Setembro tipifica os virginianos marcados pela objectividade e organização. Os que, de forma incessante, revisitam a perfeição. Este tem sido o apanágio no mês de todos os recomeços. Coincidentemente, o mês em que líderes das lutas de libertação nas colónias portuguesas, em África, viram a luz do mundo. Samora Machel de Moçambique, Agostinho Neto de Angola, e Amílcar Cabral da Guiné-Bissau. A estes virginianos, se junta o filósofo e educador Paulo Freire, brasileiro, porém, com um coração e uma intelectualidade espalhada pelos países, falsamente assumidos, como falantes da língua portuguesa.
Paulo Freire, o pedagogo brasileiro, e que se revestiu de utopias para a revolução anticolonial, envolveu-se, de forma profunda, no processo de descolonização das colónias portuguesas, estudando profundamente a gestação desses movimentos de libertação e, mais importante, teorizando sobre esses processos políticos e pedagógicos que se estabeleceram na década 60 e 70.
Paulo Freire capitalizou a experiência de ter convivido com os povos da Guiné-Bissau; por um lado, por ter estudado todas as obras de Amílcar Cabral e, por outro lado, por ter tido contacto directo ou indirecto com outros revolucionários da época. Existem algumas evidências de sua passagem por Moçambique e, em particular, por ter lido e abordado o posicionamento humanista de Eduardo Mondlane e, igualmente, desfrutado da visão política, acção militar do MPLA e desse romantismo poético de Agostinho Neto.
Ainda neste emaranhado de coincidências, não nos equivocamos sobre a forma como estas lideranças, incluindo o próprio Paulo Freire, inspiraram-se e foram influenciadas por Frantz Fanon, o psiquiatra, filósofo e militante anticolonial da ilha Martinica; autor das obras “Os Condenados da Terra” (1961) e “Pele Negra, Máscaras Brancas” (1952), e que marcou gerações de activistas de direitos civis.
Fanon foi crítico do momento histórico colonial, dos processos de alienação e da presença colonial nos países africanos. Adoptou o título de alienação e liberdade ou patologias da liberdade, para se referir a inevitável necessidade da libertação de África. Essa seria a única forma de afirmação das identidades e dos ideias da emancipação. Verdade que Fanon era radical. Aliás, como se transformaram em radicais os movimentos negros fora do continente africano. Fanon estava seguro das formas impostas pelo colonialismo, as suas subjectividades e como usaria o conhecimento, e a própria cultura, como elementos que perpetuariam a presença colonial e criariam divisões entre a sociedade africana. Para ele esta actuação subjectiva conduziria, inclusivamente, a perpetuação desse colonialismo muito para além das independências, se a leitura correcta não fosse dimensionada.
Paulo Freire, embebido de uma postura mais latina, enraizado na vivência brasileira, incorporou inúmeras destas reflexões de Fanon e, sobretudo, dos movimentos da negritude, que começaram por surgir nas Antilhas, no próprio Brasil e nos EUA, fundamentalmente. O movimento da negritude permitia a revalorização da herança ancestral africana e contribua para que o negro tivesse uma auto-imagem positiva de si próprio, para além de propiciar maior visibilidade as suas acções e teorias.
Paulo Freire explora este momento e as experiências de sua interacção com os líderes africanos e retracta de forma inspiradora, nas suas principais obras, nomeadamente, “Educação como prática da Liberdade” (1967), e “Pedagogia do Oprimido” (1968). Convenhamos que Paulo Freire poderia ser indexado como um pan-africanista que ressurgia desse sentimento de solidariedade e consciência de uma origem comum entre os negros do Caribe e dos Estados Unidos e que lutavam contra a violenta segregação racial.
No seu livro “Pedagogia do Oprimido”, que é considerado como o terceiro livro mais citado em publicações académicas de ciências sociais no mundo, Freire revela, de forma inequívoca, o seu entendimento profundo sobre a objectividade e subjectividade desse movimento protonacionalista ou nacionalista, alicerçado na educação como factor dinamizador, assente na cultura como o alicerce que dinamizaria e engendraria uma nova fórmula de revolução, de libertação do povo e de transformação dos países africanos.
