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segunda-feira, 22 abril 2019 09:08

O fim da noite

Não precisamos de despejar – do camião basculante que somos - sobre a cabeça deles, o graniso das nossas dores acumuladas. Bastam as palavras buriladas nas canções que ainda vamos cantar. Não precisamos irmãos, de acender os pneus da nossa revolta nas ruas construídas com o sangue dos nossos antepassados e com o nosso sangue também. Nem de lançar o fogo sobre as viaturas espampanantes  que eles compraram com as feridas da nossa fome. Nada! Vamos deitar as lanças ao chão e preparar os nossos corpos para a dança porque a noite está a chegar ao fim. Está a amanhecer.

 

Somos o feixe da lenha cortada nas matas sugadas pela cobiça sem fim. Ninguém nos quebrará. À um feixe não se quebra. Somos a avalancha que está a vir e eles estão com medo. Tremem nos poros da insensatez. Estão constantemente a mergulhar as pálpebras do coração frio no vinho tinto alagado de sangue. Estão de alaia numa vigilância vã, porque a casa deles não tem a guarda da razão. Mas o maior medo que lhes habita é das canções que ainda vamos cantar nas praças, agradecendo o raiar do Sol que terá chegado para todos.

 

A melodia das canções compostas nas nossas frustrações, e a força premonitória que elas irão transportar, vai-lhes penetrar como lâminas implacáveis, cortando-lhes aos pedaços o coração que nunca tiveram. Muitos deles fugirão daqui para lugares onde jamais encontarão a paz. Outros ficarão escondidos em buracos reais e imaginários. Temerão as suas próprias sombras e chegarão ao ponto de não saber se estão vivos ou se estão mortos. Outros ainda optarão pelo suicídio. Mas tudo isso será o claro sinal de que a noite para nós terá chegado ao fim.

 

Nós não somos a albufeira. Somos o rio em si que vibra, lançando para as margens toda a escória. Hevemos de oferecer flores aos pombos nesse dia que está perto, e a melancolia da rolas, nesse mesmo dia, vai ressurgir retumbante nas nossas vozes. Cantaremos canções antigas do Machongueze, que usava o seu pànkwè para dar vazão aos sentimentos. Profundos. Entretanto calcinados pela megalomania deles. Cantaremos, irmãos, nesse dia que está perto, a música de Salvador Maurício, “Os ratos roeram tudo/Amor acabou/Tristeza ficou/A vida caíu na miséria”.

 

As praças estão à nossa espera para nos acolher no testemunho das estátuas. Onde acamparemos dias e dias cantando em homenagem ao amanhecer. Ao fim da noite. Estaremos lá sem armas porque a violência não faz parte da nossa formação. As nossas armas são as palavras interrompidas pelas balas e pelas marretas e pelas poções de veneno. São essas palavras feitas canções que levaremos às praças nesse dia que está perto.

 

Jubilaremos como  David, engrandecido pela sua humildade. Somos o rastilho da paz, aceso para explodir na dinamite do amor. Somos a catarata das águas que beberemos daqui a pouco nesta  longa espera. Nesta longa luta das mentes onde passamos a vida toda na penumbra. Fazendo corte aos abastados sentados por sobre os lombos da nossa desgraça. Mas essa longa noite está chegando ao fim, irmãos. Está a amanhecer.  

domingo, 21 abril 2019 08:55

Um rapaz tranquilo

O meu livro teve o seu lançamento na passada 2a feira, no auditório do BCI, com a sala preenchida com imensos amigos, os grisalhos ganharam por larga maioria. Senti-me feliz com a presença dos meus companheiros da Associação Académica, dos grandes escritores Luís Bernardo Honwana e João Paulo Borges Coelho, de personalidades por quem tenho enorme respeito (Rui Baltazar, Magid Osman, Hélder Martins, José Norberto Carrilho), de colegas e, sobretudo, de tanta gente amiga da minha geração. Foi uma cerimónia simpática, com bonitos discursos de José Furtado, em representação do BCI, de Nelson Saúte, o meu editor, de Calane da Silva, que fez uma generosa apresentação do livro (discursos em anexo).

