Vi uma peça na STV, que também foi veiculado pelo Diário da Zambézia, que me deixou estarrecido, na qual colaboradores do BCI, que não foram flagrados com a mão na massa, foram transportados aos montes no Mahindra como ladrões de créditos e reputação firmada.Inclusive, o acto, lembrou-me um episódio no qual um jovem foi assaltado num carro e disse, aos polícias, que o acto tinha sido cometido por alguém com uma camiseta vermelha.
Alguns metros depois um jovem, que vinha do seu trabalho, foi cercado, recolhido, encarcerado é espancado. Motivo: tinha uma camiseta vermelha. Recolhido aos calabouços, mesmo com a vítima afirmando que não tinha sido aquele jovem a pessoa que lhe tirou o telefone, ele ficou detido, mesmo com testemunhos de pessoas que tinham estado com ele naquele dia ele permaneceu detido até que teve de ser libertado por uma procuradora.
Portanto, é regra da nossa polícia é deter sempre, pois qualquer pessoa acusada por eles é naturalmente culpada. Voltando ao assunto do BCI e a forma como os seus colaboradores foram recolhidos diz mais do banco do que da polícia. Ainda que todos jovens ali estejam envolvidos no crime, aquela forma indigna de transportá-los, diz muito dos valores do BCI enquanto empresa.
Há algo que se chama dignidade e o BCI deveria ter criado meios para garantir isso aos seus trabalhadores. É importante também que os jornalistas não se limitem a reproduzir o que a polícia diz? Não se pode transformar a suspeita na culpa de forma alguma. Nenhum colaborador ali foi surpreendido com dinheiro fruto do roubo, foram simplesmente recolhidos por serem trabalhadores do BCI e por terem estado na agência na hora em que deviam trabalhar. Ou seja, aquele era o único lugar onde deveriam estar naquele momento, suspeito seria estarem em outro lugar sem justificação.
O pior é que até prova em contrário são inocentes e, por regra, há grandes probabilidades de que sequer tenham antecedentes criminais. Se todos ali forem culpados a polícia falhou, o BCI falhou e o jornalismo perdeu a oportunidade de questionar os métodos da polícia e os valores que o banco preza no que diz respeito aos seus colaboradores. Devia ser regra, quando se faz jornalismo, avaliar se as pessoas que são classificadas como supostas criminosas são tratadas com dignidade ou não. Isso sequer é um valor do jornalismo, mas um princípio que nos devia acompanhar enquanto humanos.
Enquanto o tio Manuelinho costurava as palavras, em conversa, sobre a proposta do seu contrato para ser Presidente do Município de Quelimane, o Jota, seu sobrinho, era interpelado, em sua imaginação, a cada segundo, por várias colocações.
Por um lado, não conseguia entender como era possível haver propostas de contratos para Presidentes de Municípios, uma vez que a legislação vigente preconizasse outra realidade. Por outro, não parava de cogitar a respeito das cerimónias fúnebres sobre a ida ao além da sua estimada tia Marciana. Eram pensamentos contrários que deslizavam na sua cachimónia!
Além disso, em sua mente, chovia também uma descarga de meditações sobre a realização da Conferência Internacional de Jornalismo Investigativo, para a qual ele havia sido selecionado a participar, em representação daquele famoso domicílio de formação de jovens jornalistas, que hoje se encontram espalhados pelos quatro cantos da nossa estética e extensa Pérola do Índico.
Entretanto, ainda não estava claro se o Jota haveria de participar nas cerimónias fúnebres, pois, para que isso acontecesse, ele teria de escolher entre assistir ao funeral da sua tia e perder a Conferência ou regressar a Maputo, um dia antes do enterro, a fim de viajar à vizinha terra do rand aonde decorreria a já esperada Conferência, onde teria, igualmente, a única oportunidade de assistir de perto à Carlos Cardoso Memorial Lecture dedicada ao mais célebre Jornalista Investigativo Moçambicano. Era o anseio de todos Jornalistas, principalmente os Estagiários.
Contudo, entre todos os pensamentos, além do contrato para Presidente de Município, o que mais agitava os seus milhões de neurónios era o Chinês, único passageiro que fotografou as nossas florestas. Ele era o mais curioso cidadão, naquele autocarro, que apreciava todas as passagens verdes, repletas de clorofila, que desfilam ao longo da Estrada Nacional Número Um.