Nesta condição, e concomitantemente, Paulo Freire transformou-se, ele próprio, no grande teórico das experiências educativas das regiões libertadas da guerra colonial e modernizou, inclusivamente, a sua estrutura conceptual. Esta é a maior contribuição que, eventualmente, deu aos movimentos de libertação. Portanto, na sua interpretação, os processos de libertação e emancipação dos povos e países africanos, estes não passariam apenas pela via de acção e combate armado, mas, e sobretudo, por uma visão sobre a educação e cultura como imperativos e elementos indissociáveis.
Paulo Freire advogava, na sua teorização, uma educação que libertasse corações e mentes, e que colocasse aquele que aprende como sujeito produtor do próprio conhecimento, contrariando métodos mais retrógrados e que induziam, apenas, a repetição infinita de enunciados. Parece ponto assente que colocar o educando no centro do próprio ensino configurava a práxis que respaldava os programas de alfabetização dos guerreiros e dos jovens recrutados ou que aderiam a luta. Eventualmente, pelas teorias de Freire, estas práticas educativas e revolucionárias se converteram na base dos programas de alfabetização de adultos, quer no Brasil, como nos nossos países que adoptaram Freire como um orientador educacional de excelência.
Neste centenário, revemos a relação que Paulo Freire estabeleceu com Amílcar Cabral. Esse líder marxista e que, de acordo com Freire, fizera uma leitura africanizada de Marx, para arquitectar a dimensão e visão da luta de libertação anticolonial que conduzia. Ambos defendiam que não existia ninguém mais culto do que o outro, pois, as culturas eram paralelas, distintas e que se complementavam na vida social e cultural.
Nos nexos estabelecidos entre os dois pedagogos e libertadores, destacamos a avaliação negativa que acreditavam estar patente nos modelos e práticas coloniais de educação, porque o povo não deveria apenas compreender, abstractamente, a interacção das forças por detrás do desenvolvimento da sociedade, mas, antes, deveria formar uma pátria anticolonial, colocando a resistência numa espécie de expressão cultural.
Cultura em Cabral, Freire até em Fanon era, então, um denominador comum e dos mais importantes, quer na luta como na formação dos guerreiros. Seria impossível combater a presença colonial, renegando os valores culturais e não permitindo a aculturação das práticas sociais existentes.
Esta interacção e trajectória de Paulo Freire, junto dos líderes revolucionários africanos, ficará eternamente associada ao desenvolvimento teórico dos programas de educação nos nossos países. Deste modo, celebrar o seu centenário equivale a ressignificar a educação no século XXI, mesmo considerando as vicissitudes e os graves problemas estruturais, equidade e de auto-estima. Recordá-lo, neste centenário, parece ser obrigatório, proporcional e muito apropriado. É, igualmente, oportuno recordar as lições mais importantes como a de que “o educador se eterniza em cada ser que educa” ou que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para a sua produção”.
Como defensor da descolonização e da reafirmação determinista e criativa, as teorias educativas de Freire continuam a fazer sentido, sobretudo, quando argumenta que deveremos formar para a autonomia. Eventualmente, esse é seu maior legado. Os nossos países vivem ancorados em métodos ortodoxos e pouco evolutivos. A educação continua refém da ausência de investimentos e os professores cada vez menos valorizados e sem auto-estima.
Nestes tempos que se esfacelam os fundamentos de perspectivas de novos pactos em favor de novos entendimentos, e diante da crise na educação, um novo contracto social mais equitativo e abrangente será um marco referencial fundamental para se virar a história da consolidação das nossas independências.
