em prática um serviço – uma acção. Dito de outra forma, é a criação de condições objectivas para que a vontade do político seja materializada. Aqui não basta a promessa ou a mera intenção, é preciso que existam condições para o efeito, sejam elas de ordem material, financeira ou mesmo humana.
O segundo tempo é político, que é a vontade do implementador (entenda-se actor político de governação) para colocar em marcha uma determinada acção governativa, tendo como objectivo principal o cumprimento de uma promessa política. Seria a ‘entrega’, em forma de bens e serviços, aos cidadãos de um pacto político feito antes da eleição do governante.
Trazemos esses dois tempos para perceber de que forma os mesmos podem ter aplicação, face ao momento de crise que, mais do que sanitária, deve ser entendida como tendo pendor político, sobretudo porque demanda dos governantes a tomada de acções para minimização dos impactos que podem afectar a sua reeleição ou mesmo manutenção em determinados cargos de exercício de poder.
O tempo técnico em face desta pandemia seria a criação de vacinas ou soluções médicas que possibilitem a erradicação da doença, mas enquanto essa acção não se concretiza de todo, o actor político precisa acelerar a sua marcha para que possa cumprir as juras que fez ao seu eleitorado, sobretudo antes da pandemia – referimo-nos aqui ao tempo político.
Pensamos que vivemos hoje a contradição invisível de dois tempos que procuram coexistir num mesmo espaço que podemos designar de arena social, onde enquanto que os cidadãos (aqui entendidos como eleitores) demandam por protecção em prol da sua saúde, o político (governante) preocupa-se em garantir que, ao mesmo tempo que disponibiliza serviços de saúde, deve colocar em marcha as suas promessas políticas (que vão para além de gerir uma pandemia) tendo em vista os próximos pleitos eleitorais – uma campanha política permanente. Se bem feita tal protecção sanitária, pode valer claramente a reeleição de um político ou do seu partido. Esta equação não deve ser surpreendente, se tivermos em conta a racionalidade incompleta que guia qualquer actor político, cuja preocupação maior passa pela perpetuação do poder (Marrel, 2018).
Em outros termos, diríamos que os actores políticos têm consciência da importância do inesperado e do desconhecido no desenvolvimento da tomada de decisão e de políticas. Todavia, a sua visão de tempo na política é fundamentalmente de carácter sequencial, linear e delimitada pela prevalência de datas e de prazos. Uns, à escala anual, como planos de actividade, programas ou orçamentos, e outros a uma escala mais longa. Na base, pode afirmar-se que predomina o conceito de tempo-recurso. As técnicas da acção política utilizam o tempo como recurso e meio de acção, e não apenas como objecto de acção, o que demonstra a transformação do papel da política. Já não se trata de uma questão de poder político que estabelece normas para a actividade humana e social, que de outra forma é deixada livre. É claro que o Estado continua a ser responsável por esta tarefa, estabelece e controla as regras do jogo, mas também se torna um dos jogadores.
Esta situação é bem conhecida. O estado neutro, liberal, mínimo ou modesto é a política no presente permanente, enquanto que o estado intervencionista, assistencialista e providencial é a política em acção no tempo histórico. Estratega e táctico, o actor estatal actua num tempo prospectivo e finalizado, que se torna um recurso raro como os outros recursos necessários para qualquer acção (meios humanos e financeiros, espaço e técnicas, materiais e intelectuais).
Desde as acções mais simples, como as obras públicas, até às mais complexas, como o planeamento completo de toda a vida económica e social, o tempo histórico-social torna-se um recurso raro. Nas democracias liberais, cuja acção política é canalizada através de eleições populares, o intervalo entre as eleições fornece a matéria-prima temporal para a acção dos órgãos políticos eleitos. Os regimes autoritários ou totalitários, ao recusarem as eleições e/ou mandatos limitados, pretendem fornecer-se com uma oferta inesgotável de tempo.
Chegados aqui, sobressaem duas questões que nos parecem fundamentais: como garantir a articulação entre o tempo e a política durante a gestão de uma pandemia? Seria esta uma oportunidade ou perigo político?
*Sugestões de leitura
"A vida má, sem moderação, desprovida de entendimento e de respeito pelo sagrado não é uma vida má, mas um morrer lentamente." Demócrito de Abdera – 460 a.C. – 371 a. C. Filósofo grego
Não vos devíamos saudar, mas a realidade espiritual obriga-nos a fazermos. Esperamos que a vossa vida no mundo dos seres vivos e visíveis esteja a correr devidamente, porque nós por cá nada vai bem, pelo menos, no que concerne ao descanso eterno dos nossos corpos. As nossas almas ainda contemplam o mundo e o além.
Escrevemos num momento em que os nossos dias já não são os mesmos; tornaram-se amargos. Quando deixamos o mundo dos vivos e descemos à cova tínhamos um fardo de certeza: teremos um bom descanso. Nenhum de nós queria estar aqui. Gostaríamos de continuar vivos, a viver do pouco que tínhamos ou mesmo à francesa. Talvez estaríamos, agora, murmurando com máscaras nas ruas como pessoas. Mas o anjo da morte carimbou-nos os passaportes sem o nosso consentimento; e atravessamos a fronteira; cá estamos: mortos.