Ora, eu até suspeitei, uma vez que já tinha perdido a conta das vezes que o Chinês se havia levantado para memorizar, com imagens, a nossa floresta verdejante. Pensei nos variadíssimos, alguns não registados, abates de árvores e exportações ilegais de madeiras, ao longo do nosso extenso País, praticados por seus compatriotas, claro, em conluio com alguns irmãos nossos.
Naquele instante, Jota lembrou-se de uma conversa aberta que teria com um amigo Engenheiro Florestal, produzido na mais antiga Universidade do País, e questionou ao tio Manuelinho:
— Tio, lembra-se do discurso de Ban Ki-moon, o antigo e oitavo Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), que proferiu aquando da aprovação da Resolução sobre a Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável?
— Claro, meu sobrinho mais velho. Na liderança do Secretariado das Nações Unidas, Ban Ki-Moon é sucessor de Kofi Annan, o ganês, e antecessor de António Guterres, o Tuga, actual Secretário-Geral. — Enquanto soltava alguns sorrisos. E acrescentou: — Seguindo a lógica do funcionamento do mundo, estas informações são importantes para quem não deseja viver a ser enganado. É imperioso que estejamos atentos a isso. Lembro-me muito bem, meu filho. Queres que eu cite o que ele disse? — Indagou, confiadamente, o Manuelinho.
— Eu conheço a responsabilidade do teu cérebro, que assiduamente preserva, em memória, toda informação impagável e digna de apreço — Disse o Jota, num tom de voz despreocupado.
— Jota, meu sobrinho…. Você, sempre a querer colocar-me no terraço! “Os 17 Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) são a nossa visão comum para a Humanidade e um contrato social entre os líderes mundiais e os povos”, garantiu Ban Ki-moon. E adicionou: “São uma lista das coisas a fazer em nome dos povos e do planeta, e um plano para o sucesso”.
O Jota estava desqueixolado pela rápida e pontual resposta do tio Manuelinho. E, consecutivamente, juntando algumas consoantes e todas vogais do nosso alfabeto, desatou:
— Muito bem, tio. Eu sabia que não me irias decepcionar. Isso não é de hoje e eu já estou acostumado! Na verdade, eu estaria preocupado se não tivesse uma resposta depois de 30 segundos. — Ao mesmo tempo que estendia os seus gêmeos olhos para os bancos de trás do autocarro, onde o Chinês estava sentado, tentando controlar os movimentos daquele cidadão estrangeiro que não parava de fotografar as nossas valiosas florestas.
— Olha, esta Resolução entrou em vigor no ano passado, ou seja, a 1 de Janeiro de 2016 e carrega como bandeira a seguinte expressão: “Transformar o nosso mundo: Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável”. Além disso, ela possui 17 Objectivos, divididos em 169 Metas, e foi aprovada consensualmente por 193 Estados-Membros da ONU, reunidos em Assembleia-Geral, nos States, para resolver as necessidades humanas nos países desenvolvidos, bem como nos países em desenvolvimento e tem como destaque: “ninguém deve ser deixado para trás”.
O Jota ficou em silêncio, tentando mastigar e ruminar as informações que acabara de receber, ao mesmo tempo que procurava encaixar o caso do Chinês na famosa Agenda 2030. E Manuelinho, num rápido movimento exercido na Área de Broca do seu cérebro, acumulou:
— Trata-se de uma Agenda muito ambiciosa que reúne várias dimensões do desenvolvimento sustentável (social, económico, ambiental) e promove a paz, a justiça e instituições eficazes.
— E como é feita a avaliação da implementação das metas estabelecidas em cada um dos 17 Objectivos? — Questionou o Jornalista-Estagiário, devidamente aconselhado pela Área de Wernick do seu cérebro. Ele queria compreender os detalhes da execução daquela Agenda.
Enquanto isso, ouviu-se o barulho do empurrar de um dos vidros do autocarro, no lado de trás. Conseguia-se escutar, também, os sons do volume de um Smartphone que recolhia fotos para a sua quase entulhada galeria. Do lado de fora daquela janela, havia uma enorme quantidade de árvores. Um verde escuro banhado de clorofila! E ali estava, novamente, como se nada estivesse a acontecer, o Chinês, planificadamente mansinho, com o seu Huawei preto, capturando imagens da nossa vasta floresta. Em seguida, Manuelinho respondeu:
— Olha, sobrinho. A avaliação da implementação e o progresso dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável serão realizados de forma regular, por cada País, envolvendo os governos, a sociedade civil, as empresas e outros representantes dos vários stakeholders ou partes interessadas. E os jovens não devem ficar de fora neste processo importantíssimo!