Freire, Machel, Neto e Cabral, como testemunhas de um tempo, ainda podem ser lidos como um libelo contra o esquecimento, alheamento insensível para os fundamentos da libertação e moralização da sociedade. Que neste seu centenário, tão envolto em controvérsia no seu próprio Brasil, Paulo Freire possa voltar a ser fonte de inspiração que auxilie na união de esforços, recursos e talentos para enfrentarmos a batalha por um lugar ao sol e no trilho do progresso e desenvolvimento. (X)
Olha, pessoal, em vez de estarmos aqui a gastarmos os nossos conhecimentos jurídicos e diplomáticos com debates do tipo "o gatuno soberano devia ser julgado cá" (quando, na realidade, temos consciência da carestia de tomates no nosso mercado judiciário), devíamos é sugerir que o governo envie uma equipa de alto nível à África do Sul para pedir humildemente o vídeo do circuito de vigilância do aeroporto internacional OR Thambo que mostra como os nossos vizinhos-cunhados prenderam aquele nosso brada. Portanto, a equipa receberia o filme num flash e voltaria à casa no mesmo dia. Isso seria muito mais valioso para nós como Estado.
Com esse filme (desculpa, mas eu acho que é um filme mesmo: é que estou a imaginar um polícia a dar um pontapé na cara de um ex-ministro e deputado numa sala de embarque cheio de gente). Dizia então, com esse filme, teríamos umas aulas gratuitas de como se emitem e como se cumprem mandados judiciais e como se prendem gatunos de colarinho branco. Aprenderíamos que ladrão é ladrão em qualquer lugar do mundo, seja ele gordo ou magro, claro ou escuro, alto ou baixo, velho ou jovem, rico ou pobre.
Aqui em casa estamos a precisar desse tipo de curta metragem para umas pequenas lições que mostram que ladrão pode-se prender em qualquer lugar: em casa do gajo, no restaurante, no bar, no aeroporto, na putaria, na padaria, na discô, no iate, na circular, na É-Ene-Um ou Quatro, em Tchumene, na "Somachild", na Costa do Sol, no Triunfo, na Munhava, em Namicopo, e por aí além. Seria uma solidariedade diplomática de louvar no âmbito das nossas boas relações.
Esse filme seria o hino da Pé-Gê-Ere para aprenderem que ladrão trata-se pelo próprio nome sem códigos. Teríamos também esse filme no currículo do curso de direito, da academia policial e do centro de formação jurídica e judiciária. O filme seria igualmente obrigatório nos treinos da UIR e da SERNIC. Seria também disponibilizada uma cópia para cada juiz. Talvez assim saberíamos, de uma vez por todas, que para prender gatuno precisamos apenas de cumprir a lei. Ter um mandado judicial e partir para a acção sem evasivas nem subterfúgios. Saberíamos que ao gatuno não se pergunta quando, onde e como quer ser preso... Que não se liga para gatuno para saber se gostaria de ir ao tribunal neste verão ou no inverno próximo.
Esse filme faz-nos muita falta aqui. Passaríamos na Tê-Vê-Eme umas tantas vezes por dia até que todos moçambicanos saibam que prender gatuno não custa nada: é só encontrar o gajo, dar-lhe uma rasteira, amarrar o gajo com arame, dar-lhe uma cotovelada, dar-lhe um remate no traseiro, o gajo cair na carroçaria do carro e bazar. Saberíamos que porrada é para gatuno, e não para o povo que reclama da subida do pão. De resto, temos de inculcar nas cabeças desses nossos irmãos que não se prende gatuno via Eme-Pesa nem via ordens superiores... Que não existe gatuno diplomático nem imune... E que lugar de gatuno é na "djela-hause".
- Co'licença!
Publicado em 02-01-2019
*Desde a primeira edição de Carta, em 22 de Novembro de 2018, o cronista Juma Aiuba impregnava nestas páginas o doce sabor da sua escrita. Sua morte abrupta foi um tremendo golpe. Para tentar manter sua voz viva, Carta decidiu reeditar semanalmente uma das suas crónicas. Seu perfume permanecerá vivo!
