Acossado pelas inéditas manifestações contra os resultados das eleições gerais de 09 de Outubro e protestos dos partidos políticos, o Conselho Constitucional (CC) opta por se apegar ao legalismo, à letra das normas e às competências estritas do órgão, olvidando eixos essenciais à legitimidade democrática, como transparência e confiança das decisões sobre processos eleitorais.
No encontro, quarta-feira, com o partido Povo Optimista para o Desenvolvimento de Moçambique (Podemos), a força política mais inconformada com o processo eleitoral, a presidente do CC, Lúcia Ribeiro, repisou que o órgão não recebeu nenhum recurso contencioso contra as eleições presidenciais.
Ribeiro respondia à contestação do candidato presidencial Venâncio Mondlane, o mentor dos acirrados protestos que têm flagelado o país, desde o dia 21 de Outubro. “É útil esclarecer que o Conselho Constitucional não recebeu nenhum processo de contencioso das candidaturas do Presidente da República. Quero eu dizer que, por parte dos mandatários, dos candidatos à Presidência da República, nós não recebemos, na fase do contencioso, qualquer recurso nesta eleição”, afirmou a presidente do CC, durante um encontro com membros do Podemos.
Esta posição suscitou de imediato acalorados debates entre juristas, com uns a considerarem que a contestação, através de recurso contencioso, dos resultados anunciados pela CNE implica a análise simultânea dos resultados dos aspectos controvertidos das três eleições realizadas no dia 09 de Outubro: presidenciais, legislativas e províncias.
As “nuances” dos três escrutínios estão todas condensadas na acta e edital do apuramento geral da CNE e a contestação deste documento acarreta a verificação da conformidade daqueles pleitos, defendem alguns juristas. O documento alvo de recurso é apenas um e agrega todos os actos do sufrágio universal, sendo que o recurso contencioso sobre o texto único visa todas as incidências do pleito.
Transparência e prestação de contas
Uma outra nota do legalismo arreigado de Lúcia Ribeiro está na tese de que é inviável permitir a presença de observadores nos trabalhos no CC, porque se trata de um tribunal e não de uma entidade de natureza política, como a CNE.
Juristas renomados já sustentaram que a legitimidade democrática dos vencedores das eleições também depende da transparência e publicidade que possam ser asseguradas ao escrutínio das decisões sobre os pleitos.
A melhorar forma de corroborar o princípio de que os tribunais julgam em nome do povo é permitir a abertura das suas sessões, o que, em processos eleitorais, sobretudo controversas como as últimas, tem a sua expressão máxima com a presença de observadores eleitorais.
Para desanuviar a carga de suspeição quanto à matriz do CC, Lúcia Ribeiro repisou, no encontro com o Podemos, que os juízes conselheiros devem submissão à lei e não a quem os nomeou ou elegeu. “Temos o dever de ingratidão em relação a quem nos designou”, salientou, com recurso a uma máxima jurídica e, de certa forma, irónica.
Enfatizou que os juízes conselheiros são indirectamente indicados pelo povo, pois são designados pela Assembleia da República, Presidente da República – no caso do presidente do órgão – e pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial, que aponta um dos magistrados do CC.
O chefe de Estado e os deputados do parlamento são directamente eleitos pelo povo e “emprestam” esta legitimidade, quando designam os juízes-conselheiros, assinalou.
Apesar de ressalvar que o órgão que dirige não recebeu nenhum recurso contencioso, Lúcia Ribeiro assegurou que o expediente de todo o processo eleitoral será verificado “minuciosamente”, para assegurar a “verdade eleitoral”.
“Não é porque não tivemos nenhum processo nas candidaturas a Presidente que não estamos a ver. Nós estamos a ver. Isto consiste precisamente na comparação da acta e edital da Comissão Nacional de Eleições com a acta e edital dos partidos políticos. Este é um processo minucioso”, salientou, admitindo que não se trata de um “trabalho fácil”.
As ''lições'' de direito eleitoral da Dra. Lúcia Ribeiro
Depois de tamanha façanha diante dos membros do contestatário Podemos, a Presidente do Conselho Constitucional voltou a dar explicações, numa espécie de ''aulas-extras'' a alunos cheios de dúvidas e dificuldades, fora do currículo e do calendário académico.
No encontro na quinta-feira com o líder da Renamo, Ossufo Momade, Lúcia Ribeiro garantiu que o CC vai analisar “as discrepâncias” nos resultados das eleições gerais, mas que não está a fazer recontagem dos votos. “Dizer que o CC não está a fazer a recontagem de votos”, afirmou Ribeiro, justificando a decisão com o facto de a própria CNE ter admitido, quando anunciou os resultados do apuramento geral, “discrepâncias entre as três eleições, mas que não tinha tido tempo para verificar”.
“Então, o CC, sendo um órgão jurisdicional, não pode vir dar essa mesma resposta. Mas fica uma curiosidade e uma responsabilidade e um dever de perceber por que razão é que há discrepância e onde é que existem essas discrepâncias. A partir de onde é que começou a existir essa discrepância”, declarou.
“Nós pensamos que cabia a nós mesmo verificar qual era o problema e onde está esse problema. Notificámos à CNE para nos explicar por que razão tinha havido as discrepâncias e essa resposta consta do processo, que será depois avaliada na próxima semana, quando nos sentarmos, já para avaliarmos os números”, avançou Lúcia Ribeiro.
Acrescentou que neste momento, mais de dois meses após as eleições, o CC está na fase da digitalização, com uma equipa que envolve 57 pessoas, incluindo sete juízes e técnicos. “Nós vamos pegar nos nossos números, comparar com os números da CNE, comparar com os editais de centralização, editais de apuramento distrital, que é para perceber onde é que houve o tal dito enchimento [de boletins de voto]. E daí formarmos a nossa convicção e poder decidir. Foi por isso que o CC decidiu chamar a si esta responsabilidade de fazer a verificação”, sublinhou.
Lúcia Ribeiro justificou que o processo eleitoral moçambicano implica primeiro a validação e só depois a proclamação dos resultados, conforme legislação aprovada pelo parlamento, contrariamente ao que acontece noutros países, que proclamam os vencedores do escrutínio com prazos substancialmente mais curtos e que só depois decidem o eventual contencioso, sendo em Moçambique o CC o último órgão de decisão.
Prazo de validação imposta pelo CRM
Pronunciando-se sobre um ponto que também constitui o “busílis da questão” no processo eleitoral moçambicano – o tema dos prazos impostos ao CC para a validação e proclamação - Lúcia Ribeiro remeteu ao número 2 do artigo 184 da Constituição da República de Moçambique (CRM), que estabelece que a Assembleia da República toma posse 20 dias depois da validação e proclamação dos resultados eleitorais.
Esse cenário empurra o anúncio dos resultados para o próximo dia 23 de Dezembro, prosseguiu. Mesmo que o trabalho de reverificação dos resultados tivesse sido concluído, o CC está impedido de anunciar os resultados antes da referida data, tendo em conta essa condicionante constitucional, assinala.
Albino Forquilha: ''Não sei
se haverá verdade eleitoral''
Para o presidente do partido Podemos, a explicação do CC deixa dúvidas sobre a transparência do processo, destacando que o partido que dirige submeteu diversos documentos que revelam falta de transparência nas eleições gerais, incluindo as presidenciais. “Até aqui não tenho segurança que vai haver uma verdade eleitoral […]. O processo que submetemos incorpora a eleição presidencial”, afirmou Albino Forquilha, em declarações à comunicação social no final da reunião com Lúcia Ribeiro. (Carta da Semana)