— Entendo, tio. Então, a questão da exploração ilícita ou abate de árvores igualmente está contemplada nestes Objectivos? — Interrompeu, em jeito de provocação, o jovem sobrinho.
— Exactamente, Jota. Eu penso que você sabe muito bem disso. Trata-se do Décimo Quinto Objectivo, que se refere a “Proteger, restaurar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, travar e reverter a degradação dos solos e travar a perda de biodiversidade”. É o Objectivo das florestas!
— Hahaha... Este é mesmo para o Chinês! Aliás, o tio notou bem que aquele passageiro turista continua, constantemente, a fotografar as nossas florestas? Não são essas fotos que comprometem a nossa economia?
— Como assim, Jota? — Questionou, espantado, o Manuelinho.
— Tio, afinal, não verificou as incontáveis vezes que ele, sempre, se levantava para tirar fotos das nossas reservas florestais? Não notou que ele fotografava exclusivamente as regiões com quantidades extraordinárias de árvores? Isso é normal, tio? — Rematou o Jornalista-Estagiário.
— Ahaaannn… Sim! Tens toda razão, sobrinho. Eu também já estava a ficar preocupado com a constante movimentação dele. Sabes, se for o que estamos aqui a pensar e conversar, isso pode comprometer a meta que se deve alcançar daqui a três anos, em 2020, de se assegurar a conservação e recuperação do uso sustentável de ecossistemas terrestres e de água doce interior e os seus serviços, em especial as florestas.
— É verdade, não precisa de óculos para ver e entender que a missão do Chinês é clara. Quem aqui anda a tirar fotos só de árvores? Será que ele é o único passageiro com celular neste carro? Nem mesmo Engenheiros Florestais andam a tirar fotos só de árvores. Eu já viajei com alguns e nenhum deles andava a fotografar as nossas árvores. Posso ligar para confirmar!
— Tens razão, sobrinho. Tens toda razão, meu filho! — sentenciou Manuelinho.
— Eu penso que o Chinês está a fazer o mapeamento das nossas zonas florestais para, depois, desenhar um esquema de abate de árvores. É até bem possível que já exista uma Operação Nó Górdio para desflorestar a nossa Pátria. Querem consumir a nossa madeira! Em todo o País, principalmente em Sofala, Zambézia e Cabo Delgado, verifica-se o desmatamento das florestas sem a respectiva substituição das espécies abatidas. Quantas vezes ouvimos e lemos, nos jornais e TVs, casos de detenção de enormes quantias de madeira transferida para países asiáticos? — Relatou o Jota e, com uma voz veemente em defesa da Pátria, acrescentou:
— Por exemplo, há cinco anos, em 2012, foram capturados 562 contentores de madeira virgem que estava prestes a ser exportada. No ano passado, assistimos a maior captura de sempre, isto é, cerca de 1.300 contentores de madeira confiscados. Mesmo neste ano (2017), ouvimos falar da apreensão de três contentores de madeira. Todos estes casos foram registados no Porto de Nacala e tinham um destino comum: a populosa República da China. Isso é mera coincidência?
Não é que o Jota, apesar da triste situação de infelicidade da sua tia Marciana, estava mesmo vigilante e com os ponteiros dos neurónios bem acertados. As florestas são importantes não só como fonte de madeira, mas também como protectoras das colinas e reguladoras do fluxo de água, protegem as bacias hidrográficas e a vida selvagem, reduzem a taxa de erosão do solo, contribuem para o estabelecimento do turismo, armazenam as vastas quantidades de carbono que servem para mitigar as mudanças climáticas, que anualmente asfixiam milhares de gente.
— Tio, a Umbila (Pterocarpus angolensis), Chanfuta (Afzelia quanzensis), Tanga-tanga (Albizia versicolor), Jambirre (Millettia stuhlmannii), Cimbirre (Androstachys johnsonii), Muanga (Pericopsis angolensis), Mutondo (Cordyla africana) e Mpingo, também conhecido como Pau-Preto (Dalbergia melanoxylon), são algumas das espécies da primeira categoria ilegalmente exploradas para empanturrar os bolsos de muita gente de classe privilegiada, deixando a nossa economia cada vez mais pálida e magrizela, quando contabilizados todos desvios nesta área.