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No entanto, seu conteúdo não vincula a empresa.
O comandante do Ramo da Ordem e Segurança da Polícia da República de Moçambique, Paulo Chachine, fez notícia há dias a partir da Escola de Sargentos da Polícia “Tenente General Oswaldo Assahel Tazama”, em Metuchira, distrito de Nhamatanda, em Sofala.
Não foi por menos. Segundo dado a conhecer, o efectivo do Departamento da Polícia de Trânsito de Manica está “em capacitação” por trinta dias naquela instituição de formação. Presume-se que sejam todos os membros da Polícia de Trânsito da província de Manica. Quando se diz efectivo, está-se a dizer exactamente isso.
Até aqui tudo normal, pelo menos parece. Capacitação é um modus operandi de instituições sérias e que pretendem aprimorar cada vez mais o seu desempenho; de tempo a tempo, mandam os seus membros para refrescamento de memória.
No entanto, a “capacitação” ganha outro sentido quando ficamos a saber que ela decorre do facto de ao longo de todo o Corredor da Beira haver irregularidades diversas na actuação dos agentes no terreno, que vão desde extorsão a automobilistas, negociações de multas com os multados, recolha e apreensão de cartas de condução dos condutores e retenção de veículos sem justa causa, entre outras. Há poucas semanas camionistas de vários países da Região, incluindo do nosso, amotinaram-se na fronteira de Machipanda, protestando vigorosamente contra as más actuações dos polícias de Trânsito moçambicanos.
A Imprensa cita o comandante da Ordem e Segurança da PRM a dizer que aqueles agentes “Não estão a ser punidos. A presença dos agentes visa apenas a reciclagem. Há muitas reclamações sobre a forma como temos estado a agir e interpelar o cidadão ou motoristas. Temos que nos preparar para melhor realizarmos as nossas actividades.” E, como que a explicar melhor, acrescentou: “Não é novidade para ninguém que alguns agentes têm interpelado pessoas ou condutores e pedem uma Coca-Cola ou 50 e 100 meticais. Vamos fazer o esforço de mudarmos e melhorar a nossa qualidade e atitude.” Mais adiante, rematou: “Não se deve orgulhar quando andam com carteiras cheias de cartas de condução e sem saber porque levaram os documentos. Em caso de infracções devem apenas passar as multas e deixar o condutor seguir viagem com a sua habilitação.”
Custa a acreditar que estas palavras possam estar a sair da boca de um comandante! Puro comandante! Menos ainda de um comandante da Ordem e Segurança! Difícil ainda é acreditar que estamos dentro de uma corporação policial, uma instituição com o monopólio de garantir a lei, ordem, segurança e estabilidade do cidadão e do país!
Os polícias não são admitidos nas fileiras policiais porque estão aptos? Formados devidamente, bem treinados, bem preparados técnica e intelectualmente? Se não estão, então por quê estão lá? Se as suas actuações não decorrem de deficiente preparação, mas de incúria ou incapacidade, por que não os demite e manda para casa?
Mas, pelas declarações do comandante, está claro que estamos perante actos criminosos. Extorsão, expropriação de cartas de condução sem motivos aceitáveis, retenção de automobilistas por largo tempo são, sem ‘a’ nem ‘b’, actos de corrupção. Na qualidade de “comandante do Ramo de Ordem e Segurança”, Paulo Chachine devia punir exemplarmente estas atitudes e não apelar para que “A nossa actividade tem de estar em linha com o juramento e cumprindo as normas… É necessário pensar o que temos que fazer para melhorar a nossa imagem.”
Claro como a água: o Sr. Paulo Chachine não sabe quais são as funções de um comandante de Ordem e Segurança!