 

José Furtado foi pródigo em dar-me títulos elogiosos (professor, director, bastonário, especialista), até falou do surgimento de um romancista (lamento desiludi-lo). E confessou não ter resistido a pugnar por um final feliz para aquela empolgante história de amor. Estamos de acordo, sou sempre pelo final feliz, como nos bons tempos de Hollywood (a história de amor tem um final feliz; mas a história maior?).

 

O Nelson fez uma confissão diferente: No início de 2018, o Álvaro perguntou-me se eu poderia ler o livro dele. Confesso que fiquei sobressaltado. Para além de o ler, ele quereria que eu o editasse. Quando criei a Marimbique, há mais de 15 anos, perseguiu-me um objectivo simples: publicar os livros de que gostasse. Ora, quando um amigo, que se estreia, nos entrega um original, coloca-nos perante um embaraço: e se o livro for mau? Como se diz a um amigo que o livro que nos confia não merece o nosso entusiasmo? Felizmente para mim, o Nelson achou que o livro passava, foi a minha sorte porque é um magnífico editor, à moda dos bons editores ingleses. Ele falou, a dado ponto das infindáveis correcções do autor, que me lembrou um poeta célebre que se transformava num terror para os editores pois que, sempre que tinha provas para rever, devolvia-as num livro praticamente novo. O Nelson não sabia que o meu nome do meio é Picuínhas.

 

No seu discurso, disse coisas que para mim também são muito importantes:

 

A escola, a universidade e os meios de comunicação deixaram de ser lugares e circunstâncias de promoção do gosto pela leitura. Existem gerações inteiras que fazem cursos universitários sem terem lido ou praticado o hábito da leitura de livros, de todo o género de livros. Leram fotocópias, escarrapacharam os artigos que viram na Internet e que copiam para as suas dissertações enganosas. … Vejo com dramatismo esta situação. Que futuro se pode haurir de um país que se afunda na ignorância e na incultura?

 

O Calane também fez muitos elogios na sua cuidada e pormenorizada análise de “Um Rapaz Tranquilo”, considerando-o simultaneamente como um diário memorialista, um romance e um texto epistolar, saudando-me pela coragem na abordagem deste tema de pluralidades ideológicas e identitárias, de memória, de retrato e análise de bons e maus momentos por que passou o país e suas gentes no antes e no depois da conquista da independência, um tema tratado com minúcia e sem rodeios.

 

Eu fui o último a falar, numa intervenção sem gravata. Contei do porquê do livro, fiz os agradecimentos devidos – não por serem da praxe mas porque eram sentidos – e disse umas piadas sem muita graça. Também assinei autógrafos. E o meu estimado Notícias publicou uma extensa reportagem sobre o lançamento, graças ao Leonel Matusse.

 

Apesar do cuidado posto na revisão, o livro ainda tem erros, já tem uma errata. Agradeço que me vão informando do que forem descobrindo ao longo das vossas leituras.

 

E pronto, o capítulo literário da minha vida está encerrado, não vos maço mais com “Um Rapaz Tranquilo” e as minhas memórias imaginadas.

 

 

Acabo de ler outro texto do “estratega comunicacional” Egídio Vaz (como ele se auto-percebe), desta vez onde eu é que sou o título. No novo texto, publicado também no jornal electrónico Carta de Moçambique, no dia 17 de Abril, ele não só não rebate os pontos levantados na minha crítica ao seu primeiro texto (nomeadamente leitura incompetente, citação desonesta e transposição pervertida à realidade moçambicana de uma obra antiga de Stanley Cohen) como também faz um caricato exercício jocoso de auto-celebração (com direito até a exibição curricular) e de jocosa adjectivação da minha pessoa. Aliás, nesta última parte o título do novo texto do Egídio Vaz fala por si mesmo: “Edgar Barroso, pombo-correio da desinformação e maleficência”. Não me ri. Fiquei seriamente preocupado.