— Jovem, vejo que você anda bem informado sobre os nossos recursos florestais e faunísticos. Eu pensei que, além de alguns Agrónomos, apenas Engenheiros Florestais conheciam os nomes científicos das nossas reservas florestais. — Disse uma voz grossa, que vinha da parte traseira da cadeira aonde o Jota e tio Manuelinho estavam assentados. — E adicionou, calmamente:
— A propósito, você é um destes profissionais que acabei de mencionar? — Questionou aquela voz que, sem pedir licenças, acabava de se embrulhar numa conversa que se diga familiar.
— Nenhum de nós fez esta área — Respondeu o Manuelinho, e, em seguida, aditou: — É verdade, Jota. Isso também afecta o cumprimento de outros Objectivos. Por exemplo, o Primeiro Objectivo, que prevê, até 2030, erradicar a pobreza extrema em todos os lugares. — Disse Manuelinho — Que, logo a seguir, somou mais palavras à sua fala: — O desvio de fundos provenientes de corte ilegal e venda de árvores, bem como o valor de taxas envolvido, que também é desviado neste esquema, pode contribuir para que este Objectivo não seja alcançado.
E aquela voz acompanhante de um passageiro desconhecido, que vinha do banco de trás, interpelando o discurso do tio Manuelinho, acrescentou:
— O Segundo Objectivo é identicamente afectado. Por exemplo, a prática ilegal de abate de árvores pode influenciar o garante de sistemas sustentáveis de produção de alimentos e implementação de práticas agrícolas resilientes, para aumentar a produtividade e a produção ao nível local e nacional. Além disso, não ajudará a manter os ecossistemas e fortalecer a capacidade de adaptação às alterações climáticas, às condições meteorológicas extremas, secas, inundações e outros desastres, a fim de melhorar, de forma progressiva, a qualidade da terra e do solo. — Rematou e, consecutivamente, devolveu a sua voz no abrigo do silêncio.
— Isso é muito sério! — Atirou o Jota, tendo adicionado: — Afecta, de igual modo, o Quarto Objectivo. Com o constante desmatamento e abate de árvores, ilegalmente, como será possível, até 2030, garantir-se que todos os meninos e meninas completem o Ensino Primário e Secundário de qualidade, se a madeira que deveria servir para construir as Escolas e produzir carteiras e quadros é malandramente desviada para bem longe das suas zonas de origem?
— Sobrinho. Estamos mesmo numa situação difícil de gerir. Imagina só, daqui a três anos, em 2020, o Sexto Objectivo prevê proteger e restaurar os ecossistemas relacionados com a água, incluindo florestas e zonas húmidas. Será que isso vai acontecer? — Interrogou o Manuelinho.
Enquanto isso, o Chinês continuava, aqui e acolá, a fotografar todas as zonas verdes que espalham sombras densas ao longo dos riachos e lombas interiores espalhados na nossa já cansada Ene Um. Ele era mais apreciador e fotógrafo de árvores que um simples passageiro. Mesmo onde o motorista parava o carro para que os passageiros descarregassem das suas bexigas, entre as verdejantes árvores, águas ácidas, e dos seus intestinos grossos, restos de comida, a missão do Chinês era clara e específica: fotografar a nossa floresta!
— A minha irmã foi destacada para integrar a equipa que está a realizar o Inventário Florestal Nacional, que iniciou em 2015 e tem prazo de dois anos. Portanto, termina neste ano, mas será publicado nos finais de 2018. Em conversa, ela segredou-me que uma das recomendações do estudo, para evitar a exploração ilegal da nossa frondosa e vasta floresta, é reduzir o actual número e proibir a entrada de novos operadores florestais por 5 ou 10 anos. Neste período, serão monitorados os efeitos destas medidas. — Expôs uma passageira no banco de frente.
— Muito obrigado, Moça. — Afirmou Manuelinho, soltando seu olhar sedutor em direcção àquela jovem viajante. E voltando-se para o seu sobrinho, que calculava o diâmetro do seu olhar, disse:
— Olha, Jota, espera-se, também, daqui a três anos, em 2020, em todo mundo, promover a implementação da gestão sustentável de todos os tipos de florestas, travar a deflorestação, restaurar florestas degradadas e aumentar os esforços de florestação e reflorestação. Portanto, uma das metas é tomar medidas urgentes e importantes para reduzir a degradação de habitat naturais, travar a perda de biodiversidade, proteger e evitar a extinção de espécies ameaçadas; mobilizar recursos para financiar a gestão florestal sustentável e proporcionar incentivos adequados aos países em desenvolvimento para promover a gestão florestal sustentável, inclusive a conservação e o reflorestamento. — Revelou Manuelinho, esbanjando ciência.