Pior ainda quando, falando na mesma cerimônia, que era de abertura oficial da tal “capacitação”, o “digníssimo” revela que há agentes da PT que fazem xitiques semanais de cinco mil meticais! Confesso que nunca tinha ouvido falar de tal façanha. Segundo ele próprio se questionou, se os tais agentes não são criadores de gado ou de frango, como é que se comprometem a tal exercício de fazer xitique semanal nesse montante? Revelou ainda que há outros tantos agentes que se fazem à rua sem estarem escalados, “à procura de caril”! “Onde se procura esse caril na via pública? É possível fazer-se xitique semanal de cinco mil meticais? E no fim de semana aparece o dinheiro e até dizem… trabalhei para o xitique!”
Incrivel! No lugar de procurar, encontrar e punir disciplinar e criminalmente esses polícias… só papo! Só reciclagem ou capacitação! Mas, não está sozinho o homem: o seu chefe, o comandante geral, é um dos grandes oradores que país tem, mas disciplinar os agentes prevaricadores nada! É uma escola.
O que está a fazer aquele senhor como Comandante do Ramo de Ordem e Segurança?
Tirem-no, por favor!
ME Mabunda
Sobre a ajuda militar do Ruanda a Moçambique já se disse muita coisa, entre elas de que ela é pura solidariedade e nada em troca. Já passam dois meses e este assunto – o de se saber quem paga ou quanto é que custa o apoio militar - amiúde é chamado à mesa o que demonstra alguma preocupação ou, no mínimo, que o argumento da solidariedade não cola ou convence.
Na recente aparição de Paul Kagame, presidente do Ruanda, como convidado de honra na celebração da passagem do 57º aniversário das Forças Armadas de Moçambique, o assunto veio à tona na conferência de imprensa dada pelos dois estadistas. E mais uma vez a resposta foi a de sempre: é de borla!
Pelo facto de este assunto estar a merecer uma acirrada insistência é recomendável que kagame apresente uma factura - mesmo que ela não seja para ser paga -, pois assiste aos moçambicanos o direito de saber o custo da intervenção. Até porque tal configuraria uma outra ajuda do Ruanda a Moçambique, mormente a do país poder aprender, uma vez por todas, sobre as consequências do desinvestimento nas suas forças armadas.
De toda a maneira uma factura já é apresentada aos moçambicanos quando se assiste a constantes demonstrações cirúrgicas de superioridade e a de ter que se ouvir, sobretudo das cordas vocais do presidente do Ruanda, de que a ajuda militar do seu país é gratuita, e paga a 100% pelo seu país, o que apenas alimenta o orgulho e as virtudes messiânicas de Kagame.
Contudo, é de uma outra factura, e bem detalhada sobre os custos da intervenção, a que mais interessa e que certamente o seu conhecimento permitirá que os moçambicanos fiquem cientes sobre o quanto é necessário para que o país de per si consiga defender a pátria.
E ainda, a propósito da factura, tal é pertinente para que um dia, assim querendo, e por qualquer razão, o país possa liquidar a gratidão do Ruanda, servindo a factura como uma referência (monetária) para a retribuição de tamanha gratidão.
Por isto, e como um grande cavalheiro, é justo que Kagame submeta a factura ao povo moçambicano, o legítimo destinatário da sua ajuda militar.
Não se cansa de dizer que destruíram a beleza da Maxixe. Repete isso, sempre que procura o mar, a partir do antigo Hotel Golfinho Azul, e não o vê. O próprio Hotel perdeu o sentido da sua existência, por isso fechou e está a cair por si mesmo, implodindo no silêncio da dor. O que dói é que ninguém se importa com a derrocada desse símbolo tão importante, agora transformado. Em mamarracho.
O Hotel Golfinho Azul tem uma esplanada que se escancarava para a baía, deleitando não só os que nela desfrutavam da vida, mas os transeutes anónimos, aos quais bastava a espectacularidade do lugar, que entrava em harmonia com o miradouro, do outro lado da estrada. É essa memória forte que fere a poesia de Khudzi Nhassengo, mulher incapaz de reunir os pedaços espalhados na raiva de conviver com a anarquia. Com a incultura.