 

Não vou insultá-lo como ele mesmo o fez comigo num texto prenhe de ódio e ameaças a minha integridade física, publicado e apagado horas depois de ser copiosamente enxovalhado pelos seus leitores. Não vou responder à vil tentativa de desvio do objecto em debate, quando o Egídio Vaz investe a sua (des)orientação no assassínio do meu carácter e não nos pontos por mim levantados no primeiro texto. Também não vou repetir neste texto os testemunhos sombrios que fui recebendo, em privado e de muitos dos seus mais chegados amigos e colegas (após lerem a sua infame reacção primeira ao meu texto), sobre algumas das nuances mais tenebrosas da sua conduta profissional, familiar e pessoal passada e recente. Um deles trabalhou com a sua esposa e outro ajudou-lhe a abrir a banca onde vende consultas ao poder do dia. Como já disse, não vou recorrer ao que teria sido mais fácil (e que tem sido o argumento mais forte do Egídio Vaz, deveras saliente no texto que acima fiz alusão) porque, além de ser desumano e descortês, é vil e contraproducente. Antes, aproveito a oportunidade para agradecer ao Egídio Vaz pela ousadia, arrancada a muito custo pela própria opinião pública que o segue, de me ter pedido desculpas pela reacção malcriada que o meu primeiro texto provocou no seu insuflável temperamento.

 

Por conseguinte, direi neste texto apenas quatro coisas.

 

Coisa número 1

 

Como dizia anteriormente, não me ri com o novo texto do Egídio Vaz onde eu é que sou o título. Fiquei seriamente preocupado. Não é necessariamente por causa da conotação delirante que uma expressão como a de “pombo-correio da desinformação”, quando emitida por um académico (?) da dimensão do Egídio Vaz e litigiosamente divorciada da exigida fundamentação, pode ter para os amigos (e para os cientistas) da razão. Efectivamente, não é só uma questão de insanidade mas também de rigor comunicacional. Seria metodologicamente apropriado apresentar e fundamentar a tese segundo a qual há desinformação na recensão crítica que fiz à associação de equívocos interpretativos que o Egídio Vaz fez ao citar (mal) as ideias de Stanley Cohen. O exercício intelectual mais básico aqui seria o de trazer evidências. Desafio lançado.

 

Prosseguindo, fiquei preocupado também com a competência linguística de um académico (?) internacionalmente consagrado como o Egídio Vaz pomposamente dá a entender que é, no seu texto, ao me chamar também de pombo-correio da “maleficência”. Ora, até num dicionário de bolso podem ser encontrados alguns sinónimos básicos da palavra “maleficência”: iniquidade, crueldade… Ainda estou por perceber, prezado Egídio Vaz, que iniquidade ou crueldade está a declarar que eu possuo, ao apelar para que te reconcilies com o rigor científico. Em que grau, número e medida, denunciar a torpeza de um exercício fraudulento de retalhar frases de dono, de forma desfasada e descontextualizada, para tentar legitimar discursos ideológicos contra pessoas, organizações da sociedade civil e media independentes, é um exercício maléfico, um acto de iniquidade? Responda-me objectivamente.

 

Coisa número 2

 

Vi, no texto que o Egídio Vaz escreveu com o meu nome como título, recorrentes referências ao carácter prolífico da sua carreira académica e à excepcional qualidade da sua intelectualidade. Congratulo-o por ser o primeiro moçambicano apenas com o grau de licenciatura nessa condição (não que não se possa ser intelectual sem se possuir um grau universitário ou detendo apenas o grau de licenciado, mas por ser o primeiro entre a classe dos académicos que faz disso algo pomposo e especial). Parabenizo-o também pela ousadia em ter chamado aos outros com o mesmo ou superior grau de licenciatura que o seu de “meros licenciados, mestres e doutores” (este auto-elogio pode ser encontrado no quarto parágrafo do texto do Egídio Vaz dirigido a mim). Reclamar só para si mesmo a qualidade de académico e de intelectual, de modo tão apaixonado e num universo tão diverso de oferta como o moçambicano, é obra.

 

Coisa número 3

 

O advento das novas tecnologias de informação e de comunicação (TIC´s) tem feito surgir em Moçambique, no século XXI, uma nova gama de intelectuais. Os intelectuais populares. Estes pop-intelectuais, de quem se contam com os dedos de uma só mão os livros completos que já puderam ler na vida, projectam-se para a fama através das TIC´s com uma série de textos controversos e de aparições mediáticas consumidas massivamente por um público sem muitas opções de leitura ou de informação alternativa e de qualidade. Muitos deles nunca escreveram, sozinhos, um livro sequer da sua exclusiva autoria (e nem precisaria de ser uma obra científica). Ignorantes dos limites da sua própria condição, naturalmente não percebem a diferença entre um mero gerador de opinião e um intelectual a sério.