— Contudo, se continuarmos a ter muitos passageiros como estes, Chineses, Moçambicanos ou de qualquer nação, que somente andam a fotografar as nossas florestas, duvido que estas ambiciosíssimas metas sejam alcançadas. No lugar de preservar, teremos as nossas florestas cada vez mais despidas de verdes e beleza natural e assistiremos, sempre, contentores carregados da nossa madeira a atravessarem o vasto Oceano Índico. Enfim, vamos aguardar para ver, tio. Porém, confesso que a minha reserva de esperanças está quase a esgotar-se.
Não é de se admirar! Casos de exploração ilegal de árvores e contrabando de madeira continuam a afectar a nossa biodiversidade e a acarretar, em grande medida, os cofres do Estado. Em Setembro de 2020, em Cabo Delgado, Província com uma das maiores densidades florestais do País, foram confiscados 102 contentores de madeira, que seguiam à China. Em Julho deste ano, na Província de Sofala, somas de dinheiro foram perdidas devido ao contrabando de madeira.
Apesar de existir mecanismos nacionais e internacionais que trabalham para melhorar a governação do sector florestal, a sustentabilidade das florestas, através da aplicação das leis e administração deste sector, não há muita esperança para ver as nossas florestas beneficiarem a população local e engrossar os cofres do Estado para o bem de todos os moçambicanos.
Não obstante, será impossível alcançar a Agenda 2030, principalmente os Objectivos e Metas relativos à protecção, restauração e promoção do uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gestão sustentável das florestas, combate da desertificação, degradação dos solos e travar a perda de biodiversidade nacional e mundial, bem como os seus efeitos no cumprimento de outros Objectivos e Metas, se mais Chineses continuarem, livremente, a fotografar as nossas florestas!
Nos princípios do mês de Maio do ano em curso, nas matas do distrito de Mueda, na martirizada Província de Cabo Delgado, por pouco aconteceria uma carnificina que culminaria com um escândalo de proporções catastróficas. E não foi por falta de aviso!
Tudo se deveu a uma aterragem de Forças Especiais Estrangeiras, as quais esperavam que a operação fosse secreta e sem deixar rastos. Os soldiers aterraram nos moldes hollywoodianos. De paraquedas e mochilas, desceram como raios de trovão e pousaram quão os bravos soldados das cenas cinematográficas americanas com destino ao índico a fim de combater numa guerra que em tempos os nossos protectores estabeleceram um prazo de uma semana para que os malfeitores se entregassem.
Sucede, porém, que no pretérito dia, os militares, que tinham como destino o Quartel Central de Mueda, aterrizaram numa área com mata densa e sem rede telefónica. A ideia era fazer o reconhecimento do local, no entanto, logo que chegaram numa determinada região guarnecida por milícias populares, a situação mudou de mares. Os soldados locais pensaram que fossem homens do inimigo, uma vez que por lá tudo é possível.
Em poucos minutos, o ar mudou. A tensão subiu. As carabinas foram manipuladas. Afinal, estava-se diante de um possível ataque, mas não. Longe do conhecimento deles, eram parceiros estratégicos que vinham combater ao lado dos filhos da Pérola do Índico que, desde Outubro de 2017, lutam para aniquilar em definitivo a força inimiga.
Assim, a tensão durou por meia hora, uma vez que, aparentemente, os guardiões da pátria não tinham nenhum conhecimento da vinda dos “Chucks Norris Africanos”, alegadamente porque a informação estava com um burocrata a 2.514,9 quilómetros daquele quase esquecido território no cume de Moçambique.
Com os militares já posicionados, os canhangulos em posição de mira, é quando o Coronel que comandava as Unidades recebe a informação de que eram Forças Estrangeiras parceiras – isto é, depois de várias tentativas de informar, militarmente, em meio a falhanços, os especialistas foram recebidos e, meses depois, entraram, oficialmente, os 1000 homens.