As nossas famílias, visando garantir um repouso eterno para os nossos corpos deitados, adquiriram caixões em função do nosso status social, político e financeiro; embora a areia que nos cobre seja a mesma para qualquer um que tenha nascido e morrido. O que elas não sabiam é de que o caixão adquirido na funerária foi desenterrado de um vizinho de campa e colega da vida espiritual.
Os ladrões perderam a "honra da ladroagem" e violaram todos códigos da classe dos gatunos. Já não bastava o roubo de rosas, de quinquilharias, lápides com datas e nomes e quadros prateados ou bronzeados com fotografias! Eles agora levam também o caixão e sepultam corpos indignamente.
Os ladrões e os proprietários das funerárias vivem como se fossem imortais. Roubam até a cama de um ser indefeso e o pior, inanimado, sem vida! A busca pelo dinheiro fácil os faz acreditarem que o luto de uma família é negócio para as gangs da Lhanguene, Michafutene, Mahotas, Texlom, Saudade, Muxará, Quichanga, Manga ou Coalane. Os ladrões de caixões vivem para além dos limites da (in)moralidade. De uma coisa temos certeza: todo ser-vivo, um dia, morrerá e a terra tornar-se-á o local onde todos os corpos serão sepultados como lixo humano. O que adianta assaltar um defunto e ainda sentir orgulho disso?
Que espécie de seres humanos actualmente habitam no mundo? No nosso tempo não era assim. Uma espécie que vê a maldita morte como uma oportunidade para abrir uma multinacional que gere caixões desenterrados em nossas casas! A imoralidade social e financeira atingiu os píncaros da decadência. Ontem roubavam flores, vasos e hoje roubam caixões. Quantas cerimónias fúnebres foram realizadas usando-se os mesmos caixões? E amanhã o que venderão? Com certeza os nossos restos ósseos ou mesmo a areia do cemitério…
Acreditem que devido a demanda no negócio de vendas de caixões muitas famílias devem estar a prestar homenagens ou a visitar campas com corpos de outros defuntos. A estupidez é tanta que até existem grupos criados para tal.
O anjo da morte é impiedoso na hora que dita que o corpo deve parir a alma. As funerárias são impiedosas com as famílias que procuram pelos seus serviços no momento em que um parente se vai. A saga dos ladrões de caixões revela que a busca por alternativas de sobrevivência, em Moçambique não tem limites, até alguns podem mentir que vendem a "imortalidade"…
Recebi uma chamada telefónica de alguém que me acompanhava no facebook, pelos vistos de forma muito particular, ele dizia que já não me via naquela plataforma, o quê que se passa, ilustre? O interlocutor que me abordava nem sequer teve tempo de se identificar e eu não me importei, não lhe perguntei quem era, achei isso supérfluo. É uma figura que fala de forma afável, com o nível mais alto de educação, sentia-se até certo ponto alguma angústia na forma como articulava as palavras. Era voz de um homem a quem eu fazia falta, e isso comoveu-me. Parecia que ele tinha falta de oxigénio, e o oxigénio sou eu. Então é preciso encontrar a melhor resposta para não decepcionar o meu seguidor.
Mais do que tudo, esta ligação renova-me, significa que estou sendo valorizado por um desconhecido, e é embaraçoso quando somos colocados numa situação destas. Vacilei várias vezes até encontrar aquilo que achei ser a resposta mais adequada, embora ambígua. Disse-lhe mais ou menos assim, a vida é inesperada, meu caro!
Depois houve um silêncio tanto do lado de lá, como do lado de cá, parecia que tudo estava sintentizado nesta expressão, “a vida é inesperada, meu caro”! Sim, a vida é inesperada! Ele percebeu esta verdade de modo que não restou outra coisa que não fosse agradecer os momentos agradáveis que lhe proporcionei durante uma temporada, e eu nem sabia que estava alimentando com as minhas intervenções, o coração de um ser humano que agora enconsta-me à parede, não segurando uma espada, mas um pequeno vaso cheio de flores. Aliás, antes de desligar o celular, eu ainda disse mais, talvez um dia volte, quem sabe!
Agora preencho uma grande parte do meu tempo descendo à pequena península que fica aqui perto da minha casa, onde outrora era o paraíso da juventude. Fico neste lugar desordenadamente ocupado por ávidas construções, quase todas elas frágeis, durante horas e horas assistindo ao mar que vai devorando aos poucos a terra incapaz de resistir. Sinto pena dos moradores que já perceberam tudo, ou seja, a destruição das suas casas é inevitável, isso vai acontecer mais dia, menos dia.
Chama-se Mabananeni este espaço que já foi um esplendor, presentemente cercado do lixo rejeitado pelo mar que canta a música do aplocalipse. Nas noites, em dias de marés enquinociais, as ondas, cansadas de se esbaterem nas margens, entram pelas habitações adentro molhando tudo e as próprias pessoas que serão fustigadas até ao interior do ser. Depois a maré vai vazar para esperar outros enquinócios que já se tornaram ferozmente cíclicas.