 

No caso do Egídio Vaz, por exemplo, uma coisa é trabalhar a cheques para a indústria da comunicação e consultorias derivadas, outra é a de contribuir tangível e decisivamente para o progresso da sociedade em que ele se encontra inserido. Uma coisa é emitir opinião (o que ele faz muito bem, pese embora de forma altamente enviesada e ideológica) e outra é a capacidade de influenciar a sociedade. Aliás, desafio o Egídio Vaz a apresentar apenas uma ideia sua que tenha transformado Moçambique. É que o feedback diário dos seus leitores, ouvintes ou telespectadores dá um panorama aterrador da dimensão da fraude intelectual que insiste em residir indefinidamente no homem.  Igualmente, coloco-me à disposição para trabalhar com um bom estudante de ciências da linguagem, da comunicação ou mesmo das ciências sociais, como seu supervisor na elaboração de uma monografia ou dissertação de fim de curso usando o método de análise de discurso na sucessão de disparates que todos os dias sai para o mundo com a assinatura do Egídio Vaz.

 

Coisa número 4

 

A reacção emocional do Egídio Vaz ao meu primeiro texto reforçou ainda mais a minha convicção em relação à confusão que os pop-intelectuais (como ele) fazem sobre a academia. Um académico, por defeito, deve ter um vínculo permanente com uma instituição superior de ensino e/ou pesquisa, onde descobre ideias (e não simplesmente copia, compila e divulga as ideias de outros autores) e as coloca ao serviço da sociedade. Distingue-se pela qualidade das pesquisas feitas na área da sua especialização, pela qualidade de ensino oferecida aos seus estudantes e pela qualidade das suas actividades de extensão universitária. Egídio Vaz não tem nenhum indicador objectivo em qualquer um destes elementos, para pelo menos ser elegível à categoria de académico. Desengane-se ele se ingenuamente pensa que, na academia, as ideias são respeitadas em função do seu valor de mercado. Ou pelo número de trabalhos propagandísticos postados em redes sociais ou disseminados na imprensa.

 

Na academia, prezado Egídio Vaz, o fruto do trabalho intelectual não mantem uma relação de amantismo com a gordura da folha de salário ao teu dispor durante a governação do presidente Nyusi. Viver a academia é um compromisso inequívoco, imparcial e objectivo com a verdade, os factos e a ciência. Quem vende ideias ao poder vigente, como tu o fazes, não é e nem tem como ser um académico. É apenas um comerciante, como qualquer vendedor de recargas de telemóvel na rua.

 

Esta é a minha última intervenção sobre este assunto.

O título não é originalmente meu. É do economista e psicólogo americano, Herbert A. Simon, um dos primeiros académicos a descrever com precisão a relação entre informação e atenção.

Todos os dias – e já não é novidade dizer isso, somos inundados com informações. Do controle remoto à pesquisa do Google; do Twitter ao Facebook; dos jornais eletrónicos ao aplicativos variados; do WhatsApp ao Instagram, é tudo uma miríade de informação que circula à velocidade estonteante, potenciadas pela internet.

 

Na economia de informação em que nos encontramos, somos ou compradores ou vendedores de informação, ou mesmo as duas coisas, ou, na pior das hipóteses, recetores ou difusores da mesma. Fazemos isso de graça, à custo próprio.

 

Num artigo publicado em 1997, Simon já notava naquela altura de que “... a informação consome a atenção dos seus destinatários. Assim, quanto maior for a informação recebida, menor é a atenção prestada”. O que o autor queria dizer era que para que a informação fosse decifrável e compreensível, é preciso que os indivíduos dediquem tempo e atenção para decifrá-la e compreendê-la.

 

Simon, prossegue, “atenção é a ferramenta psicológica que usamos para descartar informações irrelevantes, de modo a que possamos nos concentrar no que é importante para nós. À medida que os nossos recetores não param de receber informação diversa e de forma intrusiva, a nossa atenção se torna cada vez mais tensa e desafiada” [cf: Simon, H. A. (1971) "Designing Organizations for an Information-Rich World" in: Martin Greenberger, Computers, Communication, and the Public Interest, Baltimore. MD: The Johns Hopkins Press. pp. 40–41].