No xangana - perdoe-se-me eventual sectarismo -, há um verbo que reza ku titsika! Ku titsika quer dizer ‘deixar-se’; ‘negligenciar-se’, ‘destratar-se’, ‘abdicar de si próprio’, ‘viver de qualquer maneira’. É mais do que um verbo. É uma noção. Uma pessoa que se “tsikou” é aquela que deixou de viver a vida, deixou de ter planos e projectos de vida, de curtir; que se balda e, mesmo, deixou de se vestir como deve ser, de pentear, fazer barba, tomar banho, cortar ou limpar as unhas; deixou de viver, ainda que vivendo! Muitos sinais alarmantes vêm de todos os lados da nossa sociedade, de que nós próprios, como indivíduos, mas também como instituições, algumas das quais basilares para uma sociedade fluorescente que pretendemos, nos tsikamos!
Ao que parece, nos abdicamos de nós mesmos como indivíduos e do nosso querido Moçambique, a Pérola do Índico. Desistimos completamente; eximimo-nos de o construir com valores e princípios sólidos aceitáveis; de o erguer com pilares éticos e morais firmes! Exoneramo-nos da responsabilidade sobre nós mesmos e sobre o país! Não estou a falar do governo e suas responsabilidades, nem de quaisquer outras autoridades... Falo de nós, como indivíduos membros desta sociedade.
Apartamo-nos de nós próprios como seres racionais. Semana passada, a televisão expôs ao mundo um jovem, na cidade de Nampula, a produzir documentos diversos falsos. Com os seus computadores e softwares, fabricava uma multitude de documentos. Todos eles falsos, obviamente! Produzia desde papel timbrado de diversas instituições, relatórios de inspecções de veículos, facturas e recibos diversos e, cúmulo dos cúmulos, certificados de habilitações literárias e diplomas!...
No material exibido na televisão, estava um diploma de uma instituição superior, que o jovem produzia! Com mil e trezentos, mil e quinhentos… ali se tinha o documento, já se tinha as habilitações almejadas e a licenciatura, ou a viatura inspeccionada! O jovem e o caso de Nampula não são os únicos nesta nossa terra. Em todo o lado, falsifica-se tudo mais alguma coisa… menos o BI e passaporte agora, mas num passado recente esses documentos também se falsificavam a granel. Como todos ouvimos, certamente incrédulos, no INATTER, agora INATRO, produziam-se e vendiam-se cartas de condução… falsas.
Falsas?... não; aquelas eram autênticas, eram produzidas pela instituição certa e pelas mãos certas… só que eram atribuídas a pessoas erradas, não habilitadas para conduzir veículos automóveis. Portanto, eram autênticas, mas ilegítimas. Não temos a indicação de a quantas pessoas desabilitadas foram vendidas as cartas de condução, nem de há quanto tempo aqueles 16 funcionários desenvolviam aquela bolada, mas seria ingenuidade demais acreditarmos que aquela absurdidade ocorria fazia pouco tempo, ou que aqueles delinquentes estavam a começar a praticar aquele ilícito! Igualmente, ouvimos da rádio e lemos em jornais que, algures em Cabo Delgado e no Niassa, perto de duzentos professores foram expulsos porque se apurou que tinham sido admitidos irregularmente!… Muitos deles tinham certificados falsos, entre outras falcatruas.
A Direcção Provincial de Educação e Desenvolvimento Humano em Cabo Delgado desencadeou uma campanha de confirmação dos certificados apresentados pelos candidatos já seleccionados e de outros já efectivos e encontrou que um monte de certificados ou diplomas apresentados para a contratação não eram autênticos. Eram, portanto, falsas! Muito provavelmente produzidos por aquele jovem de Nampula! Ou eventualmente de um outro em… Pemba, Lichinga, ou Maputo! Só podemos rir, para não chorarmos! Até onde chegamos.
Não consigo entrar na cabeça daquele jovem na casa dos 30 anos que resolveu montar em sua casa uma indústria de falsificação de documentos. E não são quaisquer documentos: certificados de inspecção de veículos, certificados de habilitações literárias e… diplomas! Tal como os vendedores das cartas de condução, não temos a indicação de quantas pessoas terão adquirido, a mil ou mil e quinhentos, cada documento. Dir-se-á que o mundo está cheio de coisas más. Certo. Mas o que anda na cabeça daquele concidadão que, no lugar de se ir sentar no banco de escola, aprender, estudar, adquirir conhecimento, prefere comprar um certificado, um diploma; aquele moçambicano que, ao invés de levar o carro ao mecânico e pô-lo como deve ser, prefere comprar certificado de inspecção! Hi titsikile mesmo! Que sociedade pretendemos?