Ocuparam o miradouro, privatizaram-no, construindo um restaurante que leva o nome de “Stop”. Khudzi Nhassengo insurgiu-se contra esta acção, considerando-a uma violação ao nosso direito colectivo de estar ali, a contemplar a arrebatante paisagem que inclui o arquipélago de Mucucune e a Ilha de Inhambane. Gritou, implorando que não cometessem tamanha agressão ao meio ambiente, sobretudo à alma das pessoas. Ninguém lhe deu ouvidos.
O Hotel Golfinho Azul só se tornaria essencial com o miradouro. Sem isso, perderia os pulmões. Sem os pulmões, deixaria de respeirar, e sem respirar, morreria, como agora que morreu, sobrando apenas o esqueleto que vai sendo corroído pelo tempo. E o restaurante “Stop” só serve a elite, que goza num lugar que é nosso. Que pertence a toda cidade.
Maxixe era um lindo poema virado para o mar. Havia duas esplanadas que conviviam em consonância: de um lado a “Pousada da Maxixe”, do doutro lado o Hotel Golfinho Azul. E, como o belo atrai o belo, então baía e esses dois empreendimentos hoteleiros, cantavam a mesma música. Da beleza.
Khudzi Nhassengo recorda-se dessa espectacular imagem gravada na memória e no coração, e fica triste. Muito triste ao concluir que todos nós fomos desperezados. Ignoraram-nos como aos vermes. Fecharam a parte frontal da Maxixe e ergueram construções em toda a dimensão da fachada por onde passam os viajantes, sem poderem sequer sentir a aragem do mar e apreciar a natureza que trouxe de volta os flamingos.
Feriram a poesia de Khudzi Nhassengo com estúpidos edifícios, como no tempo em que as mulheres eram dolorosamente tatuadas no rosto, matando a janela inteira do corpo, e o poeta já dizia: o rosto é um pouco a janela da alma. E Maxixe perdeu essa alma. Para sempre!
CONTEXTUALIZAÇÃO
As dívidas ocultas, cujo julgamento está a ser realizado na famigerada Tenda da BO, pela 6ª Secção do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo, foram declaradas nulas pelo Conselho Constitucional da República de Moçambique.
Numa primeira fase, este órgão de soberania especializada em matérias de natureza jurídico-constitucional declarou a nulidade dos actos inerentes ao empréstimo contraído pela EMATUM,SA, e a respectiva garantia soberana conferida pelo Governo, em 2013, com todas as consequências legais. Assim decidiu através do Acórdão n° 5/CC/2019 de 3 de Junho referente ao Processo nº 6/CC/2017, incorporado no Processo nº 8/CC/2017 sobre fiscalização sucessiva abstracta de constitucionalidade.
Numa segunda fase, o mesmo Conselho Constitucional declarou a nulidade dos actos relativos aos empréstimos contraídos pelas empresas Proíndicos, SA, e Mozambique Asset Management (MAM, SA) e das garantias conferidas pelo Governo, em 2013 e 2014, respectivamente, com todas as consequências legais. O que fê-lo por via da emanação do Acórdão n.º 7/CC/2020, de 8 de Maio de 2020, referente ao Processo n.º 05/CC/2019.
No entanto, os dois acórdãos em referência do Conselho Constitucional não resolveram na totalidade os problemas relacionados com as dívidas ocultas não obstante ter fixado jurisprudência que determina a nulidade das mesmas, deixando muitas zonas cinzentas, sobretudo, para questões de responsabilização dos que causaram as dívidas ocultas.