 

A atenção é um poderoso ativo em todos os relacionamentos que deve ser gerida com atenção acrescida.  Devemos aplicar alguma disciplina a forma como gerimos a informação ou enfrentar o risco de ter nossa atenção e nossos relacionamentos, sequestrados pela força de maus hábitos.

quinta-feira, 18 abril 2019 09:47

Hoje tenho vergonha de cantar Tiende Pamodzi

Por debaixo dos meus pés a terra treme. Perdi o equilíbrio. A memória. Já não sei se na verdade é a terra que treme ou sou eu. Inteiro. Salimo Mohamed já cantava no seu subtil “Xantima i bodhlela” implorando-me que fumasse com os meus inimigos, que afinal são meus irmãos, o cachimbo da paz, e eu não quis ouvir. Fechei os olhos para não ver o sangue que pisava com os meus pés. Esqueci-me das lianas que acariciavam meu rosto nas matas da epopeia. Na longa noite habitada pelas hienas visíveis. Pelos grilos e mochos e morcegos. Esqueci-me de tudo isso. Das minhas mãos sangrando na luta pela remoção dos espinhos.

 

Hoje eu estou aqui. As minhas mãos já não sangram, é verdade! Mas estou vazio por dentro. Sangro na espinha. Na medula. No meu horizonte o crepúsculo do amanhecer  transformou-se. Degenerou. Feneceu para dentro de mim onde sou arrasado diariamente pelas verrumas de aço. Tudo à minha volta é um sismo. É como se Eusébio Johane Ntamele estivesse a cantar ao vivo na minha estrada cortada, Khmbo la mina mamana, va ranga hi mbilu va lhomula (que azar o meu, mãe, primeiro arrancaram-me o coração).

 

Lembro-me que nas matas da longa caminhada eu repetia Louis Armstrong,  What a wonderful world, gravado em 1967, cinco anos depois de fundarmos a FRELIMO. Cantava enquanto descansava tendo como travesseiro a metralhadadora em segunda mão enviada da histórica União Soviética. Eu também sonhava com um mundo maravilhoso como o grande Louis.  Do meu cano saíam flores também. Buganvílias.  Mas tudo isso esbateu-se na minha mudança de rumo. Perdi os sentimentos. Perdi o amor da juventude quando o que me movia era a utopia em si.

 

Hoje tenho vergonha de cantar Walimba moya, composta nas conservatórias espalhadas em lugares como Ntchinga, onde todos nos uniamos. Já não sou digno de abrir minha boca e libertar os versos ornamentados com sangue dos meus compatriotas. Toda a caminhada que fiz nas noites sem fim, atravessando rios e subindo montes e montanhas, levantando alto o meu braço nos gritos de guerra do tipo A Luta Continua, esvaziaram-se. Começa-me a doer a ferida que eu próprio plantei nas minhas palavras. Isto é o uma úlcera resultante das repetidas violações que fui cometendo.

 

Ontem sublevei-me contra o colono, e hoje o colono sou eu, cercado porém pelo povo que já não está do meu lado. Sinto que a loucura pode ser a minha próxima etapa. O meu fim. Estou por de cima da calçada onde sou achincalhado por todos. Não posso cair nem para um lado, nem para o outro. Rompi todos os tratados com o meu povo, e o que me resta é só um gemido.  Destruí-me com  o ouro amealhado nas noites, e hoje já nenhum unguento serve para me abafar a dor. Nenhum analgésico.

 

Sei! Eu é que não quis escutar a enxurrada das canções cantadas pelos pássaros nas manhãs, apelando-me ao amor. À concórdia. À tolerância. À honestidade. E hoje estou aqui, cercado pela noite.

Li no jornal a Carta um longo texto da autoria de um tal Edgar Barroso, tentando desmontar um texto meu intitulado Reflexão em torno do atual Pânico moral no qual, a partir do conceito cunhado pelo sociólogo sul-africano Stanley Cohen, tento transpor à situação e ao atual humor social. Não irei repetir a descrição, dado pode ser acedido a partir do seguinte endereço: http://bit.ly/2Xi3fVB