Uma sociedade em que ninguém vai à escola, só compra certificado de habilitações e ou diploma? Como podemos crescer, progredir, desenvolver o nosso país sem educação? Com diplomas comprados numa dependência? Com certificados de habilitações literárias fabricados? Queremos ser uma sociedade em que, para conduzir uma viatura, ninguém vai à escola de condução; em que as viaturas não vão à inspecção, mas têm o certificado de inspecção em dia… aliás, já somos essa sociedade: as notícias e os números de e sobre acidentes nas nossas estradas não mentem! Semanalmente temos fatalidades aos montes.
No entanto, isto não é tudo! Não podemos enumerar tudo sobre o nosso infortúnio colectivo. Mas, mais um apenas! A nossa PGR, a própria PGR, deu o braço a torcer! Abdicou dela própria! O comunicado que há dias emitiu não é nada mais nada menos do que um atirar de toalha ao chão. Sente-se assustada, amedrontada e… consequentemente, abdica das suas funções! - ainda que não o diga directamente. Se a PGR, com o mandato outorgado constitucionalmente, não tem a verticalidade de perseguir e encontrar chamadas, SMS e ameaças anónimas… deixa-se assustar e o manifesta publicamente… e nós, cidadãos ordinários? Definitivamente, eximimo-nos de uma sociedade sã e fluorescente! Hi ti tsikile! Não é o governo que nos vai inculcar valores de ética, de moral, de probidade. Nós, como indivíduos, onde estamos? Não é o governo que nos deve proibir de comprar diplomas ou de levar os carros à inspecção. Este faz a sua parte. E nós?
- Armando Artur, em entrevista fictícia *
Armando Artur pode ser um homem taciturno, ele diz que é uma forma de defesa. Não é o tempo que conta na sua vida, mas a importância das coisas que faz. Foi na AEMO onde aprendeu a valorizar a amizade e a partilha. Não guarda ressentimentos, mesmo dos malucos que em algum momento lhe apedrejaram na vida, “eu também sou maluco”.
Acompanhe na íntegra a conversa mantida num final de tarde, na varanda da sua casa, lembrando o sol a esconder-se no esplendor dos Montes Namuli.
-Nasceste em Nauela num ano qualquer. Em 1982 chegas a Maputo com um pequeno bornal no regaço, ninguém te conhecia. O que é que te moveu para um lugar movediço e tão distante da tua terra?
- Você fala do bornal que eu trazia no regaço e faz me lembrar que bornal é uma saca usada pelos soldados, obreiros e itinerantes para transportar provimentos ou mantimentos, mas a minha saca não tinha nada. Se calhar vim para aqui com a necessidade urgente de encher o coração e eu não sabia. Provavelmente aportei neste grande entreposto como um pedaço desconhecido da cordilheira de Namuli, que já tinha as palavras a zumbirem em forma de poesia dentro de mim.
- O que é que te arrebatou em primeiro lugar ao desceres num lugar que não tinha nada a ver contigo?
- Eu era imberbe, deixei-me conquistar pelo fascínio de uma grande metrópole sempre sonhada na pacatez desse lugarejo onde minha mãe me deu à luz, na verdade todo o bulício de Maputo, o frenesim consubstanciado no ruído dos carros, as pessoas a quererem passar todas ao mesmo tempo, os grandes autocarros abarrotas com pessoas penduradas nas portas, tudo isso foi um choque profundo para um rapaz atrevido que apenas confiava na poesia.
- E confiava nos búzios também!
- Depois de retirares a carne desse molusco, a carrapaça do búzio assobia ao sibilar do vento, e na esteira dos médiuns torna-se uma verdadeira bússola, dependendo das mãos que a manipulam, mas os meus búzios são outros, são cada verso da poesia que vou cantando em vários sopros de meditação. Por vezes nas paródias.
- Depois foste parar a esse efervescente alfobre que é a Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), onde te mantens até hoje como uma das pedras angulares. O que é que significou para ti entrar nesse clube restrito?