Já não tenho dúvida de que a minha pequena península um dia desaparerá, engolida pelo mar determinado, e eu acompanho esta dura realidade sem poder fazer nada. Resigno-me como estes poucos moradores trazidos pela desgraça. Assisto impotente, as ondas avançando de triunfo em triunfo, ao encontro da nossa derrota colectiva.
Para os que apreciam conversas de café sabem que é bem normal que apareçam por lá algumas figuras que são apelidadas de inconvenientes salvo melhor qualificação. Entre as várias categorias de inconvenientes falo dos da espécie que arrasta a conversa para a propria brasa, embaraçando o sossego dos demais ou de parte destes. A inconveniência reside no conteúdo e no tom alto da fala. Também sabem que uma das formas para debelar esta espécie passa por pedir ao garçom que o abasteça. A fórmula é simples: enquanto ele estiver convenientemente abastecido é o mesmo que abatido ou que no mínimo o conteúdo e o tom da fala passassem para o campo romântico.
Contudo, nem sempre a estratégia de abastecimento funciona para debelar um dito inconveniente dos salões de café, pois este, o dito inconveniente, pode até pertencer a uma estirpe resiliente e o efeito da estratégia sair pela culatra, ou seja: quanto mais abastecido, mas desprendido. Perante o aguçar da inconveniência, aos afectados restam apenas duas saídas: a mudança de café ou de estratégia. Tirei a dúvida este final de semana. Estava, entre amigos, num afamado café da cidade. E lá também estava um dito inconveniente e em plenas funções. Depois de algum tempo alguém pediu a um dos garçons que deixasse um cálice (de vinho amargo) na mesa dele. Uns minutos depois, e bem audível, ouviu-se: “Garçom, afasta de mim este cálice”. (já ouvi algures uma frase parecida).
Era o dito inconveniente. Em diante ele passou a ser conhecido por poeta, pois ocupava o seu dia em salões de café declamando poesias (decifráveis para poucos) que dizia, e com euforia, serem da sua autoria. E pelo jeito que as coisas andam - por conta da vaga de salões de café em tempos de pandemias – a previsão aponta ( e a História confirma) para a chegada de uma vaga de poetas. Oxalá, e para fechar, que esta vaga também não paute pela súbita ausência tal como a da pomposamente anunciada vaga de calor da passada quarta-feira.
Tudo o que ela diz parece uma renovação, pela maneira como dá sentido às palavras. Vibra em todo o ser quando diz, por exemplo, que a linha férrea passava por aqui. Aqui perto da minha casa. É como se ela própria fosse o comboio à vapor puxando em tempos de história e cumplicidades e amizades desinteressadas, longas carruagens repletas de gente em feliz algazarra. Rebusca passados esquecidos e transforma-os em fonte de água nos dias de canícula. Desdenha as muletas e o andarilho, mesmo sabendo que aquelas pernas precisam de ajuda.
Sumbi Mahenhane é a lembrança das frenéticas execuções de zorre, em noites vertiginosas nos subúrbios da cidade de Inhambane. Era a raínha sobre quem tudo gravitava, incluindo o batuque tocado por Mafanele, o “King”. Sumbi puxava os instrumentistas para o ritmo do seu corpo, desenhado pela Mão do próprio Deus para enlouquecer. E quando ela não estivesse nesse dia, as estrelas do Céu recusavam-se a brilhar. A lua também.
Hoje ficaram as palavras que lhe ressurgem da boca e do espírito. São elas – as palavras – que dançam debaixo do rufar imaginário dos tambores que outrora eram os fundamentos da vida desta mulher. Só a dança lhe dá o sentido da existência. O sonho só pode prevalecer com o som do ritmo. Nada é mais importante, senão a dança. E o amor. É por isso que continua a dançar, agora com as palavras. Retumbantes.
O que mais impressiona em Sumbi Mahenhane é a inabalável vontade de viver. Ela fala com esperança, como se o corpo esperasse nova oportunidade de pisar os palcos e balançar em liberdade. Espanta a memória deste pássaro. Ela lembra-se de todas as noites em que a luz era o seu corpo. E na verdade, Sumbi era o encanto da própria vida. Ou seja, o óleo derramado em Arone, desde a ponta dos cabelos até à ponta dos pés, foi inoculado também sobre esta mulher que brilhava em todo a esfinge. E agora reluz em toda a alma que ainda mora neste corpo em derrocada.
O que move Sumbi Mahenhane não é o presente, mas o passado de glória. Passado do qual nunca recebeu medalhas. Nada! Ela nem sabe o que é isso. Bastam-lhe os ecos da alegria que dava ao povo. As galardões são as pessoas do vulgo, algumas das quais ainda demandam a sua casa para falar desse passado. Com a mesma verve com que o corpo se entregava à dança. É essa presença humana que a faz acreditar no futuro.
Completou noventa anos no dia 15 de Junho passado. Festejou com a família e amigos, num ambiente em que não faltaram batucadas leves, para celebrar o passado de alguém que continua a falar com alegria. Com esperança.
Parabéns, Sumbi Mahenhane!