O PROBLEMA
Os dois Acórdãos em análise de modo algum chamam directamente à responsabilidade quem quer que seja que esteve envolvido com o processo de contratação das dívidas ocultas, nem de quem se beneficiou das mesmas. Curiosamente, o Conselho Constitucional não faz uma descrição clara e específica de cada acto relativo aos empréstimos contraídos pelas empresas EMATUM,SA, Proíndicos, SA, e Mozambique Asset Management (MAM, SA) e das garantias conferidas pelo Governo, em 2013 e 2014, que declarou nulo. No mesmo sentido, não diz expressa e inequivocamente quais as consequências legais da declaração da nulidade das dívidas ocultas que proferiu, deixando essa interpretação ao critério do intérprete ou da sociedade interessada.
Uma análise mais atenta permite perceber que esses actos e garantias conferidas pelo governo, ora declarados nulos, foram praticados por diferentes agentes, órgão, entidades e instituições públicas e privadas de diversa natureza e categoria, mas que não estão identificados nos Acórdãos supra referidos. Aqui, fica a questão jurídica de saber se o Conselho Constitucional tinha ou não a obrigação de fazer referência aos actos que declarou nulos! Afinal, são actos que de per si não tem vontade própria, alguém os praticou sem obedecer os procedimentos legais essenciais para o efeito! Ora, quem são essas pessoas e em que qualidade manifestaram a vontade efectiva de praticar actos nulos que levaram ao endividamento do Estado Moçambicano naquilo que hoje se considera o maior escândalo de corrupção da história de Moçambique?
Na verdade, o Conselho Constitucional alegrou, em parte, a sociedade civil, mas, em bom rigor, sacudiu o capote transferindo o problema para os outros órgãos da administração da justiça, incluindo o Ministério Público, que devem investigar esses actos de modo a identificar os seus autores para a competente responsabilização dependendo da natureza da infracção cometida, se criminal, administrativa, financeira ou outra, com a consequente reparação dos danos causados ao povo moçambicano. É isto que interessa ao povo e a justiça na intervenção do Tribunal que julga as dívidas ocultas e não decisões problemáticas.
Com efeito, importa questionar para saber até que ponto as instituições do Estado relevantes para o caso estão a fazer esse exercício de investigação de modo a se operacionalizar os Acórdãos do Conselho Constitucional que aqui se discute a sua relevância. Aliás, é mister questionar a relevância dos mesmos nos processos em cursos relacionados com as dívidas ocultas, seja o Processo n.º 18/2018-C, com termos na 6ª Secção do Tribunal Judicial da Cidade de Maputo, (julgamento na Tenda da BO), seja os chamados processos autónomos, cuja informação sobre os seus termos é escassa, apesar de se tratar de matéria de grande interesse público. Com esta posição não se pretende ignorar o respeito pelas questões de segredo de justiça ou de matéria classificada, nos termos da lei aplicável.
CONCLUSÃO
Os acórdãos do Conselho Constitucional sobre as dívidas ocultas são muito simplistas para a dimensão ou complexidade do problema que apreciou e decidiu, deixando muitos espaços de penumbra para a compreensão da causa e resolução do conflito em causa de forma eficaz.
Trata-se, pois, de decisões proferidas pelo Conselho Constitucional de forma tímida no que respeita a abertura de caminhos inequívocos para a responsabilização dos autores das dívidas ocultas.
O Conselho Constitucional devia indicar, pelo menos, os actos cruciais e os seus actores que permitiram a contratação das dívidas ocultas, demonstrando os procedimentos essenciais violados pelos mesmos, o que ia contribuir para acabar ou reduzir os espaços de impunidade dos visados, os lesa pátria.
Os Acórdãos do Conselho Constitucional devem ser mais exaustivos, pedagógicos, integrando uma jurisprudência de qualidade como se de uma escola jurídico-social e de ética pública se tratasse e que chama à responsabilidade para o respeito aos princípios que norteiam a Constituição da República de Moçambique. É, pois, por isso que o n.º 1 do artigo 240 da Constituição define o Conselho Constitucional como o órgão de soberania, ao qual compete especialmente administrar a justiça, em matérias de natureza jurídico-constitucional.
João Nhampossa
Human Rights Lawyer
Advogado e Defensor dos Direitos Humanos