- Se eu sou uma das pedras angulares da AEMO, só pode ser no sentido de que sou um fragmento de uma rocha maior, com o risco de me precipitar e diluir-me no mar. A AEMO é um baluarte sagrado onde aprendi a arrumar as palavras que já trazia da cordilheira de Namuli. A AEMO é um depositário de tesouros, aqui abriu-se-me a luz que me fez perceber o valor da amizade e da partilha. Sinto-me lisonjeado por fazer parte desta orquestra esquisita, em que cada um toca a música dele sozinho, tentando atingir a perfeição e querendo profusamente que os outros escutem essa música.
- Já atingiste essa perfeição?
- Olha, como já te disse, nasci em Nauela na província da Zambézia. É uma zona superabundante que faz parte dos Montes Namuli, abrange Gurúè onde se estende aquela exuberância toda das plantações de chá. Você olha para aquilo tudo e diz, que obra da natureza tão perfeita! Então, a única perfeição que reside em mim, é o lugar onde nasci.
- A propósito, há muita gente que vem das províncias de Moçambique, chega a Maputo e desumbilica-se completamente das suas origens. Como é que tem sido a tua relação com Nauela?
- Desumbilicar-me de Nauela seria abdicar da poesia, e abdicar da poesia é o mesmo que rejeitar a própria vida. Não me canso de repetir isso. Eu sou um dos grãos das poeiras da cordilheira de Namuli, mesmo que levite em escaparates reais e imaginários, de vez em quando tenho que ir para lá, poisar naquele chão para deste modo poder ressurgir e continuar a rugir fora das jaulas.
- Foste secretário-geral da AEMO durante dois mandatos. A tua consciência tranquiliza-te ao pensares no tempo que ficaste lá?
- Tranquiliza-me no sentido de que fiz tudo o que estava ao meu alcance para manter a família unida, e levar a agremiação a níveis de organização satisfatórios, claro com a colaboração de todos os confrades, cada um com a sua afinação. Mas o mais empolgante era eu dormir a pensar que no dia seguinte ia voltar ao bulício onde tudo era imprevisível, ir ao trabalho preparado para ser apedrejado sem mais nem menos por alguns malucos, alguns dos quais ainda sobrevivem, com roupa mais leve, sem a verve do veneno.
- Esses malucos deixaram-te alguns recalques?
- O poeta que me orienta é também um maluco que luta permanentemente pela paz, por isso não tenho como, mesmo que o quisesse, ter ressentimentos. Farto-me de rir quando me lembro desses momentos, com saudade.
- Você anda longe da vida pública, transformaste-te num taciturno, pareces ter medo de alguma coisa!
- Somos todos mutantes, o próprio mundo já não é o mesmo, nem a cordilheira de Namuli, como é que eu, uma pessoa tão pequenina, tão insiginificante perante esses gigantes não vou ter medo! Provavelmente seja um taciturno como tu o dizes, mas essa pode ser uma forma de defesa, pois perante uma vida absolutamente vituperada, a melhor coisa que podes fazer é ficar em silêncio, no silêncio, deixar as palavras avançarem, como se elas fossem a tua jangada e tua muralha ao mesmo tempo. Mas também não é verdade que ande longe da vida pública, depende da lupa que usas para me focares.
- Trinta e cinco anos de carreira é um marco importante para um poeta, há muitas flores espalhadas no percurso, e espinhos que podem ficar encravados para sempre na alma, muitas frustrações, incongruências. Será que depois deste tempo todo você está em condições de embalar a troucha e dizer, deixem-me voltar a Nauela beber conhaque?
- (Risos). Não há conhaque em Nauela (Risos), mas tem muita cachaça que bebo sempre quando vou para lá. Bebo para renovar e fortificar a minha relação com os espíritos lómwè que me guiam. Quanto aos trinta e cinco anos, não é isso que me vai marcar, não é o tempo que me marca, é a forma como tenho vivido a vida até aqui, lançando palavras ao léu, muitas delas grafadas em livro como um monumento erigido em memória de mim. Isso é que conta, não o tempo que levei a juntar as pedras. De resto o que importa é não sermos vencidos.
- Mesmo assim como é que te sentes perante esta efeméride que é uma comemoração da tua vida?
- A emoção é maior ao ver o envolvimento dos meus confrades na minha homenagem, significa que eles dão-me valor, significa que sou importante para eles, mesmo sem o merecer, e eu não posso querer mais nada para além desse conforto espiritual. Eles não o fazem porque brilho, mas será com certeza por amor, ao qual agradeço sem parar. Choro quando penso nisso tudo.
* Entrevista publicada na antologia em homenagem aos 35 anos do poeta